09 Janeiro 2024
"A ética das virtudes propicia uma ferramenta eficiente contra o inconsequencialismo, que é a forma de pensar que as ações individuais não têm um impacto direto e mensurável nas mudanças climáticas. Defende corretamente que embora seja consenso na comunidade de pesquisadores que as mudanças climáticas são causadas pela atividade humana coletiva, é controverso se podemos ou não atribuir alguma responsabilidade individual por essa situação", escreve Denis Coitinho, eticista, professor do Curso de Filosofia e do PPG em Filosofia da Unisinos e pesquisador do CNPq.
Escrevo esse ensaio na semana seguinte a ocorrência de uma grande onde de calor em Porto Alegre e todo Rio Grande do Sul. No domingo, dia 17/12/23, ainda na primavera, Porto Alegre registrou temperatura máxima de 38,4ºC, com sensação térmica de 47ºC, sendo a segunda mais alta temperatura do ano, ficando um pouco abaixo da registrada no dia 13 de fevereiro, de 38,8º C . Segundo o metereologista Marcelo Schneider, a capital gaúcha foi a segunda mais quente entre as metrópoles do país, ficando atrás apenas de Cuiabá (MT), onde os termômetros marcaram 39,2ºC. E importante frisar que isto não foi um evento isolado, pois 2023 tem sido considerado o ano mais quente no Brasil e no Mundo (Zero Hora, 17/12/2023). No momento em que escrevo, numa manhã de sexta-feira véspera do Natal, está 30º C, com sensação térmica de 34º C.
Segundo a Folha de São Paulo, fazendo referência ao relatório da ClimaMeter, plataforma desenvolvida pela equipe do laboratório de ciências do clima e do ambiente na Universidade Paris-Saclay, na França, a onda de calor que atingiu diversas regiões do Brasil entre 13 e 19 de novembro de 2023 foi de 1º C a 4º C mais quente do que teria sido no passado, mais especificamente entre 1979 e 2000, registrando o recorde de temperatura no país com 44,8º C em Araçuai (MG). Diz o relatório: “Basicamente, a temperatura está mais alta por causa da maior concentração de CO2 na atmosfera. Nessas ondas experimentamos temperaturas mais altas e o efeito combinado com menos chuva, porque há mais pressão nessa área com a mudança climática” (Folha de S.Paulo, 24/11/23).
O mesmo ocorre ao redor do mundo. O último verão no Hemisfério Norte foi tão quente, com as temperaturas atingindo recordes – inclusive no mar -, que as discussões já giram em termos dos limites da sobrevivência humana. O Observatório Europeu afirma que as temperaturas no Hemisfério Norte médias foram as mais altas já registradas durante o verão de 2023. Estudo da Organização Metereológica Mundial, a OMM, revela que a temperatura de 2023 deve ficar 1,4º C acima dos níveis pré-industriais. Isso significa que este será o ano mais quente já registado na história. Ondas de calor, secas, inundações e incêndios afetaram Ásia, Europa e América do Norte durante o verão boreal, em proporções dramáticas e, em certos casos, sem precedentes, com mortes e danos significativos para as economias e o ambiente (CNN Brasil, 30/11/23).
Com isso em mente, surge a urgente questão: o que fazer para evitar ou mesmo mitigar essa situação catastrófica?
Em geral, a resposta padrão é que a crise ambiental é tamanha que ações individuais não resolvem o problema, e, assim, a única solução seria apostar em ações políticas coletivas. É o que vemos ocorrendo nos acordos sobre o clima, como a COP28 (Conferência da ONU sobre as mudanças climáticas), ocorrida recentemente em Dubai, nos Emirados Árabes. Nessas conferências, os países, mediados pela Organização das Nações Unidas (ONU), discutem e definem ações concretas para limitar a elevação da temperatura do planeta a 2º C até 2050, tais como a redução de emissões de gases de efeito estufa, a pesquisa e desenvolvimento de tecnologia que visam a transição energética, com o resultado da energia renovável, e até mesmo o financiamento climático, que é uma medida em que países ricos se comprometem em ajudar os países mais vulneráveis. Esses acordos regem medidas de redução de emissão de dióxido de carbono a partir do ano de 2020, e tem por objetivos fortalecer a resposta à ameaça da mudança do clima e reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos gerados por essa mudança.
Mesmo considerando como essenciais esses acordos sobre o clima, de forma que os países do mundo se comprometam com certas medidas visando a sustentabilidade ambiental, creio que isto ainda seja insuficiente. E, dada a urgência em que nos encontramos, creio que uma possibilidade adicional seria refletir sobre a nossa responsabilidade individual com essa crise ambiental. Por exemplo, será que individualmente não seria necessário nos comprometermos com outro tipo de vida? Os agentes não teriam uma responsabilidade moral por poluir menos, por exemplo, reduzindo as emissões de carbono ou mesmo consumindo menos.
Com isso em mente, queria comentar aqui duas linhas de ação que vejo como promissoras. Uma é a teoria do decrescimento, tal como proposta por Serge Latouche. A outra é aposta em certas virtudes ecológicas, como a benevolência, humildade e simplicidade ou frugalidade, de maneira que os agentes adquiram certas disposições de caráter para agirem virtuosamente em sua relação com o ambiente.
Iniciemos com a teoria do decrescimento de Serge Latouche. Latouche afirma que o decrescimento não é apenas um conceito, mas sim um slogan político provocador que visa enfatizar a importância de abandonar a ideia de crescimento pelo crescimento, um objetivo vazio de significado que tem consequências desastrosas para o meio ambiente. Como afirmado no Pequeno tratado do decrescimento sereno (Martins Fontes, 2009), a teoria enfatiza a necessidade de reduzir o consumo e a produção global, ou seja, o metabolismo social, bem como defender uma sociedade socialmente justa e ecologicamente sustentável e, portanto, realizando a substituição do Produto Interno Bruto (PIB) como indicador de prosperidade.
Esta teoria defende uma sociedade que produza menos e consuma menos. Sustenta que é a única maneira de frear a destruição do meio ambiente, que ameaça seriamente o futuro da humanidade. Diz ele que “É preciso uma revolução. Porém, isso não quer dizer que haja que massacrar e apertar as pessoas. É preciso uma mudança radical de orientação”. Em seu último livro, A abundância frugal como arte de viver: felicidade, gastronomia e decrescimento (Edições 70, 2023), explica que é necessário almejar uma melhor qualidade de vida para as pessoas e não um crescimento ilimitado do PIB. Não se trata de defender o crescimento negativo, mas um reordenamento de prioridades. A aposta no decrescimento para ele é a aposta na saída da sociedade de consumo.
O decrescimento é uma das teoria que se contrapõe radicalmente contra o produtivismo e o consumismo. Ele oferece uma proposta de mudança radical de paradigma, que parece condizer à situação de crise estrutural que a sociedade contemporânea alcançou. Essa situação merece respostas fortes e uma virada radical de chave, tirando de foco o consumo de produtos e resgatando os bens. Propõe um processo de mudança, tanto em nível individual como coletivo, em nossa relação com o ambiente, com o planeta e com a vida.
Latouche considera que assistimos hoje à falência da felicidade quantificada tal como fora prometida pela modernidade. E, com ela, a um “crash” ecológico mais do que certo. Perante esta crise da sociedade do crescimento, é necessário inventar uma sociedade da “abundância frugal”. A frugalidade elimina todo o consumo desnecessário: implica uma autolimitação voluntária das nossas necessidades, mas não exclui a convivialidade nem uma certa forma de hedonismo. Esta reabilitação da alegria de viver implica desde logo uma reabilitação dos sabores. A gastronomia, por exemplo, entendida como a arte de bem comer graças a uma cozinha saudável e refinada, sem ser nem ascética nem orgiástica, faz parte desta arte de viver preconizada pela política do decrescimento.
Neste livro, Latouche mostra, com soluções práticas concretas e desejáveis, como o decrescimento não implica necessariamente um retrocesso, mas que, pelo contrário, pode potenciar a felicidade e o sentido de pertença dos indivíduos, ao mesmo tempo que pode enriquecer o conjunto de experiências sensoriais à nossa disposição.
Após analisarmos brevemente as características da teoria do decrescimento de Latouche, incluindo a sua defesa da frugalidade como forma de combater a crise ambiental, quero apontar para a necessidade de se contar com certos tipos específicos de virtude, a saber, as virtudes ecológicas, que podem auxiliar-nos na tarefa de combate das mudanças climáticas. Nesse ensaio, quero abordar o papel das virtudes da benevolência, humildade e simplicidade ou frugalidade.
Mas, antes, é importante considerar em que medida o modelo teórico da ética das virtudes é relevante para lidar com as questões ambientais e, especialmente, as mudanças climáticas. Parto da ideia de que cultivar certos traços de caráter pode contribuir para melhorar as relações éticas entre seres humanos e o ambiente natural, o que pode implicar em uma contribuição para mitigar as mudanças climáticas e seus efeitos. Philip Cafaro, em Environmental Virtue Ethics (2015), diz que a ética das virtudes ambiental “depende de nosso entendimento do ambientalismo e nos dá um sentido melhor do que realmente significa ser benevolente, temperante, humilde ou uma pessoa sábia” (Cafaro, 2015, p. 438). Também, para Enrico Galvani, em Climate Change and Virtue Ethics (2023), há dois benefícios centrais da abordagem da ética das virtudes para lidar com as mudanças climáticas.
O primeiro benefício é que este modelo teórico melhor captura nossa fenomenologia moral, nos alinhando a nossa experiência diária. Quando se pensa na interação humana com o ambiente natural, geralmente se usa os conceitos aretaicos, como egoísta, cruel, cuidadoso, sensível, grato, ao invés dos termos deônticos como certo, errado, obrigatório, permissível, tendo por foco muito mais o caráter dos agentes do que as consequências de suas ações (Galvani, 2023). O segundo benefício é que a ética das virtudes propicia uma ferramenta eficiente contra o inconsequencialismo, que é a forma de pensar que as ações individuais não têm um impacto direto e mensurável nas mudanças climáticas. Defende corretamente que embora seja consenso na comunidade de pesquisadores que as mudanças climáticas são causadas pela atividade humana coletiva, é controverso se podemos ou não atribuir alguma responsabilidade individual por essa situação (Galvani, 2023).
Deixem-me fazer referência a um exemplo dado por Thomas Hill Jr. em Ideals of Human Excellence and Preserving Natural Environments (1983) sobre a especificidade da ética das virtudes e a questão ambiental que me parece central. Um rico excêntrico compra uma casa e decide cortar uma árvore grande e antiga e recobrir o pátio com asfalto. A ação não está errada em se olhando para as consequências ou para os direitos infligidos. Assim, do ponto de vista consequencialista, a ação não é tomada como errada, pois há apenas um dano causado a um ente natural e não a um ser humano. Também, do ponto de vista deontológico, a ação não é errada porque a árvore não possui direitos. Apenas seres humanos possuem direitos. Mesmo assim, há um desconforto moral não em relação a ação propriamente dita, mas ao caráter do agente que não aprecia a exuberância da natureza (Hill, 1983, p. 211).
Mostrada a relevância do modelo teórico da ética das virtudes para lidar com as mudanças climáticas, vamos agora refletir sobre que virtudes específicas podem nos ajudar a enfrentar este problema. Penso em três virtudes ecológicas mais relevantes que gostaria de comentar, que são a benevolência, a humildade e, sobretudo, a frugalidade ou simplicidade.
A benevolência, por exemplo, entendida tradicionalmente, é uma disposição para fazer ou desejar o bem ao outro por motivos não egoístas. Como uma virtude ecológica, é uma disposição expandida para fazer ou desejar o bem aos descendentes e animais não-humanos, pensando no futuro das novas gerações e natureza como um todo. Com a posse dessa virtude, se poderia facilmente substituir o automóvel pela bicicleta, por exemplo, contribuindo para a diminuição das emissões de carbono, tendo em mente o futuro da humanidade. De forma similar, a humildade parece ser uma aliada nessa tarefa, pois ela é uma disposição para reconhecer as próprias limitações e fraquezas e agir a partir dessa consciência. É tomada geralmente como uma contraposição à vaidade e arrogância. Do ponto de vista ambiental, esta disposição pode ser um poderoso antídoto contra a arrogância em relação à natureza. Assim, o agente humilde poderia ver a natureza não como um recurso a ser utilizado em seu proveito, não se vendo como dominador. Por fim, a frugalidade ou simplicidade, que seria uma forma de temperança, seria uma disposição para consumir moderadamente, de forma a pensar no impacto ambiental. Com essa virtude, o agente teria um antídoto tanto ao consumismo como à ganância, identificando que certos produtos ou serviços não são essenciais para a felicidade individual, o que contribui para a vida harmônica do ambiente natural (Gavani, 2023).
É claro que outras coisas deveriam ser ponderadas ao se pensar nas soluções às mudanças climáticas, mas creio que uma investigação mais rigorosa sobre o escopo da ética das virtudes pode nos apontar para uma rota bastante promissora.
CAFARO, Philip. Environmental Virtue Ethics. In: BESSER-JONES, L.; SLOTE, M. (eds.). The Routledge Companion to Virtue Ethics. London: Routledge, 2015, p. 427-444.
DIBE, Luiz. Com 38,4º C, Porto Alegre registra segunda maior temperatura do ano. Zero Hora, 17/12/2023.
GALVANI, Enrico. Climate Change and Virtue Ethics. In: PELLEGRINO, Gianfranco; DI PAOLA, Marcello (Editors). Handbook of the Philosophy of Climate Change. Switzerland: Springer Nature, 2023.
HILL, Thomas Jr. Ideals of Human Excellence and Preserving Natural Environments. Environmental Ethics, volume 5, 1983, p. 211–224.
LACERDA, Lucas. Aquecimento global pode ter agravado onda de calor mias recente no Brasil. Folha de S.Paulo, 24/11/2023.
LATOUCHE, Serge. A abundância frugal como arte de viver: felicidade, gastronomia e decrescimento. Porto: Edições 70, 2023.
LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
YASBEK, Priscila. 2023 será o ano mais quente da história. CNN Brasil, 30/11/2023.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Mudanças climáticas e o papel das virtudes. Artigo de Denis Coitinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU