18 Junho 2025
"O paradoxo atual da Igreja Católica no Brasil é evidente: parte da hierarquia eclesiástica, dioceses e até a CNBB, historicamente ofereceram espaço para o crescimento de grupos como o Centro Dom Bosco. Esse apoio político e religioso foi fundamental para que o CDB se tornasse, hoje, algo semelhante a uma 'Brasil Paralelo' devocional, disputando a interpretação legítima da fé católica nas redes sociais e nos tribunais", escreve Tabata Tesser, doutoranda em Sociologia na USP e mestra em Ciência da Religião na PUC-SP.
Mais do que uma nota oficial, o embate revela uma disputa acirrada por audiência, autoridade e legitimidade religiosa no campo católico tradicionalista.
A recente nota oficial da Arquidiocese do Rio de Janeiro declarando que o Centro Dom Bosco (CDB) “não possui qualquer vínculo ou reconhecimento eclesial” gerou repercussão entre católicos e estudiosos do campo religioso. A nota assinada pelo Monsenhor André Sampaio de Oliveira, delegado episcopal para os fiéis que celebram o rito romano pré-Vaticano II, destaca que os estatutos do CDB jamais foram submetidos às autoridades eclesiásticas locais, sendo, portanto, uma associação civil sem status canônico.
Mais do que um simples descredenciamento, a nota marca um ponto de inflexão: ao afirmar que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (à qual o CDB agora declara filiação) se opõe à autoridade dos Papas desde o Concílio Vaticano II, a Arquidiocese sinaliza um distanciamento institucional. Mas será essa uma rejeição definitiva? Ou apenas um ajuste estratégico diante da crescente visibilidade dos grupos tradicionalistas católicos?
A questão central não é apenas a relação institucional da Igreja com o CDB, mas sim a disputa mais ampla pela audiência e autoridade no catolicismo brasileiro contemporâneo. Como propomos (Marsicano & Tesser, 2024), o CDB é a face visível de um associativismo católico conservador, impulsionado após o Concílio Vaticano II e que ganha força nas últimas décadas.
O Centro Dom Bosco está longe de ser um caso isolado. Existe uma ampla rede de atores católicos, incluindo influenciadores, juristas, ONGs, think tanks e associações, comprometida com a defesa da “neocristandade” nos espaços de poder. Essa rede opera fortemente no campo jurídico e midiático, articulando uma agenda contrária aos direitos sexuais e reprodutivos, à laicidade e à pluralidade religiosa. A cartografia desses grupos, especialmente desde os anos 2000, revela um crescimento das iniciativas associativas lideradas por leigos com formação universitária e atuação especializada. Tais atores se valem da estrutura civil para construir legitimidade política e jurídica, investindo em temas como família, sexualidade, bioética, economia e reprodução. São leigos e leigas que atravessam fronteiras entre o mundo religioso e o secular atuando com linguagem técnica e jurídica para sustentar visões teológicas conservadoras.
A atuação dos chamados juristas católicos é um exemplo. E é verificada na atuação do Centro Dom Bosco. Unificados em torno de Uniões de Juristas Católicos, com apoio direto de dioceses e arquidioceses, esses grupos operam como braços jurídicos do conservadorismo católico, fornecendo suporte estrutural, simbólico e teológico à agenda “pró-vida” e “pró-família”. Esse modelo segue os moldes da União Internacional de Juristas Católicos, formalizada em Roma em 1986. Ou seja, uma propagação da própria Igreja Católica.
Centros católicos, como o CDB, podem não ser vinculados “oficialmente” à Igreja Católica mas contém estrutura associativa que se ancora em uma compreensão jusnaturalista do Direito, vinculada à doutrina da “lei natural”, frequentemente contraposta aos marcos jurídicos democráticos e que são fortalecidos pela própria Igreja Católica. No Brasil, tal ativismo se manifesta por meio da litigância estratégica em tribunais superiores e forte incidência política.
O discurso de defesa da “natureza humana” e da “ordem biológica” é constantemente mobilizado para deslegitimar os direitos sexuais e reprodutivos. Tais formulações têm servido de base para a construção de uma teologia (anti)feminista, ancorada na Doutrina da Complementaridade e na Teologia do Corpo inspirada em João Paulo II, e com forte influência do Vaticano e de setores evangélicos aliados. Ou seja, uma base argumentativa criada e fortalecida pela própria Igreja Católica.
O paradoxo atual da Igreja Católica no Brasil é evidente: parte da hierarquia eclesiástica, dioceses e até a CNBB, historicamente ofereceram espaço para o crescimento de grupos como o Centro Dom Bosco. Esse apoio político e religioso foi fundamental para que o CDB se tornasse, hoje, algo semelhante a uma “Brasil Paralelo” devocional, disputando a interpretação legítima da fé católica nas redes sociais e nos tribunais.
Resta à Igreja brasileira uma escolha urgente: seguir promovendo um associativismo católico antidireitos, com traços autoritários e negacionistas, que ignora as Campanhas da Fraternidade e relativiza os alertas ambientais; ou assumir com convicção o chamado do Papa Francisco por uma Igreja sinodal, inclusiva e aberta ao diálogo plural com a sociedade contemporânea. As duas posturas, ao meu ver, são incompatíveis.