Produtora de grandes documentários com ultrapropaganda, que foi fundamental no Governo Bolsonaro e se tornou a empresa do país que mais investe no Facebook, está testando novas estratégias para reanimar.
O artigo é de Bernardo Gutiérrez, publicado por CTXT, 18-07-2024.
Bernardo Gutiérrez jornalista, escritor e pesquisador hispânico brasileiro. Cobre a América Latina desde 1999, como correspondente no Brasil durante a maior parte desse tempo. É autor dos livros Calle Amazonas (Altaïr), #24H (Dpr-Barcelona), Pasado Mañana (Arpa Editores) e Saudades de junho (Liquid Books).
No dia 18 de junho, uma história no Instagram de Cristina Junqueira, CEO do NuBank no Brasil, fez com que as ações do banco caíssem 1,18% na Bolsa de Valores de Nova York. Junqueira havia agradecido em sua conta pessoal o convite para participar de um evento da organização norte-americana de extrema direita Nós que Lutamos com Deus, em São Paulo. NuBank virou trending topic no Sleeping Giants Brasil, grupo dedicado a desmonetizar empresas que financiam a extrema direita, fez denúncia detalhada sobre as ligações de Cristina Junqueira e outras pessoas do NuBank com a Brasil Paralelo, produtora nascida em agosto de 2016, dez dias depois de o Senado aprovar o impeachment contra Dilma Rousseff. Junqueira foi assessora do Ranking dos Políticos, financiado pelo Brasil Paralelo, plataforma supostamente neutra que avalia o desempenho dos políticos brasileiros. O Ranking dos Políticos envia relatórios aos representantes políticos com recomendações de voto, sempre alinhados à extrema direita. Os deputados do Partido Liberal (PL) de Bolsonaro têm nota média de 7,5. Os do esquerdista Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), 2.2.
Imagem de um vídeo do canal no YouTube da Brasil Paralelo. / YouTube (Brasil Paralelo)
Durante as devastadoras enchentes que ocorreram no estado do Rio Grande do Sul em maio passado, outra polêmica surgiu com o Brasil Paralelo. Ricardo Gomes, vice-prefeito de Porto Alegre, apareceu em transmissão ao vivo durante o resgate de vítimas das enchentes usando boné Brasil Paralelo. As redes sociais brasileiras se irritaram durante dias, denunciando que o Brasil Paralelo estava por trás de documentários negacionistas como Cortina de Fumaça. A obscura relação econômica entre a Câmara Municipal de Porto Alegre e a Brasil Paralelo, revelada por investigação do Órgão Público, veio à tona em meio à maior catástrofe ambiental da história do Brasil.
A esquerda brasileira tem o Brasil Paralelo no centro do alvo de denúncias. Por quê? O que exatamente é o Brasil Paralelo?
Brasil Paralelo nasceu em 9 de agosto de 2016, vinte dias antes da aprovação final do impeachment no Senado brasileiro. O nome foi inspirado no filme Interestelar (2014). Para seus fundadores, jovens formados em marketing em Porto Alegre, sua logomarca e nome em formato de buraco negro remetem a uma forma de atuação independente do Estado. A uma ideia de ligação com uma realidade paralela ao mainstream que consideram dominada pela esquerda. Desde o início, a pedra angular do Brasil Paralelo foram os longos documentários. Em 2016, a Brasil Paralelo inaugurou a série documental Congresso Brasil Paralelo, que exibiu as principais guerras culturais da extrema direita brasileira, utilizando depoimentos de personalidades do conservadorismo nacional. Entre eles, destacam-se Olavo de Carvalho (guru do Bolsonaroismo, falecido em 2022), Janaina Paschoal (advogada evangélica que liderou o pedido de impeachment de Dilma Rousseff) e o próprio Jair Bolsonaro. Em 2017, a Brasil Paralelo lançou Brasil: a última cruzada, série enquadrada no aniversário dos 200 anos da independência do Brasil que teve como foco grandes heróis e feitos.
Capas da série documental Brasil: a última cruzada, 1964: O Brasil entre armas e livros e Pátria Educadora. (Fonte: Youtube Brasil Paralelo)
Capas da série documental Brasil: a última cruzada , 1964: O Brasil entre armas e livros e Pátria Educadora .
Em 2019, a Brasil Paralelo fez uma primeira pirueta estratégica: contratou as salas de cinema Cinemark de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo para lançar 1964: ou o Brasil entre armas e livros, que se tornaria um de seus maiores sucessos. O documentário apoia a hipótese de que o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart em 1964 foi uma resposta à ameaça comunista e à repressão estatal. Alguns historiadores denunciaram o Brasil Paralelo na Justiça pelo caráter negacionista, conspiratório e antiintelectual de seus vídeos. Suas deturpações de fatos históricos como a ditadura militar, a escravidão e a própria colonização do Brasil foram o terreno fértil para o movimento Bolsonaro que havia chegado à presidência um ano antes.
A estrutura dos documentários Brasil Paralelo se repete. Primeiramente é apresentado um panorama histórico do tema, com informações verdadeiras, embora outras sejam omitidas. Depois se aprofunda no grande conflito, distorcendo os fatos com afirmações fora de contexto. O discurso dirige-se para uma certa decadência do país, atribuindo responsabilidade, de forma genérica, à esquerda. A estética do Brasil Paralelo remete a grandes documentários internacionais, para transmitir seriedade. A estratégia da produtora é distribuir seu conteúdo primeiro exclusivamente para seus assinantes e depois publicá-lo no YouTube. Anteriormente, eles lançavam trailers bem executados e com aroma de grandes estreias de filmes.
Se os documentários são o foco principal do Brasil Paralelo, os múltiplos vídeos curtos com trechos de longas-metragens compõem uma ponta de lança adaptada à era digital. A Brasil Paralelo faz uma extração afinada de conteúdo para distribuí-lo por meio de publicidade segmentada. Se a seriedade é o clima da linha documental da produtora, o humor permeia os curtos vídeos. Desde 2020, a Brasil Paralelo conta com um aplicativo de televisão e o serviço de streaming BP Select.
Em abril de 2021, o Brasil Paralelo havia se tornado um império. Mais de cem funcionários já trabalham em sua nova sede na Avenida Paulista, em São Paulo. Seu canal no YouTube teve 421 vídeos, 1,71 milhão de inscritos e mais de cem milhões de visualizações. Já era o segundo maior canal de Bolsonaro no Telegram, com 80 mil seguidores. E se tornou a empresa brasileira que mais investe em propaganda política no Facebook. Como ocorreu esse crescimento? Como a produtora consolidou seu conteúdo nas cidades médias do Brasil onde quase não há oferta cultural e educacional, como alerta o jornalista João Dória. Como uma produtora que pirateou o logo de um dos filmes de Hollywood exporta conteúdo para o mundo em vários idiomas?
O primeiro grande sucesso off-line do Brasil Paralelo ocorreu no final de 2019. Após o sucesso do lançamento de 1964: ou o Brasil entre armas e livros nas salas de cinema, a produtora fechou contrato com a TV Escola, canal público vinculado ao Ministério da Educação, para exibir a série Brasil: Uma Última Cruzada por três anos. A série, que nas palavras do produtor apresentava a história do Brasil livre de “narrativas ideológicas”, exaltava as raízes europeias do Brasil, praticamente eliminando a presença de povos indígenas e escravos negros. Ao mesmo tempo, apresentou o suposto fracasso das políticas de desarmamento ao longo da história. A Associação Nacional de História descreveu o material como “propaganda ideológica de um grupo extremista”.
A partir daí, o conteúdo do Brasil Paralelo passou a se alinhar descaradamente ao Governo Bolsonaro, apesar de seus fundadores continuarem a se definir como apartidários e fora de ideologias. Em 2020, a produtora lançou dois documentários reformulando completamente o Executivo, Os Donos da Verdade e Sete denúncias: as consequências do Caso Covid-19. Ambas as produções fizeram com que as tropas digitais de Jair Bolsonaro se unissem à causa do Brasil Paralelo. Henrique Viana, sócio da produtora, sempre negou sua relação com o Bolsonaroismo, chegando a afirmar que “costumamos dizer que não somos bolsonaristas, é Bolsonaro que é paralelista”.
O Brasil Paralelo surfou na onda da extrema direita com uma fórmula de sucesso global: conivência da alta tecnologia e gotejamento constante de dinheiro público. Graças ao conluio da publicidade click-through de plataformas digitais sem política de controle de notícias falsas e à publicidade institucional opaca do Governo Bolsonaro, o Brasil Paralelo tornou-se uma espécie de Netflix da direita com forte presença nas redes sociais, mídia clássica e implementação territorial. Fechou simultaneamente contratos com a Sony Pictures, com a TV Jovem Pan News (meio de rádio e televisão alinhado ao bolsonarismo) e com o G10 Favelas (aliança de organizações sociais das maiores favelas do Brasil). Seus pseudodocumentários foram projetados em TVs, sites, plataformas digitais, serviços de streaming, redes sociais e em telões das periferias das grandes cidades do país. A Brasil Paralelo chegou a oferecer 500 bolsas de formação audiovisual para moradores de favelas.
No final de 2021, a Brasil Paralelo lançou Cortina de fumaça, sua obra-prima, uma produção que sintetizou todos os negacionismos. O documento falso exaltava excessivamente o setor agrícola, criticava o terceiro setor e desmentia os dados sobre o desmatamento na Amazônia. A produção paralela não só afirmou que não havia consenso científico sobre as mudanças climáticas, mas também defendeu que o Brasil cumpriria um papel importante na paz no mundo ao produzir alimentos em áreas ocupadas pela selva.
Grande golpe do canal Brasil Paralelo no YouTube. (Fonte: Youtube Brasil Paralelo)
Henrique Viana, fundador e grande ideólogo do Brasil Paralelo, traçou a linha estratégica da produtora em debate sobre jornalismo e liberdade em 2017. O objetivo: “Seja pop, seja cool e desperte mitos antigos”. Ao mesmo tempo, reconheceu que o que melhor apoia a cultura judaico-cristã é o formato audiovisual ao estilo de Hollywood, com “superconservadorismo, família, o herói, o virtuoso”. A Brasil Paralelo surgiu “quase como um movimento, mas preferiu se estabelecer legalmente como empresa”, nas palavras do próprio Viana.
O ingrediente secreto do Brasil Paralelo, sempre escondido por seus fundadores, não é outro senão a perseguição judicial contra seus críticos. O Intercept Brasil denunciou detalhadamente como a produtora processa qualquer pessoa, principalmente jornalistas e pesquisadores acadêmicos, que denunciam a falta de veracidade de seu conteúdo. No interesse da liberdade de expressão, o produtor tenta fazer com que os críticos se retirem das suas declarações, intimidados por processos judiciais. O Brasil Paralelo solicita incessantemente o direito de resposta de poderosos grupos de mídia, como a Folha ou a Editora Globo. E ainda pediu à Wikimedia Foundation indenização pelos supostos danos morais causados pelo verbete do Brasil Paralelo na Wikipédia. “É lawfare”, disse o jornalista e YouTuber Clayson Felizola, em 2021, após ser processado pela Brasil Paralelo por supostos danos morais.
Paralelamente, o caso de amor do Brasil com o lado negro da história começou a declinar em 2022, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cortou as asas digitais de grande parte de seu conteúdo. O fluxo monetário que marcou a saída do clã Bolsonaro do poder, bem como a constante desmonetização provocada pela vigilância do Sleeping Giants Brasil, forçaram a reinvenção do Brasil Paralelo. Seu conteúdo histórico continua a se tornar viral na Internet. Mas o buraco negro paralelo aponta para novos horizontes. O lançamento da iniciativa Ranking dos Políticos, uma distância artificial de Jair Bolsonaro e produções internacionais estratégicas como Javier Milei, a revolução liberal (lançada em plena campanha presidencial argentina), são a prova da tentativa de ressurreição da produtora que aspira continuar sendo o epicentro da guerra cultural de Bolsonaro.