No IHU Ideias de hoje, professora Charlotth Back discute “Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional”
Quem conhece a política, nacional ou internacional, sabe que uma guerra, como esse conflito a que temos assistido na Ucrânia, não eclode simplesmente. É aí que entram historiadores para nos lembrar do passado e de questões de fundo que complexificam as relações entre povos e nações, gerando uma série de mal-estares que se arrastam pelos tempos até estourar uma guerra com armas, bombas, soldados e, claro, muita gente morrendo e perdendo a moradia.
O que poucos percebem é que, ainda antes desse momento de invasões de tropas e bombardeios, vem, como que numa espécie de ruminar, se travando um outro tipo de guerra em que leis, acordos e sanções são as armas. Esses, por sua vez, estrangulam economias e relações políticas até que alguém bate na mesa e decide partir para o ataque físico como bem conhecemos. Isso é o que modernamente chamamos de lawfare, uma espécie de guerra, mas não como conhecemos.]
Segundo Cristiano Zanin Martins, em Lawfare: uma Introdução (Contracorrente, 2019), é “o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”.
Bruno Cava, que costumeiramente contribui com o Instituto Humanitas Unisinos - IHU com suas reflexões, olha para o lawfare num contexto mais amplo, pensando-o como movimento do que chama de Guerra Híbrida, típico dos conflitos do século XXI.
“As Guerras Híbridas são mobilizadas para assegurar a deslegitimação do caráter inovador dos protestos e da própria noção de que existiria um ciclo novo de lutas. Tudo isso seria apenas efeito de superfície de um mundo capitalista ocidental desesperado com a erosão da hegemonia. Ou seja, seriam revoltas reativas, facilmente conjugáveis com os planos de condução da guerra híbrida: desestabilização de governos, lawfare e campanha informacional”, explica, em artigo publicado pelo IHU, que reproduzimos abaixo. Ou seja, podemos compreender o lawfare – mesmo como um movimento dessa Guerra Híbrida – não como um momento zero de conflito, mas como resposta a convergências já existente.
Seguindo com Cava, se voltamos os olhares para a guerra entre Rússia e Ucrânia, percebemos claramente esse movimento de disputas e lutas entre povos e, depois, nações, mas também isso que ele coloca como “efeito de superfície de um mundo capitalista ocidental desesperado com a erosão da hegemonia”. Por outro lado, seria o Ocidente tentando ruir com o grande inimigo - no caso, a Rússia - a partir de conflitos que estão no Oriente, entre parentes como Ucrânia e Rússia. É evidente que numa guerra não há mocinhos e sim jogos de interesses com consequências gravíssimas. Mas em que medida podemos retomar esse conceito de lawfare e o compreender como uma estratégia de guerra no mundo do século XXI?
Essa é uma das muitas questões que orientarão a conferência da professora Charlotth Back, hoje, às 18h, no evento IHU Ideias, com transmissão online, pelos canais do IHU nas redes sociais e YouTube.
Membro da Comissão Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio de Janeiro – OAB/RJ e integrante do Conselho Latino-Americano de Justiça e Democracia – Clajud, ela proferirá a palestra intitulada “Lawfare como nova estratégia de guerra à luz dos contextos políticos nacional e internacional”.
São muitas as análises desde a perspectiva de lawfare nos conflitos que vivemos atualmente. Charlotth Back tem trabalhado nesse sentido, pensando a interseção dessa perspectiva com áreas de Diretos Humanos, especialmente no contexto de América Latina.
Outra visada que a professora tem dado ao tema também passa pelo debate em torno da corrupção e a concepção, digamos assim, de um Estado de Exceção decorrente desse processo. Nesse caso, diferente de leis, acordos e tratados políticos e econômicos que visam pressionar países – como, inclusive temos visto com relação à Rússia, numa perspectiva de pressão para o fim do conflito com a Ucrânia – a lei passa a ser concebida como uma arma dentro do próprio Estado.
Qualquer semelhança não é mera coincidência e podemos, de novo, aproximar da realidade da latino-américa. Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, em ensaio publicado no site do IHU e que reproduzimos abaixo, reflete que lawfare está muito presente no contexto democrático. Segundo ele, sempre nos compadecemos e enaltecemos a democracia desde que nossa perspectiva seja vitoriosa. Do contrário, jogamos com instrumentos que nos façam virar a mesa, e sem desrespeitar as leis. À luz do que considera um golpe ocorrido na Bolívia em 2019, observa que “os golpes policialescos-militares não são a única maneira pela qual a direita pode recuperar o poder. Por exemplo, no Brasil, houve um golpe de Estado judicial ou lawfare, que se refere ao uso do poder judicial para desconsiderar a vontade do povo e as maiorias eleitorais”.
Ou seja, essa estratégia de lawfare está mais próxima de nós do que imaginamos, pois muitos leem a Operação Lava Jato justamente como um caso de uso de lawfare. A cineasta Maria Augusta Ramos é uma das pessoas que faz essa leitura. “Você tem, claramente, um exemplo de lawfare, o sistema de justiça sendo usado contra inimigos políticos para a remoção de um partido, no caso, um partido à esquerda, um partido como foi o Partido dos Trabalhadores, a classe política progressista, toda uma maneira de governar”, observa, em entrevista concedida ao Brasil de Fato e reproduzida pelo IHU.
No entanto, como Bruno Cava, ela não pensa essa estratégia de forma isolada e como único recurso para construir o tal golpe. Para ela, tanto quanto pensar em lawfare na Lava Jato, é preciso pensar no papel da mídia e das mídias sociais na construção desse processo. Não à toa, muitos ironizam o episódio como Vaza Jato. Assim, também mobilizada por esse enfoque, produziu o documentário “Amigo Secreto” (2022). “O papel da imprensa é fundamental em uma democracia e eu acho que o filme revela isso. Ao mesmo tempo em que o conluio entre os procuradores e a mídia foi extremamente prejudicial para o país e levou a tudo isso que a gente está vendo agora, a escolha por contar, da mesma maneira que no caso do impeachment, de dar prioridade a uma determinada narrativa, a um lado da história e simplesmente, como diz o Leandro [Demori], não questionar as denúncias feitas pelo Ministério Público e uma série de questões que estavam sendo apresentadas, fez do papel da imprensa e do jornalismo realmente terrível”, avalia.
Nesse momento, o leitor pode muito bem estar pensando que entender as estratégias de lawfare é importante para se compreender muito mais do que as pontas de icebergs de guerras e conflitos de nosso tempo. Mas o que isso tem de relação com Direitos Humanos, para além da produção direta das vítimas de guerra? Pois bem, olhemos com mais vagar aos movimentos sociais, aqueles mesmos que lutam por direito e frequentemente são vistos como baderneiros, vândalos e arruaceiros.
A professora Charlotth Back, por exemplo, tem algumas reflexões e trabalhos relacionados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, inclusive exercendo a representação do Movimento junto à Comissão Água e Terra do Conselho Nacional de Direitos Humanos. E, como todos sabem, o grupo sofre não só estigmas, tendo muitas vezes a legislação evocada como forma de ir contra suas ações e lutas. Nesse caso, podemos apreender mais uma vez ações de lawfare. Mas não só entre MST; podemos ver isso, por exemplo, na Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260/2016), editada pelo Estado brasileiro e frequentemente evocada em casos de manifestações.
Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG, em artigo publicado pelo IHU, reflete nesse sentido. E vai além: chama atenção de uma modificação dessa mesma lei, proposta pelo atual governo como forma de reação a cobranças públicas, especialmente no contexto da pandemia. “Projeto de Lei (PL) 1595/2019 ‘altera a legislação antiterrorismo no país e, se aprovado, restringirá o direito ao protesto, à livre manifestação e à reunião de pessoas, que são direitos fundamentais e devem ser garantidos pelo Estado brasileiro”, explica.
Para ele, “caso o Projeto seja aprovado, o governo - amparado pela lei - poderá criminalizar com mais facilidade os movimentos sociais populares”. Ou seja, abrindo livremente o campo para ações de lawfare.
Uma outra perspectiva que podemos conceber lawfare é a judicialização da vida. O tema, inclusive, foi capa da revista IHU On-Line em 2016, na edição de número 494.
Entre outros entrevistados, a professora Maria Luiza Quaresma Tonelli observou que nem sempre ter leis significa ser democrático. “Todas as ditaduras do século XX foram jurídicas, tendo um Poder Judiciário convalidando toda espécie de arbítrios praticados pelo Estado. É perfeitamente possível que um Estado possa organizar-se juridicamente sem que seja necessariamente democrático. Precisamos ter em mente que não é o Estado de Direito que faz a democracia, mas a democracia que faz o Estado de Direito ser democrático”, analisa, na entrevista à IHU On-Line.
Advogada, possui doutorado em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide (UPO - Espanha) e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É professora de Direito Internacional na Universidade Estacio de Sá (UNESA) e pesquisadora do HOMA - Centro de Direitos Humanos e Empresas (HOMA - UFJF).
Charlotth Back (Foto: arquivo pessoal)
Também é investigadora do Grupo Lex Mercatoria, Derechos Humanos y Empresas da CLACSO e membro do Conselho Latino Americano de Justiça e Democracia (CLAJUD). Integra o setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e atua como vice-presidente da Comissão de Direito Internacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ). É membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).