27 Mai 2025
"Não há mais tempo aqui, os recursos são sempre menores e as necessidades cada vez maiores", escreve Martina Marchiò, coordenadora médica de Médicos Sem Fronteiras em Gaza, em artigo publicado por La Stampa, 24-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Às vezes penso que é apenas um sonho e que, de repente, abrirei os olhos e perceberei que ainda tenho a minha vida de antes, a minha casa, e a cidade continua tão bonita como era antes. Sabem, todos costumavam vir aqui, era um bairro muito elegante e refinado e a poucos passos de distância havia o mar com os restaurantes de peixes. Não sobrou nada", conta Karima, minha colega da Médicos Sem Fronteiras (MSF), enquanto dirigimos lado a lado no carro pela Cidade de Gaza. Outro dia, ela me disse que frequentemente se pergunta se isso é a realidade ou apenas um pesadelo. Seus olhos ficam marejados ao se lembrar daquele tempo que não existe mais. Eu a abraço e digo que estou feliz por estar aqui com ela. Ela encosta a cabeça no meu ombro e ficamos em completo silêncio.
A cada minuto que passa, tenho a sensação que o tempo está se esgotando. Tento afastar esses pensamentos, tento me manter no presente e digo a mim mesma que não adianta se projetar num futuro incerto.
Nos últimos dias, as explosões estão sacudindo várias partes da Faixa de Gaza ao mesmo tempo, tantas vidas se perderam. Alguns corpos continuam sob os escombros e, nos blocos do prédio que jazem no chão, agora estão os nomes daqueles que ficaram ali enterrados. Em algumas zonas da cidade, há corpos que estão presos há mais de um ano, esperando que alguém os leve a descansar em paz.
Só na última semana, pelo menos 20 estruturas médicas foram atingidas ou forçadas a fechar devido ao avanço das operações terrestres israelenses, à intensificação dos ataques aéreos e das ordens de evacuação. No Norte, todos os hospitais públicos estão fora de serviço, enquanto na Cidade de Gaza apenas três permanecem parcialmente funcionando.
Assim como Karima, também me acontece de acordar no meio da noite e me beliscar para ter certeza de que essa é a realidade. O que estamos vivenciando é tão próximo do impossível que nos obriga a fazer uma pausa para sentir a vida, a poeira, a terra sob nossos pés e entre os dedos das mãos. Agarramo-nos a essa vida com a força do desespero, com a determinação de quem não quer deixá-la escapar.
Muitos estão assustados com a ideia de uma agonia lenta, ou com a possibilidade de ficar vivos sob os escombros, ou ser esquecidos e considerados apenas um número. Karima me repete com frequência que não sairá da Cidade de Gaza. Está cada dia mais magra, mas por trás dessa fraqueza física há uma imensa força de espírito. Toda a comida que ela encontra vai para seus quatro filhos e quatro sobrinhos, de quem cuida depois que sua irmã morreu. Ela é tão leve em seus movimentos que parece um anjo. Às vezes, ela come apenas um biscoito por dia, então eu lhe peço para ficar um pouco mais depois do trabalho para compartilhar uma refeição.
Karima tem olhos grandes, constantemente velados por uma sombra de desespero. Ela tem o olhar de alguém que viu coisas que não podem ser esquecidas, de alguém que buscou os pedaços de seus familiares para enterrá-los. Não há mais tempo aqui, os recursos são sempre menores e as necessidades cada vez maiores.