20 Mai 2025
O artigo é de José F. Castillo Tapia, SJ, publicado por Religión Digital, 19-05-2025.
“Kiwxí vive entre nós”. Foi assim que o povo Enawenê-Nawê se despediu do irmão jesuíta Vicente Cañas quando ele foi assassinado em 1987. Sua memória não foi silenciada. A selva, os cantos rituais e as lutas pela terra o mantiveram vivo no coração de uma comunidade que aprendeu a reconhecê-lo como um dos seus. Em maio de 2025, quase quatro décadas após sua morte, a justiça brasileira confirmou a condenação definitiva do ex-delegado de polícia Ronaldo Antônio Osmar como um dos mandantes do crime. É uma vitória, sim, mas parcial, tardia, frágil. Porque, como escreveu recentemente o jesuíta Gabriel dos Anjos Vilardi, “a justiça ainda não foi feita ao amigo dos Enawenê-Nawê”.
Vicente Cañas (Kiwxí), originário de Albacete, viveu por mais de uma década com o povo Enawenê-Nawê, no noroeste do Mato Grosso. Ele se tornou um deles, não como uma estratégia missionária, mas como uma escolha de vida: aprendeu sua língua, seus cantos, seus ciclos agrícolas, seus silêncios. Ele fez parte de uma geração de missionários que, à luz do Concílio Vaticano II, passou do proselitismo à encarnação: do anúncio ao acompanhamento.
Mas sua proximidade com os povos indígenas o colocou no centro de uma batalha: a defesa da terra. Vicente apoiou os Enawenê-Nawê no processo de demarcação territorial e denunciou as invasões de madeireiros e fazendeiros que se apropriavam de terras tradicionais. Essa defesa fez dele um alvo.
Por volta de 06-04-1987, ele foi brutalmente assassinado em sua cabana às margens do Rio Juruena. Ele estava sozinho, se preparando antes de retornar à aldeia. Ele foi esfaqueado e espancado com tanta violência que seu crânio foi fraturado. Seu corpo foi encontrado mais de um mês depois. Ninguém foi preso naquela ocasião. O crime foi diluído no silêncio cúmplice de um sistema judicial colonizado por interesses fundiários.
O julgamento foi uma corrida de resistência. O primeiro julgamento, em 2006, absolveu os réus. Somente em 2017, graças aos esforços do CIMI, do Ministério Público Federal e de advogados comprometidos como Michael e Paulo Guimarães, um novo julgamento foi alcançado. Vilardi relembra a força das alianças forjadas: “Foi um júri em que a insistência da justiça estava presente… com o Ministério Público Federal, com os indígenas na sala de audiências, com o depoimento do Fausto Campoli sobre os Kiwxí e os Enawenê-Nawê, que emocionou a todos”.
O júri condenou Ronaldo Osmar a 14 anos e 3 meses de prisão. Ficou comprovado que o delegado organizou o crime, recrutando os autores e usando seu cargo para acobertar o assassinato. Foi um momento histórico. Mas a sentença não foi executada imediatamente. Durante anos, Osmar permaneceu livre. Somente em 2025 o Supremo Tribunal de Justiça certificou a sentença ao tribunal. O mandado de prisão foi expedido em 24 de abril, mas o condenado está internado em um hospital de Goiás, e sua defesa pede prisão domiciliar. Mais uma vez, o tempo trabalha a favor do poder.
O irmão Gabriel Vilardi coloca isso claramente: “Fazer justiça ao irmão Vicente Cañas significaria enterrar definitivamente o Marco Temporário, declarar a Lei 14.701/2023 inconstitucional e demarcar as mais de 800 terras indígenas que ainda aguardam o cumprimento da Constituição”. Ou seja, a verdadeira justiça não se mede por uma sentença, mas por um país que garante direitos e protege a vida.
A tese do chamado Marco Temporário, segundo a qual os povos indígenas somente teriam direitos sobre as terras que ocupavam em 05-10-1988, data da Constituição, foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, numa manobra legislativa, essa tese foi reincorporada à Lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso com o apoio do setor do agronegócio. Embora o presidente Lula tenha vetado parcialmente a lei, muitos de seus artigos continuam em vigor e permitem a exploração comercial de terras indígenas. A luta continua nos tribunais, mas também nas comunidades.
O caso Vicente Cañas é, neste contexto, um símbolo. Seu assassinato não foi uma exceção, mas a consequência lógica de uma estrutura que considera os indígenas um obstáculo ao “progresso”. Hoje, 38 anos depois, milhares de indígenas continuam sendo ameaçados, expulsos e assassinados. Fazer justiça aos Kiwxí é fazer justiça a eles.
Vicente não morreu estrangeiro. Ele morreu como uma das pessoas. Na visão de mundo Enawenê-Nawê, ele não era um missionário visitante, mas um parente que caminhava com eles. É por isso que eles ainda estão esperando para poder enterrar seus restos mortais — partes dos quais ainda estão nas mãos do judiciário — para que ele possa descansar de acordo com sua tradição. Não é apenas um gesto simbólico. É o reconhecimento de que sua vida foi oferecida e recebida como parte do corpo coletivo daquele povo.
Da fé cristã, seu testemunho é profético. Vicente encarnava a kenosis, o esvaziamento do missionário que não vem para ensinar, mas para aprender; que não fala para impor, mas escuta para amar. Nas palavras de Vilardi: "Um homem magro e barbudo, com uma lança cravada no abdômen. Um lanceiro como Jesus de Nazaré". Seu martírio não foi glorioso, foi silencioso. Não havia câmeras, nem manchetes. Só a terra, o rio e a memória de um povo que não esquece.
A Igreja Católica percorreu um longo caminho em seu relacionamento com os povos indígenas. Da evangelização do colonialismo à defesa profética. Do modelo de conquista ao da sinodalidade. O testemunho de Vicente Cañas nos ajudou a percorrer esse caminho.
REPAM, CIMI, CNBB e Companhia de Jesus reafirmaram seu compromisso com a vida indígena como lugar teológico. O Sínodo para a Amazônia (2019) e a exortação apostólica Querida Amazônia tornaram visível uma eclesiologia com rosto amazônico, onde os povos indígenas não são destinatários de uma missão, mas protagonistas de sua história de salvação.
Nesse contexto, Vicente Cañas não é apenas um mártir. Ele também é professor. Ela nos ensina que a missão não é ocupação, mas comunhão. Que a terra não é possuída, ela é cuidada. Que justiça não é vingança, mas restauração. E essa santidade pode ter um rosto indígena, um corpo frágil e um nome em uma língua ancestral.
Trinta e oito anos depois, a condenação de Ronaldo Osmar põe fim legal ao assunto, mas levanta uma questão ética: o que fazemos com a memória de Kiwxí? Arquivamos isso em um arquivo ou o transformamos em uma semente?
A justiça chega tarde, mas ainda clama. E seu grito não é apenas o de uma vítima, mas o de um povo. A de todos aqueles que, como Vicente, acreditam que a vida vale mais que o lucro, que a terra é mãe e que o Reino de Deus se assemelha mais a uma comunidade indígena do que a um império.
CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Acusado de planejar ou assassinar Vicente Cañas, ele foi condenado a 14 anos e 3 meses. Cimi, 28 de fevereiro de 2018. Disponível aqui.
Floresta Protegida. Lei 14.701/23 legaliza Marco Temporário apesar de decisão do STF: luta indígena continua. Floresta Protegida, 2023. Disponível aqui.
Religião Digital. A condenação no Brasil contra um dos assassinos do jesuíta Vicente Cañas, missionário dos povos indígenas, foi confirmada. Religion Digital, 8 de maio de 2025. Disponível aqui.
Religião Digital. Justiça brasileira pelo assassinato do jesuíta Vicente Cañas. Religion Digital, 30 de novembro de 2017. Disponível aqui.
Swissinfo. Condenação mantida para policial acusado de assassinar missionário espanhol no Brasil. Swiss Info, 7 de março de 2023. Disponível aqui.
Vilardi, Gabriel dos Anjos. Finalmente haverá justiça para Vicente Cañas? Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 8 de maio de 2025. Disponível aqui.