24 Abril 2025
Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça.
O artigo é de Guilherme Defina, mestrando em ciência política na Unicamp, publicado por A Terra é Redonda, 23-04-2025.
A morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, sela com solenidade ambígua uma das experiências mais inquietantes do catolicismo contemporâneo. Para uns, um pontífice populista e quase herege; para outros, o último respiro evangélico antes da burocratização definitiva da fé. Entre a denúncia profética e a suspeita doutrinal, Francisco encarnou uma contradição viva: a de um papa jesuíta, latino-americano, comprometido com os pobres – mas dentro das muralhas de uma Igreja milenar, hesitante entre o altar e a praça.
Não foi o primeiro a despertar fantasmas – tampouco será o último a deixar feridas abertas. Mas foi talvez o único a arrastar, com autoridade pontifícia, os dilemas teológicos da América Latina para o coração de Roma. Sob sua batina branca pulsava, ainda que domesticada, a centelha da Teologia da Libertação. E com ela, a memória do Cristo pobre, da Igreja dos oprimidos e da esperança em tempo presente.
Neste ensaio, nos propomos a pensar a morte do Papa Francisco não como um epílogo, mas como sintoma. Sintoma de um catolicismo que, ao tentar responder aos apelos do mundo, tropeça nas sombras de sua própria tradição. À luz da crítica conservadora católica – especialmente aquela desenvolvida por Gustavo Corção –, interrogamos os sentidos e os limites de uma Igreja “em saída”. O que resta da mística quando o dogma se abre à política? É possível conjugar a opção preferencial pelos pobres sem dissolver a fidelidade à ortodoxia?
Contra o entusiasmo dos progressistas e o desprezo dos reacionários, talvez caiba aqui uma terceira via – não a do centro conciliador, mas a da leitura crítica, situada e contextual. A figura do Papa Francisco não será compreendida nem em slogans pastorais nem em anátemas doutrinários. Ela exige um retorno às raízes das disputas que marcam o catolicismo latino-americano desde o século XX, especialmente àquelas que opuseram tradição e profecia, mística e práxis, o Cristo Rei e o Cristo subversivo.
No princípio, havia a suspeita. Quando o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio foi alçado à cátedra de Pedro em 2013, não foram poucos os que, à direita e à esquerda, estranharam o gesto. Os primeiros viam com inquietação o sotaque portenho do novo papa, sua liturgia austera e sua recusa ostensiva aos protocolos do poder. Os segundos temiam, com igual intensidade, que a promessa de renovação não passasse de encenação. Afinal, o que poderia fazer um jesuíta de hábitos silenciosos, saído de uma das províncias mais conservadoras da Companhia de Jesus, num Vaticano ainda traumatizado pelo curto e rígido papado de Bento XVI?
O que se viu, porém, foi o progressivo desdobramento de um pontificado que não se deixaria definir por categorias fáceis. O Papa Francisco não foi – como tantos desejaram ou temeram – um “papa da Teologia da Libertação”. Mas tampouco a renegou. Incorporou-lhe os gestos, o vocabulário, os interlocutores. Canonizou mártires, visitou favelas, promoveu sínodos regionais. Acima de tudo, reafirmou com insistência quase incômoda a “opção preferencial pelos pobres”, não como um adereço pastoral, mas como chave hermenêutica da própria fé cristã. Com isso, recolocou no centro da doutrina aquilo que há décadas fora relegado às margens da diplomacia eclesiástica.
Se os documentos do Vaticano II haviam insinuado uma abertura, foram os teólogos latino-americanos – Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría – que a levaram às últimas consequências, resgatando a figura de um Cristo encarnado na luta dos povos. Contra essa tradição se insurgiu o conservadorismo católico, tanto europeu quanto latino-americano, que viu na Teologia da Libertação uma contaminação da fé por um marxismo travestido de pastoral. Gustavo Corção foi um de seus críticos mais enfáticos. Para ele, toda tentativa de politizar o Evangelho era uma forma de corrupção espiritual – uma entrega da mística ao mundo, do mistério ao método.
O Papa Francisco, nesse cenário, é uma figura desconcertante. Ele não abraçou o marxismo, tampouco silenciou diante das injustiças sociais. Sua crítica ao capitalismo global – sistemática e reiterada – não partia do materialismo histórico, mas de uma leitura evangélica radical. Seu engajamento com os pobres não era revolucionário nos moldes da luta de classes, mas restaurador de uma eclesiologia esquecida. E, ainda assim, foi acusado por setores conservadores de ser o “papa comunista”. Jorge Mario Bergoglio pagou o preço de não caber nos rótulos: foi visto como herético por uns e tímido por outros, exatamente por tentar reabilitar, a partir do centro, aquilo que fora rejeitado pela periferia do poder.
O que está em jogo, no fundo, é a tensão irresoluta entre o mistério e a missão. Para Corção, o mistério é anterior e superior à práxis – é aquilo que nos retira da história para nos lançar ao sagrado. Para o Papa Francisco, a missão não dilui o mistério, mas o manifesta: Deus não está fora do mundo, mas encarnado nele – especialmente onde há dor, miséria e abandono. O desacordo, portanto, não é apenas político ou pastoral. É ontológico. Trata-se de duas formas de conceber a fé: uma como guarda do sagrado, outra como fermento no mundo. Uma como muralha, outra como caminho.
Com sua morte, o Papa Francisco talvez tenha encerrado a última tentativa de resgatar, a partir do trono, a memória subversiva do Evangelho. Resta saber se a Igreja – essa instituição tão afeita a enterrar vivos e canonizar cadáveres – encontrará coragem para continuar o que ele, em sua ambiguidade e ousadia, apenas começou.
Se há algo que Gustavo Corção jamais tolerou foi a diluição do sagrado na política. Ao longo de sua trajetória como pensador católico, a modernidade aparecia não como palco da redenção possível, mas como laboratório da perdição. A secularização, o racionalismo, o progressismo – tudo isso era, para ele, sintoma de uma civilização doente, que havia trocado o mistério pela máquina, a liturgia pelo discurso, a alma pelo sistema. Ao contrário dos teólogos da libertação, Gustavo Corção via na política não um caminho para o Reino, mas um atalho para o pecado – e talvez, em última instância, para a perdição da própria Igreja.
A fé, para ele, não precisava ser útil, aplicável, performática. Ela era um ato interior, um salto no invisível, uma adesão radical ao mistério. O cristianismo que pregava não procurava transformar estruturas sociais, mas salvar almas. Em suas palavras, era necessário “resgatar a infância espiritual”, recuperar a capacidade de maravilhar-se diante do mundo – aquilo que ele chamava de “saúde do espírito”. E foi justamente essa “infância espiritual” que ele não enxergava nos teólogos da libertação, a quem acusava de instrumentalizar a fé em nome de projetos ideológicos.
Se comparado ao Papa Francisco, Gustavo Corção parece pertencer a outra Igreja – mais antiga, mais cerrada, mais desconfiada do mundo. E de fato, em certa medida, pertence. Mas essa comparação revela algo mais profundo: a batalha nunca pacificada entre dois modos de ser católico. Um que desconfia do tempo presente, outro que aposta na sua redenção. Um que enxerga na tradição o último refúgio contra o caos; outro que a vê como instrumento vivo, passível de conversão contínua.
A morte de um papa nunca é apenas biológica – é litúrgica, política, simbólica. Com o Papa Francisco, não se sepulta apenas um homem de carne e ossos, mas uma tentativa, uma gramática, um gesto. Enterra-se o último grande representante de um catolicismo pastoral que ousou articular justiça social e ortodoxia, sem que uma engolisse a outra. E, ao mesmo tempo, abre-se espaço para a rearticulação das forças que sempre buscaram, em nome da pureza doutrinária, silenciar a dimensão terrena do Evangelho.
Mas talvez o que morra com o Papa Francisco não seja apenas um modo de governar a Igreja, e sim uma figura teológica: o papa como ponte. Ponte entre doutrina e mundo, entre liturgia e rua, entre Trento e Medellín. E como toda ponte, sustentada pela tensão. Sua morte reabre a fissura: quem será agora o mediador entre o mistério e a história?
A resposta, talvez, não venha da cúpula, mas das margens. Nas periferias do mundo católico – aquelas mesmas que o Papa Francisco visitou, abraçou e fez escutar –, o cristianismo segue vivo, não como ideologia ou aparato, mas como presença.
Em última instância, a morte do Papa Francisco é um espelho. Reflete uma Igreja dilacerada entre dois impulsos: o de conservar a fé e o de encarná-la. O de guardar o fogo e o de espalhá-lo. E nesse dilema, tão antigo quanto a própria tradição apostólica, talvez esteja o segredo da Igreja: não escolher um lado, mas suportar o peso de ser ambos.
Gustavo Corção, com sua mística do recolhimento, e o Papa Francisco, com sua teologia da saída, são menos antagonistas do que parecem. Ambos denunciaram, à sua maneira, os ídolos do tempo presente – o mercado, o Estado, o ego. Ambos sabiam que não há Igreja viva sem tensão. E ambos, por vias diferentes, apontaram para o mesmo horizonte: um Deus que não cabe em nenhum sistema.