“A esquerda deveria sair do estupor que a acomete e reagir antes que seja tarde demais”. Entrevista especial com Donatella Di Cesare

Fenômeno mundial, a nova direita instrumentaliza a democracia remodelando o povo em chave biopolítica, inspirada na fórmula nacional-socialista, e criando “inimigos supérfluos”. Processo está em curso em Gaza, na Alemanha e nos EUA

Portão de entrada no campo de concentração de Auschwitz (Foto: Wikimedia Commons)

Por: Márcia Junges | Tradução: Luisa Rabolini | 09 Abril 2025

Há tempos está em andamento um processo de despolitização, cuja abstenção nos pleitos é um dos sintomas, bem como a sistemática descredibilização da política e o ódio à democracia, que não são casuais. Para a filósofa italiana Donatella Di Cesare, “a ascensão da direita é possível graças a esse vazio”, no qual prosperam líderes histriônicos antipolíticos, que prometem salvação sem intermédio da política profissional: gerentes, empresários, comediantes, apresentadores de TV e políticos de baixo clero são alguns dos outsiders a ocupar o posto mais alto em inúmeras democracias ocidentais.

Na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Di Cesare evoca o quanto a categoria do ressentimento, pulsão política decisiva, é instrumentalizada pela direita a fim de “seguir esses profetas do engano” como contraponto ao sentimento de traição que nutrem pela esquerda. Na herança de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, o atual momento pode ser lido como uma “suspensão sistemática da democracia que, não por acaso, levou ao triunfo da nova direita. Não se trata de um golpe de Estado, nem de uma ditadura, mas do fechamento da democracia, que está ocorrendo diante de nossos olhos quase sem percebermos”.

O anúncio da aliança Trump-Putin não surpreendeu a pensadora, sobretudo do ponto de vista geopolítico: “Trump decidiu recuperar a Rússia, separando-a da China. Apesar da Europa! Ou melhor, contra a Europa. Nesse horrível cenário de guerra, que está tão próximo de nós e no qual estamos envolvidos desde o início, há dois perdedores: a Ucrânia, reduzida a escombros, e a Europa, que agora talvez já nem exista mais, exceto como um nome, completamente desagregada e enfraquecida”. A reação das lideranças europeias é a pior possível: “converter a indústria automobilística em indústria bélica. Também para responder ao desafio de Trump. Mas é terrível que a opinião pública, após a experiência das duas guerras mundiais (muito europeias), concorde com isso. Isso depende de uma direita muito forte e de uma esquerda agora inexistente”.

Autora de Estrangeiros residentes: uma filosofia da migração (Âyiné, 2020), Di Cesare é uma das vozes que problematiza o drama dos migrantes em nosso tempo: “ser cidadãos não significa pertencer a um grupo específico pelo sangue, nem ser proprietários de uma parte do território nacional. Ser cidadãos significa participar da polis com direitos iguais”. E completa: “Nem é preciso dizer que hoje contam somente os direitos dos cidadãos, enquanto são pisoteados os direitos dos seres humanos que estão do lado de fora, que não têm a cobertura de nenhum pendão, nenhuma bandeira”.

Donatella Di Cesare (Foto: Arquivo pessoal)

Donatella Di Cesare é filósofa, ensaísta e colunista italiana que leciona Filosofia Teorética na Universidade “La Sapienza”, de Roma. É uma das pensadoras mais influentes no debate público italiano e internacional, seja acadêmico, seja midiático. Colabora em vários jornais e revistas, incluindo L’Espresso e il Manifesto. Seus livros e ensaios são traduzidos mundialmente, dentre os quais destacamos: O complô no poder (Aynè, 2022), Vírus soberano? A asfixia capitalista (Aynè, 2020) e Terror e modernidade (Aynè, 2019).

Confira a entrevista.

IHU – Como pode ser caracterizada a nova direita e a limpeza étnica que está promovendo?

Donatella Di Cesare – Não é fácil delinear os traços que caracterizam a nova direita, que agora já se tornou um fenômeno mundial. Em um livro que será publicado no segundo semestre sobre esse tema, indiquei a etnocracia como uma das pedras angulares dessa direita. Trata-se, de fato, de uma redução da democracia: o povo, o demos, o sujeito da democracia, é reduzido a ethnos, ou seja, a uma nação entendida como uma grande família, com laços de parentesco presumido, de pseudoafinidade. O povo é remodelado biopoliticamente de acordo com os contornos étnicos. Infelizmente, na história recente, aquela do século XX, isso já aconteceu. Obviamente estou pensando no nacional-socialismo, que representou o ápice disso. Todas as manifestações de etnocracia deveriam, portanto, nos preocupar, ou melhor, nos alarmar. Em vez disso, somos levados a acreditar que isso é normal e que, afinal de contas, é útil para nós, como cidadãos, para nos protegermos de tudo o que é de fora, que nos assusta. Para nos imunizarmos, estamos dispostos a aceitar a etnocracia, mesmo em suas formas mais cruéis, como a limpeza étnica, ou seja, a remoção ou deportação de massas de “supérfluos inimigos” ou de “inimigos supérfluos”. Esse é o caso de Gaza, mas também é o caso da política proposta pela Alternative für Deutschland (AfD), cujo slogan é Remigração.

IHU – Trump não esconde que gostaria de transformar a Faixa de Gaza em um grande resort, como demonstra o vídeo produzido por IA que o presidente norte-americano publicou em suas redes sociais em 26-02-25. Como analisa esse tipo de atitude e outras que ele vem tomando à frente de seu segundo mandato?

Donatella Di Cesare – O vídeo filmado e relançado por Trump, publicado com orgulho, é simplesmente obsceno, um ultraje às mais de dez mil vítimas deixadas sem sepultamento sob aqueles escombros. Temo que o segundo mandato será diferente do primeiro, porque Trump, desde o início, mostra se comportar como um soberano, cercado por uma corte, ou melhor, um clã, sem limites ou restrições ao seu poder. Os freios e contrapesos da democracia estadunidense, que deveriam salvar a constituição e manter as instituições, até agora não funcionaram.

IHU – Como percebe a aliança Trump-Putin na reconfiguração da geopolítica mundial? E qual é a sua análise sobre o protagonismo conferido a Elon Musk nesse cenário?

Donatella Di Cesare – A aliança Trump-Putin não me surpreendeu, especialmente de um ponto de vista geopolítico. O verdadeiro confronto é entre os EUA e a China, que até agora desempenhou um papel secundário e se limitou a apoiar Putin, principalmente com ajudas técnico-militares. Portanto, Trump decidiu recuperar a Rússia, separando-a da China. Apesar da Europa! Ou melhor, contra a Europa. Nesse horrível cenário de guerra, que está tão próximo de nós e no qual estamos envolvidos desde o início, há dois perdedores: a Ucrânia, reduzida a escombros, e a Europa, que agora talvez já nem exista mais, exceto como um nome, completamente desagregada e enfraquecida.

IHU – O rearmamento da Europa é uma realidade cujas consequências podem ser fatais para a humanidade como um todo. Como podemos entender que uma medida bélica esteja sendo tratada como uma ação de paz?

Donatella Di Cesare – Justamente isso é inconcebível. No entanto, entramos em uma época, profetizada por George Orwell, na qual paz significa guerra, e vice-versa. Na verdade, essa inversão vem sendo preparada há tempo. Já em anos passados, foram chamadas de “missões humanitárias” aquelas que, para todos os efeitos, eram operações militares. Eu poderia dar muitos exemplos, inclusive terminológicos: a manutenção da paz sempre implica o envio de tropas que poderiam estar envolvidas em um conflito. O ápice, no entanto, foi atingido nestes últimos tempos. É possível que a liderança europeia, que a meu ver tem enormes responsabilidades, consiga convencer a opinião pública da necessidade desse rearmamento.

Vi que, por exemplo, muitos na Alemanha estão persuadidos e, de fato, orgulhosos. Tanto que os alemães estão dispostos a passar por cima do que eles chamam de Schuldenbremse, o freio da dívida, para poder investir 500 bilhões de euros no rearmamento. Uma verdadeira loucura e um verdadeiro suicídio. O plano da liderança europeia é bastante claro: converter a indústria automobilística em indústria bélica. Também para responder ao desafio de Trump. Mas é terrível que a opinião pública, após a experiência das duas guerras mundiais (muito europeias), concorde com isso. Isso depende de uma direita muito forte e de uma esquerda agora inexistente.

IHU – Considerando o panorama recente das maiores democracias liberais, como você percebe a deriva do populismo em direção a formas autoritárias e, em última instância, novas expressões fascistas?

Donatella Di Cesare – Escrevi recentemente um livro sobre esse tema que também foi publicado no Brasil pela editora Ayiné com o título O complô no poder (Aynè, 2022). Trump é o primeiro a usar a arma do complô para governar – o complô do Deep State contra nós… É interessante investigar o ressentimento que leva as pessoas a seguir esses profetas do engano. Alguns expoentes da Escola de Frankfurt – eu os menciono em meu livro – estiveram entre os primeiros a examinar esse complexo de mecanismos. De fato, eles tinham na bagagem a experiência do Terceiro Reich e encontravam alguns elementos na democracia estadunidense.

IHU – O caso da Itália é emblemático por ter sido o berço do fascismo histórico. Entretanto, sabemos que as reconfigurações desse fenômeno apontam para outras realidades não menos perigosas. Como analisa a situação italiana, especificamente?

Donatella Di Cesare – Exatamente cem anos após o nascimento do fascismo em 1922, no país de Mussolini voltaram ao governo os fascistas disfarçados de pós-fascistas. Isso foi um trauma para muitos, especialmente porque o partido de Meloni, Fratelli d’Italia, tinha o 4% e agora chega a 30%. Nesse sentido, a Itália sempre se revela um laboratório político, porque precede e antecipa politicamente o que acontece em outros países europeus e não europeus. Acredito que o que levou a essa situação sem precedentes foi, em primeiro lugar, o período do governo técnico de Draghi, uma verdadeira tecnocracia, percebida por muitos como um esvaziamento da política. Mas, no fundo, há o desvio de massas das classes mais pobres e mais fracas da esquerda para a direita. Aqueles que se sentiram e ainda se sentem traídos pela esquerda – que sentem um forte ressentimento, pulsão política decisiva – votam com toda convicção na direita. Por um tempo, o Movimento Cinco Estrelas, de base populista, interceptou todo esse descontentamento. Mas, com o passar do tempo, houve um transbordamento para a direita.

IHU – Em Estrageiros residentes você propõe uma filosofia da imigração. Poderia recuperar em que consiste essa proposta e quais os principais desafios para que ela se concretize?

Donatella Di Cesare – Na onda da grande crise migratória, que marcou a opinião pública europeia em 2015, escrevi o livro Estrangeiros residentes, também publicado no Brasil. Ao longo dos anos, discuti suas teses por toda a Europa, nos mais diversos contextos: salas universitárias, festivais culturais, reuniões de organizações humanitárias, estúdios de televisão, salas parlamentares, cais de portos. Sempre fiquei impressionada com a quantidade de esquemas e clichês disseminados no debate, por exemplo, a suposição de que são os cidadãos de um estado nacional que decidem quem deve ser admitido e quem deve ser rejeitado.

Estou convencida de que esse é um dos motivos que possibilitou a disseminação da violenta retórica contra os estrangeiros. Além das fronteiras, tentei questionar o poder soberano dos cidadãos de dizer “não”. Se é possível escolher privadamente com quem conviver, não se pode pretender decidir com quem coabitar. Embora atingindo seu apogeu no nazismo, essa pretensão não falta nos estados nacionais, que há anos vêm travando uma guerra não declarada contra os migrantes. Mas com base em que é possível isolar uma comunidade democrática?

IHU – Em que aspectos essa concepção de estrangeiros residentes abre oportunidades de se repensar as categorias de cidadania e direitos humanos?

Donatella Di Cesare – Ser cidadãos não significa pertencer a um grupo específico pelo sangue, nem ser proprietários de uma parte do território nacional. Ser cidadãos significa participar da polis com direitos iguais. Fechar as portas, excluir, tem efeitos desastrosos. A segregação também é sempre uma autossegregação. Uma comunidade democrática que pensa que pode assim se imunizar do exterior logo vai à deriva. Nem é preciso dizer que hoje contam somente os direitos dos cidadãos, enquanto são pisoteados os direitos dos seres humanos que estão do lado de fora, que não têm a cobertura de nenhum pendão, nenhuma bandeira.

IHU – Segundo Giorgio Agamben, as democracias liberais foram concebidas para operarem dentro do paradigma da soberania, mas também no paradigma da governamentalidade. Por isso, a qualquer momento o estado de exceção pode ser legitimamente convocado e estabelecer a exceção como regra, dando origem a derivas autoritárias que são sombras permanentes nesse sistema político. Como entender esse paradoxo que sustenta as democracias?

Donatella Di Cesare – Penso que Giorgio Agamben teve o mérito de relançar uma intuição brilhante de Walter Benjamin. Refiro-me às Teses sobre o conceito de história, as páginas que, ainda em Paris, Benjamin escreveu pouco antes de sua morte, quando sabia que estava cercado. Em uma tese, ele fala justamente do “estado de exceção”, Ausnahmezustand em alemão, em que a suspensão da democracia, nas mãos da direita, pode se tornar a regra.

Não é coincidência o fato de ele falar exatamente ali sobre o fascismo. A esquerda deveria sair do estupor que a acomete e, em vez de confiar no progresso inscrito na história, reagir antes que seja tarde demais. Acredito que durante todo esse último período vivemos uma suspensão sistemática da democracia que, não por acaso, levou ao triunfo da nova direita. Não se trata de um golpe de Estado, nem de uma ditadura, mas do fechamento da democracia, que está ocorrendo diante de nossos olhos quase sem percebermos.

IHU – Um elemento histriônico permeia líderes que se dizem antipolíticos ou mesmo representantes de uma nova política, sobre a qual nunca sabemos realmente em que consiste. Como você entende essa característica outsider de líderes como Trump, Bolsonaro, Milei, Orbán e outros?

Donatella Di Cesare – O processo de despolitização tem sido imparável há tempo. Basta pensar no abstencionismo, que é um dos muitos sinais disso. Acredito que esse não seja um processo casual. O descrédito lançado sobre a política e o ódio à democracia não são processos casuais. A ascensão da direita é possível graças a esse vazio. Aproveitam-se disso os novos líderes histriônicos que se apresentam como gerentes, empresários…, mas, de qualquer forma, sempre como outsiders incontaminados pela política. Portanto, eles querem ser figuras redentoras que prometem a salvação – em primeiro lugar, da política e dos políticos! O líder e o povo, sem intermediários. Basta pensar no caso paradigmático de Bolsonaro e naquele atual de Trump.

IHU – Filmes como “Zona de interesse”, do diretor Jonathan Glazer, evocam a instrumentalização e objetificação da vida com sua conversão em vida nua e matável. Vivendo ao lado de Auschwitz, Rudolf Höss e sua família retomam uma discussão trazida por Arendt ao analisar o caso Eichmann, de que a banalidade do mal pode ser praticada por todos e se tornar irresponsável sob o argumento da ação por dever. Em que medida fatos históricos como o Holocausto apontam para a possibilidade de que a barbárie possa ser reconfigurada e ser aceita como um mal menor em nosso tempo?

Donatella Di Cesare – É exatamente isso! Eu também vi Zona de Interesse sob essa perspectiva, em que a câmera focaliza a vida cotidiana dos Hösses, sua casa arrumada, seu jardim bem cuidado, enquanto a poucos metros de distância, no campo de concentração ao lado, as oficinas de Hitler funcionam a pleno vapor, processando cadáveres até serem reduzidos a fumaça. Esse paradigma não terminou com o Holocausto, mas se manteve. Não se trata apenas da banalidade do mal praticada sem remorsos. É, acima de tudo, o duplo binário: de um lado, os cidadãos, aqueles que vivem dentro dos limites da zona de conforto, os protegidos; de outro lado, os não cidadãos, os supérfluos, aqueles com os quais o mundo não sabe o que fazer e que podem ser expostos a tudo, pandemias, guerras, violências, miséria, fome. Podemos aceitar um mundo dividido em duas humanidades, ou melhor, em humanos, protegidos e imunizados, e não humanos, expostos e deixados à deriva?

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