A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 4º Domingo do Tempo de Quaresma, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 15,1-3.11-32.
“Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2)
Com seu talento artístico, Lucas nos relata a Parábola do Pai Misericordioso, contada por Jesus, de tal forma que, ao longo da história, as pessoas sempre se sentiram tocadas e provocadas por ela.
A parábola é a expressão humana da misericórdia divina. A ênfase é menor no filho do que no Pai. Na verdade, Jesus “pinta” o rosto do seu Pai e nosso Pai. Todos os detalhes da figura do Pai-Mãe – seus gestos afetivos de acolhida – falam do amor de Deus pela humanidade, amor que existiu desde sempre e continua.
Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiência sadia de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, normalmente, as diferentes religiões projetam sobre a divindade.
Esta é a melhor imagem de Deus: um pai comovido até suas entranhas, acolhendo os seus filhos perdidos e suplicando a todos que se acolham mutuamente com o mesmo carinho e afeto; um pai compassivo que busca conduzir a história da humanidade até a festa final onde se possam celebrar a vida e a libertação de tudo o que escraviza e degrada o ser humano.
Esta experiência da compaixão de Deus foi o ponto de partida de toda a atuação revolucionária de Jesus que o levou a introduzir na história da humanidade um novo princípio de atuação: a compaixão.
(Nota: as traduções bíblicas empregam indistintamente os termos “misericórdia” e “compaixão”. Melhor falar de compaixão, pois sugere maior proximidade: padecer com aquele que sofre. “Ter misericórdia” pode fazer pensar em uma relação que se estabelece com quem está mais abaixo).
É a compaixão o princípio que deve inspirar a conduta humana. Ela não é, para Jesus, uma virtude a mais, mas a única maneira de se assemelhar a Deus, o único modo de olhar o mundo como Deus o olha, a única maneira de sentir as pessoas como Deus as sente, a única forma de reagir diante do ser humano como Deus reage. Fomos criados à imagem e semelhança do Deus compassivo.
Sem o horizonte inspirador da compaixão divina o ser humano deixa aflorar o que é mais destruidor: ódio, intolerância, preconceito...
Na parábola, Jesus descreve duas atitudes que todos nós conhecemos: os dois filhos representam os dois polos que também encontramos em nós mesmos. Um dos polos é nosso desejo de escapar dos limites impostos por regras e leis: o filho mais jovem quer fugir das limitações familiares e simplesmente conhecer a vida com todos seus altos e baixos; e há o outro polo, aquele que se aborrece com a misericórdia do pai.
O filho mais jovem não quer viver sua vida conforme as expectativas dos outros, quer viver sua própria vida e desfrutá-la ao máximo. Esse anseio por vitalidade, por uma vida no aqui e agora, de não querer se preocupar com o futuro, é típico dos nossos tempos.
Mas, essa atitude leva o filho a perder-se a si mesmo. Ele vive desenfreadamente: perde toda estrutura e estabilidade, desperdiça sua riqueza, desgastando-se com coisas inúteis, que logo o esvaziam e passa a sentir-se cada vez pior. Ele, que sempre quis estar livre, agora precisa submeter-se à dependência de um estranho para sobreviver; no fim, encontra-se num chiqueiro entre os porcos, que, para os judeus, era a pior degradação que um ser humano poderia cair.
O “filho mais novo” parte para o exterior, “para uma terra longínqua”. Pensa resolver seus problemas partindo para longe de seu coração profundo, para longe de si mesmo. Deixa-se arrastar por um impulso desordenado, que o domina por inteiro. Perdeu toda a liberdade verdadeira.
Mas, parte também para longe de sua fonte: o Pai. Passa a decidir sua vida sem referência alguma ao lar, às relações filiais e fraternas; não pode mais se alimentar com o pão da sua casa, mas com a comida que os porcos comiam. É assim que vai viver a fome interior e exterior.
A conversão do filho mais novo só pode ser vivida na volta do exílio, no retorno ao centro. O caminho de volta é expresso em poucas palavras, de maneira extremamente densa, fulgurante: “e, caindo em si, disse...”. Ele faz o caminho em sentido inverso: volta ao seu coração, à sua fonte.
Ele próprio é quem descobre o seu caos, sua desordem. Através de um doloroso e, provavelmente, longo caminho, sai da ilusão sobre si mesmo e descobre sua verdade. Retoma contato com o seu coração pro-fundo. No silêncio, escuta, deixa-se ensinar e, então, cavando fundo em si, como se cava em um campo, descobre o tesouro, a fonte de sua existência, a presença do Pai. Embora não o conhecesse totalmente, encontra um Pai justo, que nunca o expulsará. Pela primeira vez, toma conhecimento de um amor seguro, estável, sólido que, ao mesmo tempo, é verdadeiro.
Nesse momento, iluminado a partir do interior, pode dizer: “Pequei”. E o faz de maneira honesta, sem reserva, sem se justificar. Não esconde mais a sua verdade interior. Agora, o seu olhar modificou-se: pode assumir aquilo que é, aquilo que viveu.
A misericórdia do pai é uma misericórdia paciente, que sabe esperar; e é, ao mesmo tempo, uma misericórdia inquieta, apressada, que corre ao encontro do filho para devolver-lhe a filiação perdida. Por isso ordena aos servos que sejam eliminados imediatamente todos os sinais da degradação e da escravidão do filho e todos os sinais dos sofrimentos e das humilhações que sofreu.
O pai veste o filho com todos os sinais de liberdade; a liberdade que fora buscada longe de casa, agora é encontrada no calor do seu próprio lar.
Por outro lado, “filho mais velho” exprime vivamente a sua revolta: “jamais transgredi um só dos teus mandamentos”. O problema fundamental dele é acreditar-se sem pecado. Crê-se justo e, consequentemente, possui um coração de justiceiro. Ele está cheio de si mesmo e se engana.
Jamais encontrou o amor, provavelmente porque foi incapaz de deixar-se questionar ou de se converter. Busca, antes de tudo, um legalismo e um perfeccionismo de ordem superficial e ilusória. Assim, fica de fora, sozinho e sem alegria, longe do relacionamento e da festa.
O Pai faz a festa para o filho perdido e reencontrado. Mas ama também aquele que ficou em casa, ao seu lado, e que deixou seu coração endurecer. Ele vai ao seu encontro, vai para pedir que participe da alegria do reencontro. Não o deixa na sua solidão e na sua rejeição. Não acusa seu pecado.
O Pai vai também procurar aqueles que tem um coração de pedra, egoístas e invejosos. O surpreendente não está só no fato do pai correr ao encontro do filho mais moço, e sim que tenha sido compreensivo com um homem tão duro, frio e rígido como o filho mais velho, e que continua a chamá-lo de “filho”.
O pai não repreende e nem acusa seu primogênito; ele o convida para a alegria – e esse convite se estende a nós, que também temos esse lado do irmão mais velho. A parábola não diz se o irmão mais velho aceitou o convite.
Deus não nos força a nada. Ele nos convida: se aceitarmos o desafio da parábola e a ouvirmos com o coração, ocorrerá uma ampliação do nosso espaço interior confinado, o nosso coração se abrirá. Então poderemos perdoar a nós mesmos e aos outros; o rosto divino da misericórdia se resplandecerá em nós. Seremos presenças misericordiosas.
Todos nós deixamos transparecer as marcas de cada um dos personagens da parábola.
- Considerar, diante de Deus, quando você vive atitudes do filho mais novo, do mais velho e do pai.