29 Março 2025
"Desvelar e criticar a inversão do conceito de liberdade-libertação que ocorre no nosso tempo é uma tarefa urgente. Só que não podemos criticar essa inversão sem, ao mesmo tempo, apresentarmos uma noção mais humana e operacional de libertação e liberdade", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
No final do mês de fevereiro, Jeff Bezos, o multibilionário dono do Amazon e do jornal Washington Post, escreveu que o seu jornal não vai mais publicar opiniões contrarias às “liberdades pessoais e ao livre mercado” em seus editoriais. Assim como Elon Musk usa a sua plataforma X para lutar contra grupos e pessoas que combatem o que eles chamam de “liberdade pessoais e ao livre mercado”. Seria a luta pela libertação contra as opressões do Estado “socialista” e dos que defendem os direitos humanos de todas pessoas.
Nas décadas de 1990 e de 2000, os Estados Unidos e seus aliados entraram ou iniciaram guerras em nome da defesa da democracia e liberdade. E essa noção de liberdade “liberal” estava associada à noção de democracia ocidental. Hoje, a luta pela liberdade defendida pelo governo Trump e os bilionários das big techs não está ligada mais à democracia, mas às liberdades pessoais – por ex., a de defender opiniões consideradas por muitos como racistas ou sexistas – e ao livre mercado, (na prática, o projeto de ricos não pagarem impostos sobre a renda e, por outro lado, reduzir gastos sociais do Estado para manter o equilíbrio fiscal após a redução dos impostos dos ricos).
Em resumo, aumentar a liberdade individual e reduzir o tamanho e o papel do Estado (mantendo basicamente o papel da segurança interna na defesa dos direitos de propriedade e nas guerras). Como eu comecei a discutir no artigo anterior, Bertrand Russel nos apresenta uma visão sobre a liberdade que nos ajuda a entender o que está acontecendo: “A liberdade em geral pode ser definida como a ausência de obstáculos à realização dos desejos. Assim, a liberdade completa só é possível para a omnipotência; a liberdade praticável é uma questão de grau, dependente tanto das circunstâncias externas como da natureza dos nossos desejos”.
Diante dessa constatação empírica de que há obstáculos, há dois caminhos a escolher: crer que é possível chegar à liberdade completa ou quase completa na medida em que um ser (indivíduo ou coletivo) consiga a ser onipotente ou quase onipotente. O problema está em encontrar ou construir esse ser onipotente que realizaria essa liberdade (entendida como realização do desejo) plena. A noção de Deus/Ser onipotente está associada a essa liberdade/desejo no mundo moderno. Um outro caminho, que é espiritualmente mais difícil, é reconhecer que essa liberdade plena desejada é um conceito transcendental, ou utópico, impossível de ser realizada no interior da história. Nem no nível do “quase”.
A diferença entre um emocional ou psicologicamente adolescente e um adulto é o aceitar ou não o princípio da realidade, isto é, o de reconhecer que há desejos bons que nos motivam a tentar chegar ao final da linha, mas que, na verdade não são humanamente possíveis. Isto é, a noção de onipotência pode ser pensada, mas não realizada. Querer construir ou atingir à onipotência produz sacrifícios de muitas vidas humanas e o seu resultado será o fracasso, e muitas vezes destruidor de uma ordem social eticamente humana.
O problema é que a nossa cultura ocidental está marcada pelo narcisismo e infantilismo egoístico; espiritualmente imaturo. A grande maioria insiste em encontrar esse Onipotente. E como seria então essa construção da onipotência nos dias de hoje? Teria que ser um “ser” onipotente que teria o poder político-militar absoluto (e para isso lutaria contra a democracia), com riqueza quase absoluta concentrada nas mãos de poucas pessoas (e para isso luta contra a distribuição de riqueza) e conhecimento infinito fruto da inteligência artificial “absoluta”. O grande problema dessa onisciência da IA é que ela não sabe a diferença entre o que é desejo imaturo e o que é sabedoria.
Com a noção de liberdade como a realização de todos desejos, que predomina hoje, o caminho de libertação é entendido como a necessária destruição dos obstáculos aos desejos. O desejo de viver em um “paraíso” puro, – sem os sub-humanos (negros, indígenas, gays, imigrantes de outras culturas e crenças, ...), sem gastos sociais com pobres e “imprestáveis” e sem diferenças políticas e culturais conflitantes – demanda eliminar os “inimigos”. Entre os inimigos, estão também aqueles que pertencem à comunidade dos “vencedores”, mas caíram no erro de acreditar na ciência que prevê o colapso ambiental e social se não mudarmos o modo como vivemos, produzimos e desejamos.
O “sequestro” da noção de liberdade, que toda humanidade deseja, é um dos desafios teológico-espiritual fundamentais do nosso tempo. Em nome dessa noção de liberdade, a destruição dos inimigos e do próprio meio ambiente é anunciada como o caminho da libertação.
Desvelar e criticar a inversão do conceito de liberdade-libertação que ocorre no nosso tempo é uma tarefa urgente. Só que não podemos criticar essa inversão sem, ao mesmo tempo, apresentarmos uma noção mais humana e operacional de libertação e liberdade.