13 Março 2025
O que aprendemos com os mais de 700 mil mortos no Brasil e milhões de vidas perdidas no mundo?
O artigo é de Márcio Cabral, psicanalista e professor, membro diretor do Instituto SIG – Psicanálise e Política e foi secretário de Estado no governo Tarso Genro, publicado por Sul21, 12-03-2025.
Há cinco anos, no dia 11 de março de 2020, a OMS declarou oficialmente que estávamos diante de uma pandemia global. Naquele momento, a humanidade se viu obrigada a parar, ou pelo menos fingir que parava. A promessa era de que sairíamos dessa crise diferentes, mais conscientes, solidários e prontos para construir um mundo melhor. O “novo normal” se tornou o mantra das esperanças e também das ilusões.
Cinco anos depois, o que restou do novo normal? O que aprendemos com os mais de 700 mil mortos no Brasil e milhões de vidas perdidas no mundo? O que ficou do luto coletivo, da angústia do isolamento e das promessas de que seríamos uma sociedade mais empática e justa? A resposta, infelizmente, não é otimista. O mundo pós-pandemia não se tornou mais solidário – tornou-se, em muitos aspectos, ainda mais hostil.
Se o coronavírus atingiu nossos corpos, o negacionismo adoeceu mentes e corroeu o debate público. Enquanto médicos tentavam salvar vidas e cientistas corriam contra o tempo para desenvolver vacinas, um exército de charlatães, guiados por interesses políticos e econômicos, espalhava desinformação. A pseudociência se tornou uma aliada estratégica do bolsonarismo, que não apenas ignorou os alertas, mas ativamente promoveu o caos.
Vimos o delírio da cloroquina, a ridicularização do uso de máscaras e a sabotagem da vacinação. A perversidade atingiu seu ápice quando um governo deliberadamente atrasou a compra de imunizantes e expôs a população a uma política de morte. Mas a desinformação não morreu com o fim do governo Bolsonaro. O negacionismo virou método. Hoje, se não questionamos a ciência sobre vacinas, questionamos sobre o clima, a fome, a pobreza – como se os fatos estivessem abertos à mera opinião.
Cinco anos depois, o negacionismo segue forte, agora mirando outro alvo: o colapso climático. Se antes diziam que o vírus não existia, agora afirmam que as mudanças climáticas são apenas ciclos naturais, que não há desmatamento significativo na Amazônia, que não há relação entre eventos climáticos extremos e a ação humana. O método é o mesmo: distorcer a realidade, criar um inimigo externo (seja a China, o globalismo ou as universidades) e transformar a ignorância em um projeto político.
O mundo do trabalho mudou, mas não na direção da dignidade. A pandemia acelerou um processo já em curso: a uberização da economia e a retirada de direitos. Quando os escritórios fecharam, os trabalhadores foram empurrados para o teletrabalho, uma solução que parecia libertadora, mas rapidamente revelou sua face exploratória. O sonho de trabalhar de casa se transformou no pesadelo da hiperexploração.
O home office significou para muitos a dissolução das fronteiras entre vida pessoal e trabalho. Horários estendidos, ausência de direitos, custos transferidos para o trabalhador. O que se vendia como flexibilidade era, na verdade, mais um passo rumo à precarização.
E os que não podiam trabalhar de casa? Motoristas de aplicativos, entregadores e outros trabalhadores essenciais foram lançados à própria sorte. O discurso da resiliência e do empreendedorismo foi usado para esconder a falta de políticas públicas de proteção. O novo normal para esses trabalhadores foi a fome, a insegurança e a dependência de gorjetas para sobreviver.
Na educação, a pandemia criou um abismo geracional. Milhões de crianças ficaram sem acesso ao ensino adequado, aprofundando desigualdades. Enquanto algumas escolas privadas mantinham aulas online estruturadas, crianças da periferia lidavam com a falta de internet, de equipamentos e de qualquer suporte educacional. O resultado? Um retrocesso que afetará por décadas a formação dessas gerações.
A educação brasileira ainda não se recuperou. O impacto no aprendizado é evidente, mas o discurso da meritocracia continua forte: exige-se que crianças que perderam anos letivos tenham o mesmo desempenho daquelas que nunca precisaram se preocupar com uma conexão de internet instável ou com a fome. O novo normal, afinal, foi apenas a manutenção do velho abismo social.
Durante a pandemia, um sentimento de coletividade emergiu. Batíamos palmas para os profissionais de saúde, arrecadávamos alimentos, falávamos sobre empatia e valorização da vida. Acreditamos que a pandemia nos ensinaria a importância do bem comum, da ciência, da solidariedade. Mas, passado o choque inicial, o que restou dessa promessa?
A solidariedade foi institucionalizada na caridade e não na transformação social. Ao invés de políticas públicas robustas para enfrentar as desigualdades agravadas pela pandemia, vimos o fortalecimento do assistencialismo pontual, de soluções temporárias que não atacam as raízes do problema.
O individualismo voltou com força total. A pandemia reforçou a mentalidade do “cada um por si” – seja no trabalho, onde a competitividade e a precarização são naturalizadas, seja no meio ambiente, onde a destruição segue avançando sob justificativas de desenvolvimento. Se antes falávamos em coletividade, hoje vemos governos e empresas fingirem que os problemas sociais e ambientais são apenas externalidades inevitáveis.
Cinco anos depois, percebemos que não aprendemos tanto assim. O mundo pós-pandemia não se tornou mais justo ou solidário. Ele se tornou mais acelerado, mais indiferente e, ironicamente, ainda mais desigual.
Se a pandemia nos mostrou a importância da ciência, também mostrou que interesses políticos e econômicos são capazes de distorcer qualquer fato. O negacionismo não foi derrotado; apenas mudou de alvo. Agora, a crise climática se tornou a nova trincheira da desinformação.
As tragédias ambientais se multiplicam: enchentes, secas, temperaturas recordes. O planeta grita, mas a resposta dos grandes líderes é a mesma da pandemia: minimizar, negar, lucrar com a destruição. Se na pandemia o interesse era preservar a economia em detrimento da vida, no colapso ambiental o raciocínio se repete.
Empresas seguem queimando florestas enquanto promovem campanhas verdes. Governos flexibilizam leis ambientais enquanto discursam sobre sustentabilidade. Assim como na pandemia, a estratégia é jogar a responsabilidade no indivíduo. Se antes diziam que cabia a cada um se proteger sem depender do Estado, agora dizem que a crise climática pode ser resolvida com pequenas ações individuais, enquanto os grandes destruidores seguem ilesos.
Sabemos que o mundo não mudou para melhor por vontade própria. O que conquistamos foi fruto da luta – da mobilização pela vacina, da resistência contra o negacionismo, das batalhas por direitos em meio à crise.
A história não segue um caminho linear de progresso. Se queremos um futuro menos desigual, menos destrutivo e menos regido pela lógica do lucro acima da vida, precisaremos lutar por ele. Porque, se a pandemia nos ensinou alguma coisa, foi que esperar pela solidariedade espontânea da humanidade não é suficiente. É preciso organizá-la.