12 Março 2025
"'America first!' Não há fraternidade do outro lado da fronteira. Tudo gira em torno do interesse estadunidense", escreve Anne Soupa, biblista, em artigo publicado por Garrigues et Sentiers, 07-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vocês certamente não ficarão surpresos com a preocupação expressa nesta (longa) carta. A ascensão de regimes autoritários e, em particular, as palavras e as decisões de D. Trump, não apenas ameaçam as relações entre comunidades e Estados, mas também colocam em questão os próprios fundamentos do cristianismo (mesmo que isso não impeça seus líderes de multiplicar os sinais de fidelidade a um cristianismo de fachada). O que me interessa não é tanto o destino das Igrejas, mas aquele de um cristianismo secularizado, o que muitas vezes é definido como “valores cristãos”.
O cerne do cristianismo é a fé na ressurreição de Cristo. Foi prometido que haverá a nossa ressurreição, porque, criados à imagem e semelhança de Deus, só podemos retornar a Ele. Aos olhos do Pai, de quem todos os seres humanos são filhos e filhas, os fortes não valem mais do que os fracos. Existe uma fraternidade universal, fonte de igual dignidade e iguais direitos.
Ao contrário do que às vezes é dito, o cristianismo não faz a apologia da fraqueza ou da pobreza. A força, quando direcionada para a criação de novas riquezas, é um talento a ser aproveitado. Mas ele nos lembra que a humanidade não é digna desse nome se oprimir ou deixar uma parte das pessoas à margem. Ele diz: “não sem o outro”, porque “o outro é amado tanto quanto eu”.
O fato de o cristianismo ter se secularizado, com as autoridades públicas assumindo a responsabilidade pela saúde e educação, adotando regimes democráticos e políticas de redistribuição social, não significa que tenha sido perdido. Suas intuições evangélicas impregnaram profundamente a sociedade. Mas esse cristianismo secularizado, que pode ser resumido no lema da França: “Liberté, égalité, fraternité”, agora está sendo questionado.
Em primeiro lugar, a liberdade. Quem não sabe que a liberdade termina quando esbarra naquela do próximo?
No entanto, a Gafam (as cinco maiores multinacionais da Internet ocidental), com seus vínculos estreitos com o governo dos EUA, está tocando uma melodia libertária que tende a proibir a proibição. Não é difícil entender que essa liberdade absoluta permitiria aos fortes oprimirem com toda tranquilidade.
Por outro lado, os países democráticos reconhecem a liberdade dos povos de escolher seu próprio destino.
A invasão da Ucrânia e a ambição de anexar a Groenlândia demonstram a negação desse princípio, em favor da ganância do mais forte. Como não lembrar o assassinato de Nabote, morto pelo rei Acabe para tomar posse de seu vinhedo (1 Reis 21)?
Depois, há a igualdade, a igualdade dos direitos e dos deveres. A lei garante isso. Nenhum privilégio, nenhuma corrupção, nenhuma prerrogativa especial, a menos que seja estritamente regulada por lei, precisamente por razões de justiça social.
Longe dessa concepção, D. Trump libertou os desordeiros do Capitólio, autorizou seus funcionários a corromper seus colegas estrangeiros e nomeou juízes favoráveis a ele. Para ele, tudo pode ser comprado. O dinheiro substituiu a igualdade.
E, finalmente, a fraternidade. Talvez é aqui que a ameaça se torna mais clara. Embora os Estados sejam obviamente soberanos quando se trata de regular sua política migratória, o aumento do uso da violência e do desprezo demonstra que, para D. Trump, os seres humanos não existem ou não passam de presas.
“America first!” Não há fraternidade do outro lado da fronteira. Tudo gira em torno do interesse estadunidense.
E não nos esqueçamos de que são os não estadunidenses que financiam a enorme dívida dos EUA. É tentador lembrar a parábola do rico mau e do pobre Lázaro (Lucas 16,19-31). Eu também poderia mencionar a pouca consideração demonstrada por esse poder, assim como por outros poderes autoritários, pela verdade dos fatos, pelos direitos das mulheres e das minorias sociais.
Como podemos dialogar, trocar opiniões, assinar tratados, quando a confiança na palavra dada está sendo corroída e até perdida? Não nos esqueçamos de que o evangelista João chama Jesus de “o Verbo” ou “a Palavra”.
Como já vimos, quando se trata de desinformação, Trump é igual a Putin. Ambos distorcem a verdade, zombam da lei, acusam os outros do que eles mesmos fazem e só respeitam os fortes.
Sim, diante dessas derivas, o cristianismo está correndo grande perigo. E isso preocupa especialmente os europeus. Em primeiro lugar, porque a Europa é uma presa para D. Trump, mas também porque ele está criando imitadores, movidos pela embriaguez do “vale tudo”.
Mesmo na Europa, os políticos, as mídias e os cidadãos comuns já estão se deixando levar pela tentação. As relações comerciais, sociais e políticas correm o risco de serem influenciadas por essas relações mais agressivas, ao custo de mentiras ou ciladas organizadas para desestabilizar um adversário. É isso que queremos?
Esta carta é, portanto, um apelo por um cristianismo assertivo, com ou sem referência a uma instituição, mas firmemente ancorado em suas opções essenciais, a construção de uma humanidade fundada no direito e atenta ao bem comum.
Estou convencida de que se as instituições cristãs e os fiéis fizerem ouvir suas vozes, em sua vida social, nas urnas, se reafirmarem sua adesão incondicional à mensagem do Evangelho, as democracias também se fortalecerão.
De fato, acredito que quanto mais a fonte dos valores, o Evangelho, fluir em abundância, melhor irrigará o solo que a abriga. Se forem mais bem irrigadas, nossas democracias se sairão melhor. O que as aflige hoje é a proliferação de interesses privados. Falta vontade de promover o bem comum.
Mas, entre Deus e o bem comum, será que sabemos exatamente qual é a diferença? O que o cristianismo pode infundir com o altruísmo e a atenção aos outros só pode fortalecer o bem comum e, portanto, a coesão democrática.
Quem, no mundo cristão de hoje, assume a responsabilidade de abrir o acesso à fonte? Certamente, o Papa Francisco. Já durante o primeiro mandato de D. Trump, e novamente nos últimos dias, ele se opôs abertamente às suas escolhas ideológicas. Apenas um exemplo. Em uma carta pastoral aos bispos estadunidenses de 11 de fevereiro de 2025, que teve pouquíssima repercussão na imprensa de língua francesa, ele se opôs frontalmente à deportação em massa de migrantes e refugiados. Reportando-se à encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade humana (2020), o papa baseia toda identidade social, pessoal e coletiva na dignidade de todo ser humano.
Além disso, em resposta ao vice-presidente J.D. Vance, que se referiu à ordo amoris de Santo Agostinho para afirmar que a caridade começa com o amor para si mesmos e se estende em círculos para toda a humanidade, Francisco toma o exemplo do Bom Samaritano. Aquele que vem em auxílio do homem ferido não é o “vizinho próximo”, mas o “vizinho distante”. A lei da proximidade, portanto, não é assim tão absoluta como alguns gostariam de nos fazer crer.
O presidente da Conferência Episcopal dos EUA, por sua vez, expressou “preocupação” pelas medidas de Trump em matéria de migração, pena de morte e meio ambiente. E o presidente da Comissão Episcopal para as Migrações denunciou uma violação da “lei moral”.
Essas vozes não devem ser as únicas. Na Europa, as nossas vozes institucionais e individuais podem e devem se unir, de uma forma ou de outra. Chega um momento em que o interesse maior deve silenciar as divergências. “Todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”, disse Jesus (Mt 12,25).
Nas mídias sociais, vejo muitos insultos “coloridos” contra D. Trump. Mas é preciso que seus autores vão além e defendam, mesmo a alto custo, esse cristianismo que sustenta a vida. Pois esse é o bem maior.
Mais uma vez, o mundo não é perfeito e a lei do mais forte não nasceu hoje. Mas as muitas medidas corretivas adotadas pelas sociedades ocidentais atenuaram tudo isso porque eram sustentadas pelos valores do Evangelho.
É fundamental que esses valores não desvaneçam da nossa consciência.
Essa é a nossa responsabilidade.