28 Fevereiro 2025
A metodologia de Paulo Freire é uma boa hermenêutica para a leitura popular da Bíblia, permitindo uma interpretação cultural transformadora da Bíblia e da fé.
O artigo é de Evaldo Luis Pauly, doutor em educação pela UFRGS. Autor, entre outros livros, de A Bíblia se explica sozinha (Sinodal), publicado por A Terra é redonda, 26-02-2025.
Pode-se relacionar fé e política a partir da teologia luterana com sua tradicional dialética “fé e razão”, e também da pedagogia de Paulo Freire com sua dialética antropológica “opressor introjetado no oprimido”. Na prática, tais relações se alicerçam no fato histórico de a Reforma Protestante do século XVI reivindicar que as escolas dos principados e cidades alfabetizassem as massas para que pudessem ler a Bíblia e nutrissem a fé evangélica.
Paulo Freire, em 1968, foi um dos leigos assessores da Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín. Em 1970 deixou o cargo de professor visitante na Universidade de Harvard, aceitando o convite do Conselho Mundial das Igrejas (CMI) para atuar no Departamento de Educação e Formação Ecumênica. Ficou 10 anos em Genebra até retornar do exílio.
Para a eclesiologia luterana, a igreja se constitui, no estado democrático de direito, na livre adesão de pessoas conscientes de uma dupla pertença: ao mundo pelo pecado, ao Reino de Deus pela graça. Concepção que Martinho Lutero chamou de dois reinos. O protestantismo reivindica escolarização universal, obrigatória e gratuita por precisar de gente educada sob princípios pedagógicos republicanos. O Brasil adotou um deles na Lei de Diretrizes e Base (LDB) da Educação Nacional: Art. 3º, inciso IV: “respeito à liberdade e apreço à tolerância”.
Na igreja evangélica convivem diferentes formas de fé, das conservadoras às libertadoras que, pelo Espírito Santo, conformam a unidade na pluralidade da membresia. Esta tolerância, por sua vez, foi assumida na vida pública pela Constituição, art. 17 que exige que o programa dos partidos respeite “a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana”. Cada pessoa, de acordo com a lei, pode ou não se filiar a um partido político seja de direita, centro, esquerda ou de alguma de suas variantes para formar a diversidade ideológica inerente à democracia. Para Martinho Lutero, a pessoa pode, se quiser, beneficiar-se dos dois reinos.
O direito de livre filiação é decorrente da liberdade conforme a Constituição Art. 5º, inciso VI “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”. A moral republicana respeita a pluralidade partidária e religiosa nos limites da lei. Não se trata, portanto, de livre arbítrio ou irrestrita liberdade individual. Como dizia Lutero na sua época, não existe livre arbítrio, mas servo arbítrio. O arbítrio, a liberdade religiosa da pessoa é determinada por Deus ou pelo Diabo. Hoje, a liberdade política é determinada pelas disputas partidárias.
Martinho Lutero, como homem medieval, entendia que a liberdade religiosa seria determinada pela fé e a liberdade política por nobres e corte imperial e não mais por Roma. A liberdade política será ampliada, séculos depois, pelas revoluções democráticas nas 13 colônias da América e pelos sans-culottes, artesãos, operários, desempregados, pequenos proprietários na França. Essas revoluções inauguram o regime democrático na modernidade, tal como panfletou Immanuel Kant em 1784 defendendo o uso público da razão como o fundamento racional da república.
A democracia na América Latina atual recebeu apoio político de diversas pastorais populares influenciadas pela Teologia da Libertação que discerne, à luz da fé, as posições partidárias, inclusive, antagônicas na perspectiva analítica do direito e dos interesses dos pobres. Essa análise é indispensável para a fé porque o cristão é livre para filiar-se ou não a partidos, mas, se quiser, precisa submeter ao programa partidário, é o único modo no Brasil de exercer o mais elementar direito republicano: votar e ser votado. É insuficiente que a escola forme o eleitor consciente que vota pelo seu interesse, ela deve desenvolver competências cognitivas e morais também das pessoas eleitas habilitando-as para bem governar.
A metodologia de Paulo Freire é uma boa hermenêutica para a leitura popular da Bíblia, permitindo uma interpretação cultural transformadora da Bíblia e da fé. A leitura freireana decodifica os textos bíblicos através do diálogo cognoscente para, então, criar possibilidades de superação dialética do fundamentalismo. A Pedagogia do Oprimido demitologiza o misticismo religioso dos pobres. Mitos impedem a libertação da opressão religiosa na qual os pobres foram imersos por teologias da extrema direita farisaica. As teologias ultraconservadoras oprimem as massas, negando-lhes conquistas tradicionais do liberalismo e os direitos republicanos.
Paulo Freire confessou em várias ocasiões sua fidelidade a Cristo. Em 1974, analisou o papel educativo da Igreja Católica e classificou sua atuação pedagógica em três tendências. Uma seria a tradicionalista que visa perpetuar o sofrimento dos oprimidos, justificando-o como necessário para que a alma dos pobres se purifique e, após a morte, conquiste o gozo eterno no céu. A segunda tendência, classificou como “modernizante” porque desenvolve uma educação de tipo reformista, baseada numa perspectiva populista. A última tendência, com a qual se identifica, é a “profética” que objetiva revolucionar ou transformar a realidade sociopolítica.
É prudente retomar essa tipificação de Paulo Freire para nosso contexto de ataque midiático das seitas fundamentalistas ao estado democrático de direito. Ao reverso da leitura fundamentalista veterotestamentária de pastores neopentecostais da extrema direita, é necessário ler os textos bíblicos como produtos culturais da milenar tradição oral de grupos oprimidos que mantiveram a fé. Suas sagas, canções e narrativas teológicas foram codificadas por instituições dominantes nas várias sociedades do antigo Oriente Próximo.
Um exemplo é o final do texto de Rute. Escribas da corte de Davi redigem essa anedota popular na qual duas mulheres de fé, migrantes e pobres, enganam o patriarcado, no fim da história, inserem uma genealogia como marketing político do Rei. A prudência pastoral promove uma leitura mais inteligente e popular das histórias bíblicas que estão inseridas na vida do povo pobre. É no contexto da pobreza que se realiza a obra gratuita da redenção pela cruz de Cristo. A cruz de Cristo é o tema gerador da leitura popular da Bíblia.
Quando Jesus nasceu, Herodes governava a Palestina, um pequeno e estratégico estado situado no limite oriental do Império Romano. Herodes, típico tirano oriental, oprimia e matava até mesmo gente da sua família. Após sua morte, três de seus filhos passaram a governar uma Palestina dividida. A Judeia, onde está Jerusalém, coube a Arquelau. Após seis anos foi removido do cargo. A parte setentrional foi dada a Antipas, o “tetrarca” da Galileia, onde fica Nazaré. A Felipe coube o nordeste da Palestina. De 26 a 36 d.C. a Palestina foi governada pelo Procurador romano Pôncio Pilatos. A intervenção direta do imperialismo revoltou muitos partidos judaicos. Afinal, um estrangeiro governava a Terra Prometida e o próprio Templo.
Os saduceus reuniam os principais sacerdotes do Templo e as famílias ricas. Eram conservadores e evitavam conflitos com Roma. Controlavam o Templo e sua teologia aceitava apenas a Torá (os 5 livros de Moisés), rejeitando os profetas e a fé em Deus que age na história. Eram contra a ressurreição, o juízo final e a vida após a morte. Os fariseus formavam um grupo de 6.000 pessoas, alguns eram profissionais da interpretação da lei e vendiam este serviço religioso. Nesse contexto, Jesus se cercou de gente pobre. Essa gente permanece sendo a razão pela qual a teologia da libertação se orientou também pela pedagogia do oprimido.
Uma crítica irônica das esquerdas afirma que a teologia da libertação optou pelos pobres e os pobres pela teologia da prosperidade. A pastoral popular pode superar essa crítica se admitir o óbvio: o oprimido tem o direito de optar pelo que bem entender, nos limites da lei! O intelectual tem que, por dentro e a partir dessa própria opção feita pelo pobre, dialogar com os oprimidos tendo Cristo como tema gerador.
A interpretação da Bíblia pelo critério da cruz estimula o diálogo dos crentes com o texto e deles próprios entre si. Não se trata de interpretar ortodoxa da Bíblia, mas de deixar que – pacientemente – o texto bíblico estimule o oprimido a dizer sua própria palavra. Vale o desejo verdadeiro de quem lê a Bíblia com devoção. Na clássica fórmula do apóstolo Paulo recuperada por Martinho Lutero: a palavra de Deus é letra e espírito. A revelação não se dá pela leitura da Bíblia ao pé da letra, muito menos se dá sob o estado de alteração da consciência produzido pelo dom de línguas. A revelação se faz pela dialética entre letra e espírito, entre o confronto do texto bíblico com a realidade na qual o crente vive. A síntese dialética é possível pelo consolo do Espírito Santo presente onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Jesus.
Martinho Lutero combateu os anabatistas, “os crentes” de seu tempo. Ao interpretar o Pai Nosso, critica quem pensa que “O Reino de Deus é puro gozo e prazer nos céus. Tal pensamento emana da sua sensualidade carnal”. O fanatismo infantiliza o gozo, recalca o desejo sexual. Esta protointerpretação psicanalítica medieval parece ser um recurso terapêutico capaz de ajudar as vítimas da teologia da prosperidade a se libertarem do fundamentalismo irracional.
Parcela do povo crente goza com as ilusões fundamentalistas, ao contrário, a pastoral popular quer engajá-lo nos conflitos dos movimentos sociais e nas frustrações impostas aos e pelos governos esquerda que gerenciam o estado burguês. A pastoral popular tem dificuldade em justificar a opressão causada pelas limitações práticas do projeto democrático popular.
Ser de esquerda e governista ao mesmo tempo exige capacidade de reprimir o prazer de exercer o poder. Como justificar decisões impopulares da Frente Popular? A tentação é usar o Reino de Deus para formular essa justificação. Apesar de simpático, usá-lo no contexto da luta de classes gera, ao contrário, oportunismo e demagogia populista: se o governo da esquerda dá certo, é sinal do Reino e recebe bênçãos das pastorais populares; se der errado, bem que avisamos…
Superar esse populismo oportunista atualiza uma enigmática tese luterana: “Pecca fortiter et crede fortius” (Peca forte e crê com mais força). Crer que um bom governo de esquerda realize o Reino de Deus é também fundamentalismo religioso. As pastorais precisam, com humildade evangélica e/ou científica, aceitar a lúcida provocação de Paulo Freire no seu pedido de demissão a Luiza Erundina: “anjos não fazem política”.
Talvez o paradoxo mais intrigante do campo democrático e popular seja o fato recente de que os governos liberais e modernos que o Brasil já teve foram realizados por administrações populares municipais ou da Frente Popular. Alguns governos viabilizaram políticas liberais clássicas:
(a) a função do governo é garantir a livre concorrência. Essa é a base lógica do Orçamento Participativo segundo a qual se busca coletivamente priorizar o maior benefício pelo menor custo;
(b) a promoção da igualdade pela ampliação das oportunidades para ascensão social através da qualificação dos serviços públicos na rede de ensino, na saúde, na regularização fundiária e na assistência social;
(c) a promoção de maior isonomia tributária pela qual quem ganha mais, paga mais impostos;
(d) Um slogan do Lula III é, ao mesmo tempo, liberal e popular: “quero construir um país de classe média”. Os governos de esquerda vem fazendo o que a direita deveria ter feito e não fez.
Desde a perspectiva materialista, é possível superar alguns moralismos da pedagogia e da teologia pois a educação para o exercício da cidadania forma pessoas capazes de desejar o melhor para si mesmas. Do ponto de vista moral, querer ganhar mais só é egoísmo de quem já ganha mais. Para Paulo, toda a lei assim “se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Romanos 13:9). A teologia da libertação e a pedagogia do oprimido, objetivamente, produzem seu conhecimento a partir de quem ganha menos e quer ganhar mais, por amor a si mesmo! A pedagogia de Piaget reconhece o valor pedagógico do egoísmo, a construção da autonomia do sujeito inicia com o estágio egoico. Para a teologia luterana o problema não é o egoísmo, pelo contrário, é sua falta, pois quem é incapaz de amar-se como poderá amar o próximo?
Fé e razão são distintas e se relacionam pela dialética do diálogo cognoscente sobre o mundo cognoscível conforme Freire. Para a Reforma, o regime eclesial rege a vida íntima do cristão e o regime secular controla a vida social de todas as pessoas através de leis justas e pelo monopólio no uso legítimo da força como propunha Max Weber em 1919, pressentindo que, dois anos depois, o partido nazista criaria a milícia paramilitar SturmAbteilung (Departamento Tempestade – embrião da facínora SS). A violência miliciana desestabilizou a República de Weimar para impor a ditadura hitlerista. Para Martinho Lutero é função exclusiva do estado bem aplicar “o direito” e usar “a espada secular”.
O pacto republicano assegura o direito de a igreja profetizar em nome de Jesus contra o estado despótico. Por sua vez, este pacto exige a submissão da igreja aos mandatários eleitos por procedimentos democráticos e justificados pela boa execução de políticas públicas que assegurem os direitos fundamentais. Assim a igreja evangélica usufrui da liberdade determinada por Jesus Cristo e pelo estado democrático de direito.
A igreja de Cristo não pode combater as políticas públicas que promovem os direitos fundamentais das classes populares pois foi e permanece sendo através dessas classes que Jesus se revelou e se revela hoje como Salvador: “tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver” (Mateus 25:35-36).
Jesus se identifica com a tradição profética do judaísmo. Um de muitos exemplos é Amós que profetizou na segunda metade do século VIII a.C. quando Jeroboão II reinava em Israel e Uzias em Judá. O boiadeiro Amós apelida as classes dominantes de “vacas” que oprimem os pobres e esmagam os necessitados. Deus jura que vai puxá-las para sua presença “com ganchos e a vossos descendentes com anzóis de pesca” a fim de julgá-las (Amós 4:1-2). Deus rejeita os cultos e rituais de seus sacerdotes e deseja que entre o povo “corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso” (5:21; 24).
Amós encerra sua profecia com otimismo: Deus promete libertar seu povo do cativeiro babilônico para as pessoas reedifiquem as cidades destruídas e nelas habitem onde “plantarão vinhas, e beberão o seu vinho, e farão pomares, e lhes comerão o fruto” e “não serão mais arrancados da sua terra que lhes dei” (9:14-15). Trabalhar e usufruir dos bens produzidos é a prosperidade e o domínio que Deus deseja para seu povo.