15 Fevereiro 2025
No meio de uma grave crise de confiança e na sequência de vários escândalos que levaram à queda do arcebispo de Cantuária, o Sínodo Geral da Igreja de Inglaterra (comunhão anglicana) votou de forma esmagadora por um modelo “mais independente” para lidar com os abusos espirituais e sexuais, mas que não satisfaz os representantes das vítimas.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7 Margens, 12-02-2025.
Após largas horas de debate e com várias propostas sobre a mesa, a moção adotada contou com 392 votos a favor, nove contra e seis abstenções. Essa moção, apresentada pelo bispo de Blackburn, Philip North, foi, de fato, uma emenda que procurou encontrar uma terceira via entre uma solução de independência total da supervisão e salvaguarda das queixas de abuso e uma que previa uma equipa independente para o plano nacional e equipas em cada catedral e/ou diocese. O bispo North propôs, como solução de compromisso, que se fizessem estudos adicionais com vista à integração posterior das equipas diocesanas naquele organismo independente.
As múltiplas intervenções que foram sendo feitas, nos dois primeiros dias, totalmente transmitidas através da internet, no site da Igreja de Inglaterra e no seu canal no YouTube, foram em geral sensíveis aos argumentos das vítimas, mas algumas delas chamaram a atenção para o fato de uma “terceirização” completa e radical ter de ser submetida a um processo de auscultação e de decisão que teria de voltar a este Sínodo Geral. Isso significaria que decisões concretas se iriam arrastar, em contraste com o sentimento maioritário de que a Igreja deveria atuar já.
“O que teria sido irresponsável seria votar a favor de algo que não poderíamos implementar [em breve] e, depois, ter que voltar ao Sínodo para pedir desculpas”, disse Philip North, em declarações aos jornalistas, depois da votação. “Teria sido um desastre”, declarou o bispo de Blackburn. Além disso, para ele, existe o risco de que, ao entregar a responsabilidade do escrutínio dos casos a uma entidade terceira independente, a Igreja esteja a “alienar a sua própria responsabilidade” nesta matéria.
Ainda que as três “Casas” que compõem o Sínodo Geral – bispos, clero e leigos – tenham votado de forma inequívoca na solução intermédia, os bispos tiveram no processo um papel decisivo. Quando os casos começaram a multiplicar-se e a tornar-se evidente uma prática institucionalizada de encobrimento, foi-se tornando igualmente notório o abandono a que muitas vítimas haviam sido votadas. E mesmo depois de terem sido definidos critérios de reparação, as verbas revelaram-se diminutas ou mesmo inexistentes e, segundo diversas fontes, poucos bispos aceitaram encontrar-se com as vítimas.
O ministro britânico do Interior criou, em 2015, uma comissão independente para investigar os abusos na Igreja de Inglaterra e noutras igrejas, presidida pela professora Alexis Jay, uma conhecida especialista de serviço social e segurança infantil, além de estudiosa da problemática da salvaguarda. O relatório dessa comissão independente, que viria a ser publicado em 2022, alertou para lacunas de caráter sistémico na Igreja de Inglaterra e também na Igreja Católica, decorrentes de uma cultura que coloca a imagem e os interesses da instituição à frente do bem-estar e da dignidade das crianças.
Um ponto importante desse estudo foi a recomendação de que fosse criado um “órgão completamente independente de supervisão das práticas de proteção no seio das organizações religiosas”.
Dando sinais de pretender dar seguimento às recomendações do relatório, o Conselho dos Arcebispos da Igreja de Inglaterra, um órgão criado em 1998, entendeu, em 2023, convidar precisamente Alexis Jay para fazer propostas sobre que medidas tomar no sentido das recomendações do estudo que ela tinha coordenado. Jay, logicamente, sugeriu a criação de um órgão efetivamente independente a quem as vítimas se pudessem dirigir para serem efetivamente escutadas, o que não foi acolhido.
Não será por acaso que o mais recente número do Journal of Anglican Studies, editado pela editora da Universidade de Cambridge e dedicado precisamente à problemática da proteção e salvaguarda de abusos, é taxativo ao referir uma “ausência geral de políticas da Igreja da Inglaterra na área de salvaguarda. Tem muitos órgãos e colaboradores a trabalhar nessa área ao nível paroquial, diocesano e nacional com funções de supervisão ou de consulta, que produzem os seus relatórios, mas “nenhuma abordagem unificadora das práticas de salvaguarda a nível nacional”.
Uma consequência deste panorama foi uma reconhecida e crescente perda de credibilidade e confiança por parte da Igreja de Inglaterra, que se agravou com a publicação, em novembro de 2024, do relatório Makin, relativo a um abusador de centenas de vítimas desde os anos 70, um caso grave que foi conhecido de vários hierarcas, mas sobre quem ninguém ousou intervir. Um deles terá sido o arcebispo de Cantuária Justin Welby que conheceria a situação pelo menos desde 2013, facto que, uma vez tornado público, esteve na origem da sua resignação.
Estes elementos permitem compreender a expectativa que existiu à medida que se foi caminhando para a presente sessão do Sínodo Geral, a primeira desde a publicação do relatório Makin e da resignação daquele que é também o Primaz da Igreja Anglicana. Tanto mais que um dos potenciais candidatos a suceder-lhe poderá ser o atual arcebispo de Iorque, Stephen Cottrell, ele próprio referido como tendo tido um comportamento de encobrimento. O mal-estar relativamente ao seu nome percebeu-se logo no primeiro dia dos trabalhos, quando foi questionado que fizesse o discurso de abertura enquanto líder em exercício da Igreja de Inglaterra. Uma parte da assembleia forçou uma votação que, apesar de vir a ser claramente favorável ao arcebispo, permitiu verificar esse facto inédito de um terço dos membros sinodais lhe terem manifestado desconfiança.
“A proteção deve ser a nossa prioridade e revelações recentes – incluindo alegações de bullying, mau julgamento e falhas de salvaguarda – exigem que tomemos medidas decisivas. Um arcebispo não deve receber uma plataforma nacional, enquanto preocupações graves permanecem sem solução”, disse o autor da moção submetida a sufrágio.
Quem não ficou de todo agradado com a decisão “a meio termo” tomada pelo Sínodo foram as vítimas e sobreviventes de abusos e aqueles que, em nome delas, procuraram uma posição em que a Igreja desse um sinal claro de vontade de cortar com o passado.
Três individualidades que se associaram a este sentimento das vítimas, segundo a BBC, foram o arcebispo Cottrell, que se disse “desapontado”; a coordenadora do estudo de 2022, Alexis Jay, que considerou a decisão “profundamente frustrante e devastadora para as vítimas e sobreviventes”; e a bispa de Stepney, Joanne Grenfell, responsável pelo pelouro da proteção, que entende que “a Igreja perdeu uma grande oportunidade de enviar uma mensagem às vítimas e sobreviventes de que ouvimos as suas preocupações sobre confiança e credibilidade”.
Os trabalhos do Sínodo prolongam-se até esta sexta-feira, 14, ainda com pontos relevantes na agenda.