08 Fevereiro 2025
Um curioso fenômeno tomou conta da extrema direita europeia no raiar do século 21, quando uma série de lideranças femininas, nascidas dentro de siglas originalmente misóginas, ascendeu aos holofotes da vetusta geopolítica no Velho Continente. Repercutindo a ideia da estética como ferramenta de poder, mulheres como Marine Le Pen, na França, ou Alice Weidel, nova chefe do partido de extrema direita da Alemanha (AfD), inverteram o paradigma da presença feminina à frente da ultradireita na Europa.
A reportagem é de Márcia Bechara, publicada por Rfi, 06-02-2025.
Elas são todas loiras, brancas e parecem saídas de um seriado hollywoodiano obsoleto da década de 1990. No entanto, nomes como Giorgia Meloni, premiê italiana, Marine Le Pen, líder do Reunião Nacional (RN), o maior partido de extrema direita da França, Pia Kjaersgaard, ex-líder do partido nacionalista dinamarquês, Siv Jens, do Partido do Progresso, da ultradireita norueguesa, e Alice Weidel, nova líder do AfD, maior partido da extrema direita alemã, parecem querer muito mais do que conquistar corações em Beverly Hills.
O projeto de "feminização" da extrema direita no continente europeu não seria mais uma espécie de "ovo da serpente", mas um plano estratégico de longo prazo - e com inimigos muito bem definidos, como explicou à RFI o cientista político Thomás Zicman de Barros. "Essa é uma mudança significativa. Historicamente, a extrema direita era associada a figuras masculinas autoritárias, líderes que impunham sua força e ordem de forma patriarcal, na figura do 'Pai', como no caso de Jean-Marie Le Pen e o atual RN, na França. Hoje, estamos vendo o surgimento de figuras femininas que estão adotando um estilo diferente, refletindo uma evolução nos padrões estéticos com uma estratégia política clara", diz o especialista.
"O objetivo é atrair um eleitorado feminino que, até recentemente, era amplamente hostil à extrema direita. Ao adotar uma postura mais 'normal', de aparência mais 'democrática', essas mulheres estão buscando ampliar a base eleitoral do movimento", avalia. "Mas essa abertura tem seus limites. O que alguns chamam de 'verniz democrático' não vai além da 'página dois'. O paradoxo é que essa extrema direita inicialmente parece ser mais simpática às mulheres e até mesmo, em alguns casos, a outras minorias de gênero. Mas esse mesmo discurso continua sendo fundamentalmente hostil aos imigrantes, aos não brancos e aos não cristãos", pontua Zicman de Barros.
A estratégia de usar os direitos das mulheres, as políticas natalistas intervencionistas e a apropriação da linguagem do feminismo para os propósitos da extrema direita não é incomum. Liberais europeus e políticos de direita instrumentalizam os direitos das mulheres e o universo do feminismo para regular a liberdade religiosa, os corpos das mulheres e a migração sob uma bandeira que a acadêmica feminista Sara Farris chama de “femonacionalismo”.
"O 'femonacionalismo' se refere a uma estratégia na qual os direitos das mulheres - ou das pessoas LGBTQIA+ - são usados para justificar políticas anti-imigração. Um exemplo notável é o de Alice Weidel na Alemanha: ela é uma mulher, abertamente lésbica, e ainda assim usa uma retórica de extrema direita", pontua Zicman de Barros.
E como essa aparente contradição é justificada? Para o pesquisador, a resposta seria "apresentar os imigrantes - e os muçulmanos em particular - como uma ameaça às mulheres e às minorias sexuais. O argumento é que somente as sociedades europeias, supostamente abertas e progressistas, são capazes de proteger esses grupos. É uma caricatura de raciocínio, uma generalização racista e islamofóbica, mas que é usada para legitimar políticas de exclusão".
Para o pesquisador, o aumento da presença de mulheres na extrema direita não é apenas uma coincidência, mas uma estratégia deliberada. "Há um desejo claro de reduzir o gap, ou a distância que historicamente separa a extrema direita de determinados grupos, especialmente mulheres e minorias. No passado, as figuras da extrema direita geralmente incorporavam um autoritarismo muito masculino, às vezes brutalmente machista. Hoje, estamos vendo uma transformação geracional, como exemplificado pelo RN na França", diz.
"Marine Le Pen encarna esse fenômeno. Seu pai, Jean-Marie Le Pen, dependia de provocações e de um discurso deliberadamente desagregador, apelando principalmente para um eleitorado masculino e reacionário. Mas Marine Le Pen e sua comitiva perceberam que não podem chegar ao poder sem ampliar sua base eleitoral. É por isso que ela suavizou sua imagem e tentou se tornar mais aceitável para um público mais amplo, principalmente para as mulheres e as classes trabalhadoras", afirma o cientista político.
"Essa normalização vai além do gênero e também afeta questões como a ecologia. É paradoxal, pois sabemos que figuras de extrema direita no poder, como Donald Trump e Javier Milei, são abertamente céticos em relação ao clima. No entanto, algumas correntes de extrema direita estão desenvolvendo um discurso ecológico, mas sempre dentro de uma lógica nacionalista", lembra Barros.
"Alguns movimentos franceses de extrema direita insistem na importância de comprar localmente e favorecer o 'Made in France' para reduzir os custos de transporte e proteger o meio ambiente. Mas, por trás dessa retórica, há uma lógica de soberania nacional e rejeição de importações estrangeiras, que faz parte de uma ideologia protecionista e baseada em identidade. A extrema direita está buscando se normalizar para se tornar a maioria, sem perder sua base eleitoral tradicional", contextualiza.
Em 2018, durante uma entrevista ao Der Spiegel, Nicole Höchst, membro do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), afirmou que estava preocupada com o futuro do país e com a "proteção das mulheres contra islamistas radicais e migrantes". Alice Weidel, a líder lésbica do partido, alegou que o aumento da migração para a Alemanha resultou na falta de proteção para mulheres e meninas.
Ao proclamar sua motivação para a igualdade de gênero em termos racistas e xenófobos, elas convocam uma categoria específica de mulheres - ou seja, alemãs antimigrantes e anti-islâmicas - que estariam dispostas a se juntar ao AfD. Seu objetivo é construir uma base maior para defender políticas protonatalistas para alemães, alegar que os muçulmanos são um perigo para as mulheres e apelar para o aumento da criminalização dos migrantes não-alemães. A estratégia parece que vem dando certo, não apenas na América masculinista de Donald Trump, mas também no Velho Continente.
"A extrema direita está adaptando sua imagem, mas seus fundamentos permanecem os mesmos. Sob uma fachada de modernidade e inclusão, encontramos a mesma dinâmica de rejeição e hierarquização entre os indivíduos. Essa mudança de tom não significa uma mudança de substância", aponta Barros.
Apelidada de “a Dama de Ferro” ou “a Princesa de Gelo”, Alice Weidel personifica a extrema direita alemã, que está atraindo cada vez mais eleitores. Uma extrema-direita que parece negar suas raízes nazistas e, ao mesmo tempo, quer acabar com a imigração para a Alemanha. Chegando ao ponto de querer mandar os “imigrantes” de volta para seu próprio país. “Ela acredita que o Islã, a imigração e os imigrantes da África em particular, mas também do Oriente Médio, a impedirão de abraçar seu estilo de vida ocidental, sua homossexualidade e seu 'feminismo' de certa forma, já que essas são pessoas que gostariam de rebaixar as mulheres, prendê-las e que seriam muito retrógradas em questões sociais”, explicou à RFI Paul Maurice, secretário-geral do Comitê de Relações Franco-Alemãs do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri).
"Ela não representa a maioria dos eleitores da AfD, a maioria dos quais está no leste do país e vem de classes trabalhadoras ou médias que verão seu padrão de vida cair como resultado do aumento dos custos de energia. Ela é liberal, trabalhou em grandes empresas multinacionais, mora na Suíça e não precisa pagar impostos... Mas ainda assim consegue encarnar isso", sublinha o pesquisador francês.
Para a historiadora haitiana Edna Bonhomme, o teste político nos próximos anos seria "desenvolver demandas abertas e transparentes para desafiar o crescente movimento de extrema direita da Europa". "Como uma nova geração de feministas e homossexuais está construindo um movimento que fala sobre as preocupações com trabalho, migração, saúde e encarceramento, o feminismo terá que se distanciar explicitamente do nacionalismo. Porque o femonacionalismo não tem nada a ver com o feminismo e tem tudo a ver com o nacionalismo étnico", defende, em artigo recente dedicado ao tema na imprensa britânica.