09 Janeiro 2025
“A denúncia feita à ONU pela médica estadunidense Tanya Haj-Hassan, médica de terapia intensiva pediátrica, voluntária durante alguns meses no hospital de Gaza: 'O que resta dizer para convencer o mundo a reagir?'”, questiona Guido Rampoldi, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por Domani, 08-01-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
De acordo com fontes militares israelenses citadas pelo Jerusalem Post, um número significativo de milicianos palestinos em Gaza é menor de idade sem nenhum treinamento real: o Hamas está se tornando um exército de garotos. Graças aos novos ingressos, compensou parcialmente as perdas sofridas e hoje, somado à organização gêmea, a Jihad, contaria com 12 mil efetivos (20 a 23 mil, de acordo com as fontes entrevistadas pelo Canal 12 da TV israelense). Pequenos grupos continuam a operar também no norte de Gaza, embora esse território tenha sido despovoado pela Idf com operações que israelenses respeitados - um ex-primeiro-ministro, um ex-chefe de estado maior, o jornal Haretz - descrevem explicitamente como “limpeza étnica” (um termo, juntamente com “apartheid israelense”, ainda tabu para os temerosos formadores de opinião italianos).
Se considerarmos o propósito declarado do governo de Netanyahu - destruir o Hamas - a guerra fracassou.
A brutalidade da intervenção produziu como reação multidões de novos guerreiros determinados a vingar os lutos e os sofrimentos dos quais foram vítimas e testemunhas. Os relatórios sobre os “atos de genocídio” cometidos pela Idf são até supérfluos para perceber isso (o último, produzido pela Amnesty, foi noticiado com destaque pelo New York Times e pelo Washington Post; pouco ou nenhum eco na imprensa italiana).
É suficiente o testemunho prestado às Nações Unidas pela estadunidense Tanya Haj-Hassan, médica de terapia intensiva pediátrica, voluntária durante vários meses no hospital de Gaza. Seu relato vale por uma centena de editoriais sobre o assunto.
"Em Gaza, senti como se fosse um prelúdio para o fim da humanidade"
— FEPAL - Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) November 28, 2024
Você e o mundo inteiro deveriam assistir ao depoimento histórico da incansável Dra. Tanya Haj-Hassan, médica pediatra e voluntária em Gaza. pic.twitter.com/3nXgkLwfP1
“Como uma das poucas observadoras internacionais autorizadas a entrar em Gaza, posso dizer: passem apenas cinco minutos em um hospital e ficará dolorosamente claro que os palestinos estão sendo intencionalmente massacrados, deixados com fome e despojados de todo o necessário para viver (...) Famílias inteiras foram dizimadas. Nossos colegas do setor sanitário e humanitário estão sendo mortos em números recordes. Tratamos de inúmeras crianças que perderam famílias inteiras, um fenômeno tão frequente em Gaza que elas receberam um nome específico: ‘Criança ferida sem família sobrevivente’. Seguramos as mãos das crianças enquanto elas davam o último suspiro, e éramos a única pessoa, desconhecida para elas, que poderia tentar confortá-las”.
Também é significativa a premissa que Tanya Haj-Hassan colocou antes de seu depoimento:
“Antes de compartilhar o que testemunhei, quero citar meu colega Dr. Mohammed Ghanim, um jovem médico do pronto-socorro que foi morto há um mês por um drone israelense (...): ‘Evitei divulgar histórias trágicas por dois motivos. O primeiro: sei que é inútil. O segundo: não consigo encontrar as palavras para descrever o que está acontecendo’. Tenho a mesma sensação. O que resta dizer para convencer o mundo a reagir? (...) Não há palavras que transmitam adequadamente o quão perversa é essa agressão. Lembro-me de Mohammed, de 5 anos, com um ferimento na cabeça, provavelmente um tiro de arma de fogo, que morreu no pronto-socorro porque não havia leitos na terapia intensiva. (...) Ou Amer, de 13 anos, que sofreu um grave ferimento no pescoço depois que sua casa foi bombardeada e ficou chamando por sua irmã. Ele não a reconheceu na menina que estava na cama ao lado dele, pois as queimaduras a deixaram irreconhecível. Após sua morte, Amer ficou sendo o único membro sobrevivente de sua família. Lembro-me de sua voz doce sussurrando em meu ouvido: ‘Eu gostaria de morrer com eles. Todos que amo estão no paraíso. Não quero mais ficar aqui’. (...) Tudo o que é necessário para sustentar a vida humana está sob ataque em Gaza, e há muito tempo: água, comida, abrigo, educação, saúde, energia, esgoto e serviços higiênico-sanitários. Todas as universidades de Gaza foram destruídas, inclusive as duas únicas escolas de medicina onde eu costumava lecionar (...). Imagine essas crianças, as mães e os pais buscando desesperadamente atendimento médico e esperança em um dos poucos hospitais que restaram em Gaza. Aí falta luz. A entrada do hospital é atingida por um míssil. O hospital recebeu ordem (dos israelenses) a ordem de evacuação. É apocalíptico. Esse mesmo hospital - onde testemunhei cada uma dessas tragédias horríveis - foi alvo de vários ataques nos últimos 14 meses, assim como praticamente todos os outros hospitais de Gaza. Hospitais e profissionais de saúde têm sido sistematicamente atacados pelo exército israelense desde o primeiro dia. Mortos, presos, torturados. Conheci pessoalmente profissionais de saúde que descreveram torturas físicas, psicológicas e sexuais infligidas pelo exército e pelos guardas prisionais israelenses. Uma de minhas enfermeiras, Saeed, foi sequestrada e detida por 53 dias. Ela descreveu as formas mais horríveis de tortura. (...).
O Dr. Ghanim, que citei anteriormente, escreveu em abril, seis meses antes de ser morto: ‘(...) Éramos 13 médicos no pronto socorro, todos nós fomos torturados em diferentes graus e seis foram feridos ou presos. Estou falando apenas do departamento pelo qual eu era responsável, e não estou falando dos médicos de outros departamentos que foram assassinados após serem presos ou dos médicos cujo destino ainda é desconhecido’. Mais de mil operadores sanitários foram mortos em Gaza. Outras centenas foram detidos em Israel. Pelo menos quatro foram mortos enquanto estavam presos (...)
Muitos foram mortos enquanto tentavam resgatar os feridos naqueles que são infamemente conhecidos como os ataques israelenses duplos e triplos - um lugar é atingido, depois é atingido novamente uma segunda e terceira vez quando os socorristas chegam para atender as vítimas. (...)”.
Para minimizar esse testemunho, temos a disposição vários expedientes. Em primeiro lugar, vai ser dito que a Dra. Tanya Haj-Hassan, por ter sobrenome árabe, deve ser certamente antissemita, uma acusação, no entanto, esvaziada pelo uso grosseiro e mecânico que vários expoentes da multiforme direita judaica fazem dela, até mesmo na Itália: se todos são propensos ao antissemitismo (até mesmo o papa, por ter expressado o desejo de que a justiça internacional investigue o que Israel está fazendo em Gaza) ninguém o é, pode concluir a judeofobia autêntica. Um método menos obtuso consiste em colocar a questão em perspectiva.
Pode-se dizer: se o Eixo do Mal ameaça nossa civilização (judaico-cristã, é claro), o que mais poderiam ser os tormentos infligidos à população de Gaza, senão um detalhe? Além disso, esse conflito não é diferente de qualquer outro conflito, então por que se comover com as crianças de Gaza? É uma guerra, minha senhora, o que esperava? Pense bem, que exército não cometeu crimes de guerra?
Na realidade, aqui se fala pincipalmente de crimes contra a humanidade, infâmias bastante raras neste século, suficientes para autorizar a assustadora profecia que Tanya Haj-Hassan nos entrega: “O precedente que foi estabelecido em Gaza se espalhará por todo o mundo. Marca o fim do estado de direito. Como disse um colega meu, um voluntário: 'Quando eu estava em Gaza, senti como se estivesse assistindo ao prelúdio do fim da humanidade'. Se a solidariedade com seus semelhantes não for motivo suficiente para agir, pense em como isso repercutirá sobre você. A pergunta que deixo a vocês é: o que todos nós estamos arriscando?”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um massacre de crianças está em curso em Gaza, um precedente perigoso para toda a humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU