20 Dezembro 2024
A Terra enquanto um espaço público deve ser a prioridade de toda sociedade, considerada a primeira instância do interesse público, da qual emergem os dados e onde acontecem todas lutas históricas que transformam a terra em território moldado pela opinião pública de cada época.
O artigo é de Antônio Heleno Caldas Laranjeira, publicado por Outras Palavras, 18-12-2024.
O artigo é de Antônio Heleno Caldas Laranjeira, jornalista pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Professor de Geocomunicações pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IPBAD).
Em Belém, ativistas da geotecnologia trocam experiências para enfrentar temas como a crise climática. Sugerem: dados abertos e cartografia são essenciais na busca de soberania popular nos territórios. Como podem servir aos povos amazônicos?
Belém do Pará está no centro das atenções globais. Em 2025, a cidade sediará a COP-30, conferência que vai reunir lideranças mundiais para discutir soluções climáticas urgentes. Um ano antes, Belém foi sede de outro evento global: o State of the Map Latam (SOTM). Leia aqui os textos publicados por Outras Palavras sobre a COP.
A conferência mobilizou mapeadoras, mapeadores, governos e empresas interessadas em dados geoespaciais e suas aplicações para cidadania, com uma programação gratuita de palestras e oficinas que aconteceram ao longo dos dias 6, 7 e 8 de dezembro.
Os dados geoespaciais são informações vinculadas à localização geográfica, como mapas interativos, imagens de satélite e modelos digitais de terreno. Esses dados desempenham um papel fundamental na organização do espaço público, no monitoramento ambiental e na tomada de decisões.
Apesar da plataforma Google Maps ter popularizado os mapas, foi a OpenStreetMap que popularizou o mapeamento na rede mundial. Exemplos provam que quando acessíveis e colaborativos, os mapas abertos tornam-se recursos de dados poderosos para promover transparência, soberania e justiça – conforme publiquei anteriormente no Outras Palavras sobre o tema.
O movimento por mapeamentos abertos nasceu em 2004, com a criação da plataforma OpenStreetMap, e desde então tem transformado a forma como enxergamos o mundo. Em contrapartida ao monopólio de plataformas como o Google Maps, o OpenStreetMap oferece uma alternativa descentralizada e acessível, que reflete as realidades locais e respeita as diversidades territoriais.
Na Amazônia, essa abordagem é especialmente relevante. Estar no mapa significa pertencer, exercer autonomia e afirmar soberania sobre o território vivido. Visibilidades e territorialidades estão em jogo em uma região frequentemente ignorada ou distorcida por cartografias hegemônicas.
Comunidades de hackers e makers como Mapeo Abierto Hub Latam e Youth Mappers envolvem pessoas de diferentes faixas etárias, gêneros e classes sociais em uma causa comum: superar o desafio de obter dados geoespaciais feitos por muitas mãos, mapas que representem todos não apenas o território, mas também seus usos, ações que dão significado cultural, político e econômico a esses lugares.
Ao todo, o SOTM Latam 2024 contou com participantes de 18 países presentes em Belém do Pará, como mostra o mapa a seguir.
A programação contou com oficinas e palestras, conversas e confraternizações. Os temas abordados no SOTM podem ser resumidos em três eixos: histórias de impacto social na Amazônia, histórias de tecnologias abertas e histórias de gestão do espaço público.
A seguir um resumo das percepções sobre o que vi e ouvi de mais impactante durante a conferência. Todos os relatos têm o contato dos representantes e seus perfis disponíveis no site do evento global.
O projeto Meninas da Geo, que incentiva jovens mulheres a fortalecer os conhecimentos em geotecnologias desde 2019, foi representado por Tatiana Pará. Entre as técnicas, o grupo aprende o geoprocessamento e a programação com softwares livres. A aplicação do conhecimento é prioritária na área rural do estado do Pará, sobretudo conectando com demandas do curso de ciências da terra e exatas de conexão com os territórios cruzados ao fortalecimento social das mulheres enquanto produtoras de ciência, tecnologia e alimentos. Também foram apresentadas outras integrantes do grupo, entre elas mulheres jovens e adultas que já concluíram a participação no projeto e hoje são agentes de inclusão de outras pessoas na comunidade OpenStreetMap.
Johnattan Rupire apresentou a experiência do Curso de Cartografia Socioambiental Colaborativa na Amazônia Peruana, uma iniciativa que capacitou 31 pessoas para mapeamento colaborativo, entre líderes indígenas, estudantes e representantes de organizações da sociedade civil (veja foto abaixo). O treinamento, realizado em Yarinacocha, buscou preparar as comunidades para monitorar e proteger seus territórios contra ameaças como o desmatamento e incêndios florestais. Apesar dos desafios, como desigualdade no acesso a recursos e à tecnologia, o curso alcançou resultados significativos como a criação de uma rede local de mapeadores indígenas; a implementação de um currículo piloto em cartografia nas escolas locais; o estabelecimento de parcerias para projetos de mapeamento de territórios remotos. Um pressuposto de que os dados de mapeamento em OpenStreetMap podem se tornar um ativo de defesa e de empoderamento pela soberania territorial para os povos indígenas.
O impacto das terras caídas — erosão fluvial comum na região do rio Solimões — foi tema da apresentação de Davy Rabelo. Usando imagens de satélite e drones, ele contou a história de Paula dos Santos Silva (foto abaixo), com quem mapeou áreas afetadas em comunidades ribeirinhas no Amazonas, revelando a urgência de monitoramento constante para evitar catástrofes. O trabalho destacou também o papel do OpenStreetMap na disseminação de dados essenciais para a formulação de políticas públicas.
No Equador, Iván Terceros relatou uma série de oficinas realizadas pela Fundación Openlab Ecuador, em colaboração com universidades locais e governos municipais. Os treinamentos capacitaram mais de 250 pessoas em mapeamento colaborativo, promovendo uma cultura de coleta e uso de dados abertos para a gestão de riscos e o planejamento do desenvolvimento regional.
O coletivo Geochicas, formado por feministas atuantes no OpenStreetMap, busca reduzir a lacuna de gênero e empoderar mulheres no universo de software livre e dados abertos. Desde 2016, a iniciativa realiza projetos como mapeamento de feminicídios, visibilidade de mobilizações feministas e capacitações em tecnologia. Destaque para ações como o mapeamento de ruas com nomes femininos e campanhas contra a violência de gênero.
Andres Gomez Casanova apresentou ferramentas para corrigir erros no mapeamento de rios e córregos no OpenStreetMap. Usando o sistema OSM.lat, a solução identifica loops e terminações incorretas, permitindo ajustar o traçado dos cursos d’água com base em imagens aéreas e mapas oficiais. A proposta visa representar bacias hidrográficas completas e realistas, destacando a importância da preservação hídrica na América Latina.
Carolina García Mancero destacou um projeto que mapeou comunidades vulneráveis e rotas de evacuação em áreas próximas a vulcões no Equador. Com o uso de ferramentas como OpenStreetMap e Mapillary, o projeto reuniu uma equipe em campo (veja foto a seguir) para coleta de dados críticos para gestão de riscos e fortalecimento da resiliência local, promovendo a colaboração entre comunidades e organizações.
Já Séverin Ménard apresentou o Panoramax, projeto comunitário para criação de um “Street View” descentralizado e acessível. O workshop abordou desde a captura de imagens até sua publicação e reutilização, promovendo o uso de padrões abertos e colaboração para aplicação em contextos locais.
Emilio Mariscal e Ivan Gayton mostraram como ferramentas integradas e de código aberto da Humanitarian OpenStreetMap Team (HOT) viabilizam mapeamento humanitário aberto de ponta a ponta (end-to-end). A oficina (foto abaixo) abordou os processos desde a captação de imagens com drones até a coleta de dados em campo e exportação de mapas, reforçando o impacto da tecnologia aberta em desastres e ações comunitárias.
Na Argentina, o movimento agroecológico tem ganhado força nos últimos anos, especialmente na Província de Buenos Aires, onde o município de Luján se tornou um ponto de referência no mapeamento para mitigar as disputas sobre o uso do solo. Andrés Esteban Duhour apresentou o caso da cidade, caracterizada por um cenário de transição entre áreas agrícolas e urbanas, buscando integrar práticas agroecológicas em um contexto de forte pressão por parte de modelos produtivos convencionais.
Yessica De los Ríos Olarte apresentou um projeto de cartografia participativa em Medellín, Colômbia, para reduzir a vulnerabilidade da comunidade a inundações. O levantamento de dados geoespaciais incluiu infraestrutura local e fatores de risco, resultando em mapas que orientam medidas de mitigação e resiliência. A iniciativa promoveu também uma cultura de autogestão do risco.
A experiência do mapeamento de transporte público tem se mostrado uma ferramenta crucial para a melhoria da mobilidade urbana na América Latina foi apresentada por Leonardo Gutierrez. Diversos projetos têm sido desenvolvidos, como o trabalho realizado pela empresa Trufi Association, que atua no México, Peru, Colômbia e Bolívia. Esses projetos, muitas vezes, envolvem a colaboração entre autoridades locais e comunidades de mapeamento, com o objetivo de gerar dados precisos sobre as rotas de transporte formal e informal. O uso de ferramentas como o OpenStreetMap e do editor JOSM tem se expandido como uma solução eficaz para cidades latino-americanas que enfrentam desafios relacionados à coleta e organização desses dados.
Céline Jacquin demonstrou como o mapeamento com OpenStreetMap tem desempenhado um papel importante na resposta a desastres naturais na América Latina. A experiência do Humanitarian OpenStreetMap Team (HOT) em países como Peru, Equador, México e Brasil mostra como a colaboração entre governos, universidades, organizações e comunidades tem sido vital na gestão de crises, como os fenômenos de El Niño e La Niña (veja foto acima) . Em situações de emergência, a criação rápida de mapas detalhados tem permitido uma resposta mais eficiente, com dados atualizados e de fácil acesso. A capacitação das comunidades locais também tem sido uma prioridade, promovendo o empoderamento técnico e ajudando a estabelecer redes de apoio no terreno.
State of the Map Latam 2024 não foi apenas um encontro tech, mas uma demonstração de como os conhecimentos de hackers e makers podem transformar territórios e vidas.
Belém, com sua posição geográfica única e sua história de resistência, foi o palco ideal para reafirmar que um mundo mais justo passa pela necessidade local de um mapeamento que horizontalize as informações do mapa para todos.
Porém, um mapa para todos deve incluir também outras formas de vida além das cidades – como as florestas em todas as camadas: solos, vegetação, águas, atmosfera.
A Terra enquanto um espaço público deve ser a prioridade de toda sociedade, considerada a primeira instância do interesse público, da qual emergem os dados e onde acontecem todas lutas históricas que transformam a terra em território moldado pela opinião pública de cada época.
O SOTM Latam, apoiado por organizações que acreditam na utilidade dos mapas abertos, após todas essas apresentações, abriu para uma questão às vésperas da COP-30: como podemos ajudar a salvar o planeta “hoje” – e não “amanhã” – fazendo mapas que protejam o planeta?
Quer saber mais como fazer contato com a comunidade OpenStreetMap Latam? Junte-se à comunidade no canal do Telegram para os primeiros passos ou dúvidas avançadas. Você pode ainda assistir os vídeos dessa edição do SOTM Latam no canal do YouTube. Nos vemos no mapa!
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COP30: Pensar a América Latina com mapas abertos. Artigo de Antônio Heleno Caldas Laranjeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU