20 Dezembro 2024
"Diante desse tremendo anátema, é difícil imaginar que, em 2025, quando a Igreja de Roma convidar todos a celebrar, com arrependimento e esperança, um Jubileu, as três Roma chegarão a um entendimento. Sua pacificação - que também teria consequências geopolíticas importantes e positivas para a paz - parece adiada para um futuro muito distante", escreve Luigi Sandri, jornalista italiano, em artigo publicado por Mosaico di Pace, 18-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A esperança de que o Jubileu de 2025 também traga paz às Igrejas, bem como ao mundo dilacerado pelas guerras, perpassa a Spes non confundit. Mas a intenção deve se confrontar com uma realidade eclesial tremendamente complicada, pelo menos no que diz respeito à situação interna da Ortodoxia e às árduas relações entre as três Romas.
Depois de estudos e tentativas que duraram uns bons cinquenta anos, no início de 2016 os patriarcas e primazes das quatorze Igrejas Ortodoxas autocéfalas - entre as quais o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, é o primus inter pares - finalmente decidiram celebrar um Concílio pan-ortodoxo.
Era previsto para Istambul, mas depois se preferiu Creta, uma ilha grega que, eclesiasticamente, é dependente de Constantinopla.
Tudo estava pronto para o “Santo e Grande Sínodo da Igreja Ortodoxa”, que se teria celebrado de 18 a 27 de junho de 2016, quando, praticamente na véspera de seu início, uma notícia paralisou o Fanar (o distrito de Istambul onde o Patriarcado Ecumênico reside há séculos): a delegação da Igreja Russa, liderada pelo Patriarca Kirill, não compareceria.
Para entender a perplexidade com a ausência anunciada, é preciso lembrar que, dos cerca de 250 milhões de ortodoxos espalhados pelo mundo, metade pertence a essa Igreja.
Logo depois, três outras igrejas autocéfalas também cancelaram sua presença: o Patriarcado de Antioquia (na Síria), o Patriarcado Búlgaro e o Patriarcado Georgiano. Não estaríamos longe da verdade se presumíssemos - como fizeram os gregos - que aquelas ausências haviam sido “sugeridas” por Moscou. Por quê? Há tempo havia uma disputa intraortodoxa em andamento, que emergia de tempos em tempos: o patriarcado russo acusava o patriarcado de Constantinopla de interferir em seus assuntos internos e, portanto, não ia a Creta, onde se teria realizado uma assembleia, de acordo com os russos, manipulada pelo Fanar. Além disso, crescia uma discordância entre os dois lados sobre a maneira legítima de conceder autocefalia a uma Igreja: caberia ao Fanar (tese de Bartolomeu) ou à unanimidade dos primazes das Igrejas Ortodoxas (tese de Kirill)? A ausência do Patriarcado Russo, mais os outros três, prejudicava o Concílio; ele passava de “pan” ortodoxo para simplesmente “ortodoxo”: uma afronta para Bartolomeu.
Em setembro, dois anos depois, soube-se que Bartolomeu, com seu Sínodo, pretende favorecer a reunificação de todas as Igrejas Ortodoxas Ucranianas [a minúscula Igreja Autocéfala; o Patriarcado de Kiev, liderado pelo Metropolita Filaret, que Moscou já havia excomungado; a Igreja Ortodoxa Ucraniana (COU), um exarcado estruturalmente ligado ao Patriarcado russo]. O protesto de Kirill foi enérgico, mas o Fanar não parou e, em 15 de dezembro de 2018, sob o alto patrocínio do presidente ucraniano, Petro Poroshenko, o “Conselho da Reunificação” foi realizado em Kiev, que decidiu propor ao Patriarcado de Constantinopla a concessão do status de autocefalia à recém-formada “Igreja Autocéfala Ucraniana (CAU)”.
No entanto, a COU - a maior comunidade em termos de número de bispos, paróquias e fiéis - não aderiu à recém-criada Igreja, considerada ilegal. Por sua vez, o Patriarcado russo anunciou medidas gravíssimas contra Bartolomeu. Este, em 5 e 6 de janeiro de 2019, recebeu o Metropolita Epifany, primaz da nova Igreja, no Fanar e lhe concedeu o tomos (decreto) sobre a autocefalia.
O Patriarcado de Moscou respondeu imediatamente, alegando que o ato violava o “território canônico” do Patriarcado de Moscou; zombou de um Bartolomeu que pretendia ser o “papa” da Ortodoxia; e, por fim, cortou a comunhão eucarística com o Patriarcado de Constantinopla (nenhum bispo russo, desde então, concelebrará com um bispo ligado ao Fanar).
Oficialmente, portanto, é o cisma entre a “segunda Roma” e a “terceira”, Moscou (que, segundo os russos, assumiu esse papel depois que a antiga Bizâncio caiu nas mãos dos turcos em 1453).
O juízo sobre a autocefalia da CAU dividiu as Igrejas Ortodoxas autocéfalas: algumas, pró-russas; outras, pró-helênicas.
Uma situação eclesialmente gravíssima, que dilacera a Ortodoxia e também coloca a “primeira” Roma em angústia. Francisco, no entanto, terá muito cuidado para não entrar na diatribe e não se inclinar para um lado ou para o outro.
Em 24 de fevereiro de 2022, o exército russo invade a Ucrânia. O mundo inteiro chama a iniciativa decidida pelo líder do Kremlin, Vladimir Vladimirovic Putin, de “guerra”, mas ele a definiu de “Operação Militar Especial” (OME): qualquer pessoa na Rússia que falasse em “guerra” seria punida. Não entraremos aqui nos aspectos políticos, bélicos e factuais dessa tragédia, porque todos, assistindo aos noticiários, puderam ter um mínimo de informações sobre o caso e viram os enormes danos que ela provocou, inclusive em civis (muitas dezenas de milhares de vítimas, pessoas torturadas, mulheres violentadas, crianças sequestradas, prédios destruídos). O presidente russo disse que agiu para truncar a tentativa da OTAN - que vinha sendo arquitetada desde 2014 - de atacar a Rússia antecipadamente. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, reivindica o direito de pedir ajuda à OTAN para defender seu país; e proclama que quer retomar a Crimeia (anexada pelos russos em 2014) e que jamais cederá as regiões de Lugansk e Donetsk, ocupadas pelos russos.
Mas vamos voltar ao aspecto religioso (claro, impregnado de política!) do caso ucraniano. Obviamente, a CAU condenou a invasão russa.
Mas - o que poucos no Ocidente se lembram! - é o fato de que líderes do Patriarcado de Moscou, mas que vivem fora da Rússia, também o fizeram.
No mesmo dia do início da OMS, Onufry, Metropolita de Kiev e Primaz da COU, protestou vividamente: “Defendendo a soberania e a integridade da Ucrânia, apelamos ao Presidente da Rússia e pedimos que ele cesse imediatamente a guerra fratricida. Tal guerra não encontra justificativa nem diante de Deus nem diante dos homens”.
Palavras semelhantes foram dirigidas a Kirill pelo Metropolita Jean de Dubna que, de Paris, lidera as comunidades de origem russa espalhadas pela Europa Ocidental; e por Innokenty, Metropolita de Vilnius e líder da (pequena) Igreja Ortodoxa Lituana ligada a Moscou. Na própria Rússia, quatrocentos popes (padres) e diáconos expressaram solidariedade pelos “irmãos” ucranianos.
O Papa Francisco não mediu esforços para lidar com a situação ucraniana (inclusive enviando duas vezes o Cardeal Matteo Zuppi a Moscou para tentar trazer de volta milhares de crianças que os russos teriam “deportado”).
Ele telefonou para Kirill e, após uma conversa bastante tempestuosa, eles concordaram em se encontrar em 14 de junho de 2022, em Jerusalém; mas, constatada a divergência irreconciliável de suas opiniões sobre o caso ucraniano, adiaram o encontro sine die. Enquanto isso, para a “Via Sacra” do Coliseu em 15 de abril de 2022, Francisco quis que duas mulheres, uma russa e uma ucraniana, carregassem juntas a cruz em uma estação. Um fato que indignou muito os greco-católicos ucranianos (uma forte minoria no país), segundo os quais, com esse gesto, o pontífice estava colocando os agressores e os agredidos no mesmo plano.
E voltamos a Moscou. Em 27 de março passado, o Concílio (Sobor) do povo russo - uma assembleia paragovernamental criada por Kirill - aprovou um texto em que afirma: “A OMS é uma nova etapa da luta de libertação do povo russo contra o regime criminoso de Kiev e do Ocidente coletivo, conduzida nas terras do sudoeste da Rus’ desde 2014... Do ponto de vista espiritual e moral, a Operação Militar Especial é uma guerra santa, por meio da qual a Rússia e seu povo protegem o mundo do ataque do globalismo e da vitória do Ocidente que afundou no satanismo.”
Para avaliar tais palavras apocalípticas, situadas na esteira do Russky mir (Mundo Russo) - que confia uma tarefa messiânica à Rússia cristã para salvar o mundo da perdição - é necessário lembrar que em Kiev as paradas gays estavam começando a ser celebradas, exaltando a homossexualidade e a galáxia Lgbtq: uma escolha que Kirill considera demoníaca por ser contrária - segundo ele - à Bíblia.
Infelizmente, ele depois reiterou várias vezes, as Igrejas ocidentais (especialmente aquelas da Reforma) esqueceram o ensinamento de Jesus: mas a Igreja russa - ressaltava ele - se oporá a essa traição. E Putin sempre agradeceu a Kirill por sua defesa vigorosa da “família tradicional”.
Diante desse tremendo anátema, é difícil imaginar que, em 2025, quando a Igreja de Roma convidar todos a celebrar, com arrependimento e esperança, um Jubileu, as três Roma chegarão a um entendimento. Sua pacificação - que também teria consequências geopolíticas importantes e positivas para a paz - parece adiada para um futuro muito distante.
Que Deus tenha misericórdia da primeira, da segunda e da terceira Roma.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O caminho do Concílio. Artigo de Luigi Sandri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU