18 Dezembro 2024
A Câmara dos Representantes aprovou a Lei de Autorização de Defesa Nacional, que, entre suas 1.813 páginas, inclui a proibição de citar o número oficial de mortos em Gaza, considerado válido pela ONU, pela mídia e por ONGs.
A reportagem é de Javier Biosca Azcoiti e Francesca Cicardipublicada, publicada por El Salto, 17-12-2024.
Justo quando a guerra punitiva de Israel em Gaza ultrapassa 45.000 mortos, o Congresso dos EUA quer proibir seu Departamento de Defesa, o Pentágono, de citar publicamente o número oficial de mortos fornecido pelo Ministério da Saúde de Gaza.
Entre as 1.813 páginas da Lei de Autorização de Defesa Nacional, que define o orçamento e as prioridades anuais do Pentágono, uma breve frase quase despercebida introduz a cláusula disfarçada de combate ao terrorismo:
“Ao avaliar o número de baixas e mortes durante as hostilidades, o Departamento de Defesa não poderá citar como confiáveis, em comunicações públicas, números de vítimas fatais obtidos por organizações terroristas designadas pelos Estados Unidos, entidades governamentais controladas por organizações terroristas designadas pelos Estados Unidos ou fontes que se baseiem em números fornecidos por organizações terroristas designadas pelos Estados Unidos”, afirma o texto.
A lei foi aprovada na semana passada na Câmara dos Representantes — com 281 votos a favor e 140 contra (81 democratas apoiaram o texto) — e, nesta segunda-feira, o Senado aprovou por ampla maioria levar a votação definitiva sobre a lei nos próximos dias. Espera-se que a legislação seja aprovada com facilidade. Uma vez votado, o texto deve ser assinado e ratificado pelo presidente Joe Biden.
O veto ao número oficial de mortos passou mais despercebido em meio à polêmica gerada pela cláusula que busca excluir determinados tratamentos de reafirmação de gênero para filhos transexuais de membros das Forças Armadas.
Em junho deste ano, a Câmara dos Representantes já havia aprovado uma emenda (269 votos a favor e 144 contra — 62 democratas apoiaram a proposta) à lei orçamentária do Departamento de Estado que também proibia citar as cifras fornecidas pelo Ministério da Saúde de Gaza.
“Há tanto racismo anti-palestino nesta Câmara que meus colegas nem sequer querem reconhecer que os palestinos existem, nem quando estão vivos e agora também não quando estão mortos. Isso é repugnante. É a negação do genocídio”, disse, na época, a congressista Rashida Tlaib, de origem palestina nos Estados Unidos.
A ONU, a mídia e as ONGs têm utilizado as cifras de mortos fornecidas pelo Ministério da Saúde de Gaza, apesar das dúvidas levantadas em ocasiões por autoridades israelenses e norte-americanas, incluindo o presidente Joe Biden.
Diversas análises e estudos consideraram que a cifra de 45.000 mortos fornecida pelas autoridades em Gaza é confiável. Um artigo publicado em dezembro de 2023 na revista Lancet concluía que “não há provas de que o Ministério de Saúde de Gaza tenha inflado o número de mortos”. “O ceticismo público em relação ao número atual do Ministério de Saúde pode enfraquecer os esforços para reduzir o dano civil e fornecer assistência para salvar vidas”, sustentava o autor.
O artigo compara a cifra de trabalhadores da UNRWA mortos na Faixa com o total de mortos do Ministério de Saúde e extrai, desses dois números, a taxa de mortalidade por 1.000 habitantes. “Se as cifras de mortalidade do Ministério de Saúde estivessem muito infladas, esperaria-se que a taxa fosse mais alta que o índice de mortalidade da UNRWA. No entanto, a taxa de mortalidade do Ministério de Saúde é menor que a da UNRWA”, aponta o pesquisador, que explica e justifica com números a validade de seu estudo comparativo.
“Historicamente, os cálculos do Ministério de Saúde de Gaza foram corretos, com uma discrepância em análises independentes da ONU de entre 1,5% e 3,8% em conflitos anteriores”, lembra o artigo.
Outro estudo publicado na mesma revista científica argumenta que a cifra real de mortos é provavelmente muito mais elevada. Mesmo a ONU já aceitou a cifra de 10.000 desaparecidos fornecida pela Defesa Civil Palestina.
O estudo da Lancet aborda as “mortes indiretas” que ocorrem em todos os conflitos armados devido à falta de atendimento médico, à expansão de doenças, à falta de alimentos, saneamento etc. “Essas mortes indiretas multiplicam entre três e quinze vezes o número direto de mortos. Aplicando um cálculo conservador de quatro mortes indiretas para cada morte direta à cifra de 37.396, é plausível calcular que até 186.000 pessoas ou mais morreram devido ao conflito em Gaza”. Aplicando o mesmo critério aos 45.000 mortos atuais, a cifra seria elevada a 225.000.
O porta-voz da ONU para os Direitos Humanos disse ao Le Monde que as cifras do Ministério de Saúde são confiáveis. “Trabalhamos com o Ministério de Saúde palestino por muitos anos, especialmente em conflitos anteriores. Nossas avaliações são muito semelhantes às deles e, em alguns casos, até tínhamos números mais altos”.
“Nos últimos cinco ou seis ciclos de conflito na Faixa de Gaza, esses dados foram considerados confiáveis e nunca ninguém os questionou”, disse Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, no primeiro mês da ofensiva israelense, quando foram levantadas as primeiras dúvidas sobre o número de mortos.
Outras organizações também realizaram esse trabalho de verificação das mortes. A Universidade de Uppsala verificou, por meio de sua base de dados de conflitos armados, 30.000 mortos entre outubro de 2023 e maio de 2024, o que também se aproxima do número oficial.
Algumas informações de meios israelenses sustentam que até a inteligência israelense aceita as cifras fornecidas pelo Ministério de Saúde de Gaza.
Enquanto isso, o ministro de Defesa israelense, Israel Katz, deixou claro em uma mensagem na rede social X que seu governo “controlará Gaza de forma segura e com total liberdade de ação” após a guerra, equiparando esse território à Cisjordânia ocupada, onde as forças israelenses controlam todos os movimentos dos cidadãos palestinos, exceto em algumas cidades sob domínio da Autoridade Nacional Palestina. A Corte Internacional de Justiça já declarou ilegal a ocupação israelense dos territórios palestinos.
Essas declarações do ministro coincidem com informações sobre supostos avanços nas negociações para um cessar-fogo em Gaza, nas quais tanto Israel quanto o Hamas demonstram “otimismo”. “É importante salientar que, segundo fontes familiarizadas com o assunto, ainda existem lacunas. No entanto, estamos otimistas”, disse à EFE sob anonimato uma fonte próxima às negociações.
Há meses essas conversas — mediadas por Catar, Egito e EUA — não resultaram em nada, porque para o Hamas a retirada das tropas israelenses da Faixa é uma condição irrenunciável, enquanto Israel quer manter presença nas fronteiras e em alguns corredores no interior do enclave, onde o Exército já construiu infraestruturas para permanecer a longo prazo.
Por sua vez, o ativista e negociador israelense Gershon Baskin afirmou no X que, embora existam “sinais positivos de que está surgindo um acordo”, é preciso aguardar que de fato aconteça. “É importante lembrar que não há acordo até que haja um acordo. Desde julho, o Hamas está disposto a um acordo por etapas, segundo a demanda israelense. Mas o Hamas enfatizou que, sem um compromisso israelense de acabar com a guerra na segunda etapa, incluindo uma retirada total da Faixa — com garantias internacionais —, o Hamas não aceitará um acordo”, advertiu Baskin.
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45.000 mortos depois, o Congresso dos EUA quer proibir o Pentágono de mencionar o número de mortos em Gaza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU