18 Dezembro 2024
"O método ver-julgar-agir funcionava como coluna vertebral de cada análise, facilitando o aprendizado dos iniciantes. Aprendizado que penetrava nas periferias e nos porões da zona urbana, nos grotões e florestas da zona rural, sem deixar de lado os povos indígenas e as comunidades ribeirinhas ou quilombolas", escreve Alfredo J. Gonçalves, CS, padre, assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM/São Paulo, 14-12-2024.
Décadas atrás, praticamente por todo território nacional, o que podemos chamar de alfabetização política se disseminava numa ampla e variegada rede capilar. Serviam para isso, entre outras coisas, os encontros das novenas de Natal, os círculos bíblicos elaborados para as Campanhas da Fraternidade, os tríduos e novenas dos santos padroeiros, os subsídios das Pastorais Sociais, os documentos do CELAM e CNBB – para não falar de tantas outras tipos e fórmulas de material de formação. É notório, por exemplo, o fato de várias dioceses terem se especializado em produção de material popular. Não será difícil lembrar algumas: São Mateus-ES, Lins-SP, Crateús-CE, São Miguel Paulista-SP, Nova Iguaçu-RJ, Osasco-SP, São Félix do Araguaia! Eram pontos referenciais, com centros de produção de material popular, o qual acabava sendo requisitado por todo país. Havia, da mesma forma, uma boa rede de centros de divulgação, tais como o CPV, o 13 de Maio, o Sedes Sapientiae, o CERIS, o IBRADES, a Comissão de Justiça e Paz, diversas iniciativas dos padres jesuítas (Curitiba, Manaus, Salvador, Belo Horizonte, e assim por diante).
Mas a produção e reprodução de subsídios populares não se restringia à Igreja Católica. As demais Igrejas do CONIC estavam engajadas na mesma preocupação de trabalhar para a tríplice conscientização-organização-mobilização dos setores de baixa renda da população brasileira, através dos mais variados materiais. Vale o mesmo para os movimentos populares, o movimento estudantil e o sindicalismo combativo, como também para setores comprometidos da Academia. Universidades, igrejas, estudantes, sindicatos, rádios populares formavam como que verdadeiros igarapés, convergindo todos para o rio caudaloso da organização popular. Circulava entre esses agentes e protagonistas uma avalanche diária de jornais, boletins e notícias, livros e livretos, cartazes e faixas, testemunhos e entrevistas, artigos de reflexão – tudo isso ajudando a fomentar a indispensável análise de conjuntura, obrigatória na abertura de cada curso de formação, dos seminários, das assembleias e até mesmo das simples reuniões.
Semelhante material – múltiplo e plural, amplo e local, elaborado a partir das bases – introduziu-nos no bê-á-bá não só da Bíblia, da pastoral e dos fundamentos da Doutrina Social da Igreja (no caso católico), mas sobretudo no bê-á-bá da ação político-transformadora. O método ver-julgar-agir funcionava como coluna vertebral de cada análise, facilitando o aprendizado dos iniciantes. Aprendizado que penetrava nas periferias e nos porões da zona urbana, nos grotões e florestas da zona rural, sem deixar de lado os povos indígenas e as comunidades ribeirinhas ou quilombolas. Na base, por vezes sem nos darmos conta, estava igualmente o método Paulo Freire, educador brasileiro banido pelos militares. Um meio de alfabetizar que descarta a clássica abstração das palavras mágicas, para concentrar-se nas palavras-chaves do vocabulário utilizado cotidianamente pela população, formando dessa forma uma relação de uso, causa e efeito das coisas, pessoas e fatos que nos rodeiam. Alfabetização essa que, contemporaneamente, conduzia à leitura e à escrita, e em particular ao compromisso com a transformação da realidade socioeconômica injusta e assimétrica.
É de se lamentar que as gerações mais recentes não tenham passado por esse tipo de alfabetização política. A verdade é que a formação não dá saltos. Ela avança para a frente na medida em que (e só na medida em que) for capaz de construir sólidos alicerces. A revolução da informática, de modo particular com o surgimento do computador, da Internet e do telefone celular, traz-nos diariamente tamanha quantidade de informações que se torna quase impossível uma digestão (leia-se reflexão) sadia e saudável, bem como uma séria e profunda sistematização das ideias. Boa parte dos usuários da tecnologia de ponta apreendem as informações a toque de caixa. Ligeira e frequentemente, navegam pelas ondas superficiais dos fatos, boatos e imagens, sem a mínima oportunidade para mergulhos mais ousados nas águas profundas. As relações ciberespaciais lhes fornecem asas. Mas, para voar com segurança, além de asas, é necessário ter pés. Qualquer aeronave que tenha avarias no trem de pouso não se arrisca a levantar voo.
Justamente o bê-á-bá da alfabetização política – fundamentado no método Paulo Freire, no ver-julgar-agir e no trabalho de visita e de formiguinha – é que confere uma base sólida e pés firmes para lançar-se ao ar sem temor. Sem isso, predominam os 140 toques do Twitter (agora 280) ou os chavões repetitivos do WhatsApp, onde o processo de raciocínio se afoga e se asfixia na avalanche de mensagens recebidas a cada instante, como também em sua vertiginosa velocidade.
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Alfabetização política. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU