17 Dezembro 2024
"Senti-me desiludida e desencantada com o Relatório. O compromisso com princípios genéricos onde a vítima seja colocada ao centro do paradigma da “conversão” é de saudar. Mas não se vislumbra arrojo na linguagem, sempre redonda, vaga e polida; não se pressente força para tomadas de decisão que conduzem à aplicação dos princípios enunciados", escreve Ana Nunes de Almeida, socióloga e ex-membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, em artigo publicado por 7Margens, 13-12-2024.
Criada pelo Papa Francisco em 2014, e coordenada pelo cardeal norte americano O´Malley, a CPPM [Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores] tem como missão aconselhar o Papa sobre as melhores práticas de proteção em matéria de abusos a menores ou pessoas vulneráveis face a predadores sexuais na Igreja Católica.
Desde a sua criação, a CPPM tem vivido uma trajetória turbulenta. Foram constantes as críticas relativamente ao seu mandato, capacidades e financiamento. Face ao grupo fundador, sucederam-se demissões como forma de protesto, incluindo as de sobreviventes que acusaram o Vaticano de bloquear o cumprimento de obrigações que lhe eram atribuídas. A saída com mais impacto público (e institucional) foi, porém, a do padre jesuíta Hans Zollner, em abril de 2023. Um dos grandes especialistas internacionais em políticas de proteção anti-abusos, uma das vozes mais corajosas na Igreja em denunciar a vergonha destes crimes e as estratégias de ocultação postas em prática pelos poderes instalados, fortemente empenhado na construção de políticas criadoras de ambientes seguros e saudáveis no interior das estruturas eclesiásticas, Zollner decidiu sair por constatar que a Comissão não conseguira assegurar “responsabilidade, cumprimento (compliance), prestação de contas e transparência”.
Em Outubro passado, dez anos depois da sua criação, a CPPM apresentou finalmente um Relatório: “Annual Report on Church Policies and Procedures Safeguarding”. Mal tive uma aberta nas tarefas habituais, lancei-me na leitura do documento. Pensei que ali estaria uma reflexão inspiradora, partindo de retratos do terreno recolhidos e interpretados através de metodologias robustas. É certo que os autores avisam que o foco do Relatório serão “as políticas, os procedimentos e mecanismos que existem nas várias igrejas locais para manter as crianças e os adultos vulneráveis em segurança”. E referem a falta de tempo (dez anos?) e de dados fiáveis para realizarem um estudo de incidência de abusos. Não penso, aliás, que contagens e números devessem ser o objetivo maior de uma publicação desta natureza, já que falar de “quantidades” nesta matéria é sempre um exercício superficial, muito arriscado e que peca por defeito.
Mas esperava que o Relatório fizesse um ponto de situação corajoso sobre o que se passa atualmente no mundo (católico) e o que nele aconteceu, desde os anos 1980, depois do confronto trágico com a realidade dos abusos sexuais de crianças na Igreja. Perante um problema de tal dimensão e gravidade, que caminhos percorreram as Igrejas locais, a Igreja universal para destapar a voz das vítimas, reconhecer o seu sofrimento? Que medidas foram tomadas, no imediato ou a médio e longo prazo, para estancar estes crimes e punir os abusadores? Que mudanças estruturais estão em curso para criar ambientes de onde o clericalismo e a ocultação sejam banidos? Que recomendações se fazem para progredir no sentido de uma Igreja que coloque os direitos humanos como prioridade face à defesa acobardada da reputação institucional? São estas as perguntas que assaltam os católicos, anônimos e leigos, que olham para este tema e para a hierarquia com vergonha e revolta.
O Relatório não responde, porém, a estas inquietações. Está dividido em quatro grandes secções: A Igreja local em foco; a Missão protetora da Igreja nas regiões continentais; políticas e procedimentos de proteção da Cúria Romana ao serviço da Igreja local; o ministério de proteção da Igreja na sociedade.
Na Introdução que as precede, enuncia-se um quadro teórico inspirado no conceito de “justiça de conversão” a partir do qual se situam as conclusões e recomendações e referem-se duas transições para a conversão (da Igreja e seus padres, pressupõe-se). A primeira, em que se passa da generalização e ocultação do abuso sexual de crianças na Igreja, para a criação de políticas de denúncia, proteção e cuidados às vítimas, de modo que esses abusos se tornem raros. A segunda, em que se passa dessas políticas de cuidado e proteção para uma análise do impacto em toda a Igreja, num caminho de penitência e renovação. Pensando na Igreja universal, a CPPM sublinha a grande desigualdade de situações que ainda existe relativamente a este contínuo. Se há igrejas que já deram passos firmes na cultura e no compromisso da proteção, outras há que ainda estão a integrar a realidade dos abusos sexuais na sua esfera de atuação e discurso.
Por outro lado, na Introdução dá-se um lugar destacado aos esforços que a Comissão tem dedicado à escuta e resposta aos problemas dos sobreviventes e das vítimas, através de metodologias de “inclusão e representação”. Desiludida, verifiquei que esta intenção e a anterior tendem, nas secções seguintes, a esvair-se perante não só uma lógica descritiva como um predomínio de fontes sobretudo ligadas às conferências episcopais.
Ficamos a saber que, para cada Relatório anual, o Vaticano analisará as políticas de 15-20 igrejas locais e “alguns institutos religiosos” selecionados. Que critérios estão na base desta seleção? Ficamos sem saber. Ou, pior, apercebemo-nos de que predomina uma casuística prática, pois o Relatório valoriza os processos ad limina, vagamente descritos como encontros com conferências episcopais (nos países de origem? Nas suas idas de cinco em cinco anos ao Vaticano?). Significa isto que o Relatório é construído com base nos testemunhos dos bispos convocados a Roma, sem preocupação de cruzamento sistemático desta informação com a de outros stakeholders (intervenientes), nomeadamente associações de vítimas, redes de apoio a sobreviventes ou retratos elaborados por investigadores independentes?
Espanta, aliás, que a CPPM não faça menção aos resultados de relatórios sobre abusos sexuais de crianças na Igreja Católica por esse mundo fora, alguns deles encomendados por ela própria. Desde 2014 e até 2023 foram publicados relatórios nos Países Baixos (2015), Alemanha (2014 e 2021), Austrália (2017), França (2021), Reino Unido e País de Gales (2022), Portugal, Suíça e Espanha (2023). Com exceção do caso da Australian Royal Commission into institutional responses to child sexual abuse and the Roman Catholic Church, citada, não há qualquer referência aos restantes. Espanta, também, que a CPPM não integre e discuta, na sua reflexão, contributos científicos mais recentes sobre o tema – como se a ciência ficasse sempre de fora das muralhas do Vaticano.
No caso do Relatório 2024, os países em revisão são predominantemente do chamado Terceiro Mundo e representam casos tão díspares como México, Papua e Nova Guiné, Bélgica, Camarões, Ruanda, Costa do Marfim, Sri Lanka, Colômbia, Tanzânia, República Democrática do Congo, Zimbabué, Zâmbia, Gana, República do Congo, África do Sul, Togo e Burundi. Por que razão estão estes e não outros? Correspondem às visitas das respetivas conferências episcopais a Roma? A CPPM repete que trabalhou com as vítimas e as suas famílias; que existem, desde 2017, Survivors Advisory Panels (SAPs) em todo o mundo, grupos formais de indivíduos que tiveram uma experiência direta de abuso sexual. Mas onde é que no Relatório se espelham, sistematicamente, os seus pontos de vista?
Apesar de haver um guião de partida para apresentar todos os países, a verdade é que substantivamente a informação sobre cada um deles (repito: fornecida por bispos) é muito desigual, em quantidade e qualidade. Para além destas igrejas locais, o relatório dedica-se também a dois institutos religiosos, um feminino, outro masculino (as Irmãs da Consolata e os Espiritanos). Uma seção é inteiramente dedicada à Igreja nas grandes regiões continentais (Américas, Europa, Oceania, América Central e do Sul, África e Ásia); outra aos meandros do Vaticano e aos dicastérios que, mais direta ou indiretamente, se relacionam com políticas de proteção. Finalmente, um capítulo sobre a Cáritas Internacional. Em vez de uma visão integrada dos diferentes casos a partir da perspectiva teórica de partida (situando-os por exemplo entre as duas transições referidas), os autores preferiram apresentar uma galeria de retratos paralelos e planos, onde de resto a participação das vítimas na sua construção é praticamente ignorada.
Para quem anda por estes terrenos, as conclusões são previsíveis. Mas interessantes. Destaco algumas. À cabeça, a necessidade de promover o acesso da vítima à informação que lhe diz respeito, evitando a opacidade dos processos canônicos onde ela se sente re-traumatizada; tem aliás de haver clareza sobre a jurisdição dos vários dicastérios da Cúria romana, de modo que estes processos sejam céleres e rigorosos; tal como acontece hoje, os poderes estão muito fragmentados, o que provoca atrasos e contradições nas respostas às igrejas locais. Depois, a urgência de se proceder a uma definição mais holística do conceito de vulnerabilidade, à formação e profissionalização das políticas de proteção na Igreja Católica; é indispensável ainda que os processos para remover ou demitir um padre do seu ofício sejam simples; é relevante promover dentro da Igreja a conversão para a dignidade das crianças e dos direitos humanos de que são portadoras.
Dez anos depois da criação da CPPM, as conclusões ainda são estas. Por mim, senti-me desiludida e desencantada com o Relatório. O compromisso com princípios genéricos onde a vítima seja colocada ao centro do paradigma da “conversão” é de saudar. Mas não se vislumbra arrojo na linguagem, sempre redonda, vaga e polida; não se pressente força para tomadas de decisão que conduzem à aplicação dos princípios enunciados. E, mais uma vez, a Igreja constrói o saber sobre o estado das políticas a partir do saber dos bispos. Feito de dentro, ficamos lá dentro. Falta o resto.
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Abusos. Dez anos depois, um relatório. Falta o resto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU