12 Dezembro 2024
As lideranças Francisca Arara e Shirley Krenak, que atuam na gestão pública e na sociedade civil organizada, contam em documentário como sua concepção de biodiversidade permeia seu pensamento político.
A reportagem é de Soledad Dominguez, publicada por El País, 11-12-2024.
Francisca Arara (45 anos) tem dois nomes e vive em dois mundos. Em sua língua nativa ele se chama Yaka Shawãdawa, do povo indígena Shawãdawa. Desde 2023, Arara é a autoridade máxima da Secretaria dos Povos Indígenas do Estado do Acre (norte do Brasil), graças à carreira como professora e líder em organizações sobre questões de mudanças climáticas. Ele fala lentamente para a câmera e ao fundo é possível ouvir e ver o rio Acre, que atravessa a cidade de Rio Branco. “Nossos mais velhos já diziam que iriam acontecer mudanças climáticas, que o sol ficaria mais quente, que não veríamos mais as estrelas com tanta clareza e que os frutos iriam secar. Sem mais delongas, veja só: o mamão é assado ao sol. Onde estão as borboletas que voavam sobre os nossos rios de outrora? Nossos mais velhos, com seu conhecimento do mundo espiritual, já observaram tudo isso”, explica a dirigente no documentário Kunha Karaí e as Narrativas da Terra, realizado em sete estados brasileiros e dirigido pela antropóloga Paola Mallmann. O filme foi lançado este ano na América do Sul.
No Estado do Acre existem 18 povos indígenas, 31 mil indígenas e 246 aldeias. “Nasci na terra Arara do Igarapé Humaitá, vila Foz do Nilo, em Porto Walter”, conta Arara ao América Futura. O Acre não tem litoral e foi disputado por conflitos fronteiriços entre Brasil, Bolívia e Peru entre o final do século XIX e início do século XX. Os motivos: a riqueza das seringueiras, as castanhas do Pará e uma rede hídrica de mais de oito rios. “Minha cidade, Shawãdawa Arara, foi uma das mais perseguidas durante os chamados ataques de diferentes grupos étnicos no século 19, durante a era do boom da borracha para a indústria de transportes. Nós e outros grupos étnicos ficamos devastados”, diz ele.
Arara fez uma promessa a si mesma desde muito jovem. Crescer, florescer e trabalhar com o legado de sua avó, Juditi Pereira, outra liderança indígena. “Ela lutou pelo reconhecimento e demarcação das nossas terras. Ele liderou homens e mulheres. Ele nos ensinou com conselhos e trabalhou nas plantações. Ele organizou e deu ordens a todos. Ela estava entre dois mundos e eu queria seguir seus passos”, diz ele. Pereira atravessou os rios, foi até o município e navegou entre a visão de mundo indígena e as estruturas convencionais da sociedade. Conhecia as instituições sem nunca se separar dos seus valores e da percepção do mundo indígena.
É assim que Arara também transita entre esses dois mundos e os liga. Ele passa os dias visitando aldeias, registrando necessidades, trabalhando no Secretariado e em discussões regionais e internacionais sobre mudanças climáticas. Antes de assumir o cargo atual, pertenceu à Organização dos Professores Indígenas do Acre e à Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas desse mesmo estado (SEPI), onde atuou em políticas públicas voltadas à proteção dos direitos dessas comunidades. “Agora, na minha atual função como secretária, focamos em garantir os direitos do nosso povo para que todos os recursos cheguem até ele: segurança alimentar, formação educacional e informação, água potável e demarcação de suas terras. Manter os povos indígenas em seus territórios é manter as florestas em pé e respeitar a natureza”, explica.
Shirley Krenak (44 anos) pega o microfone e abre os braços diante do público de mulheres indígenas de todas as partes do Brasil que a ouvem. É uma cena da Primeira Marcha das Mulheres Indígenas de Brasília (2019) que marcou para sempre o movimento indígena brasileiro e latino-americano. “Nossos territórios são nossos corpos e espíritos. Nossa mãe terra nos chama de mulheres indígenas empoderadas. Somos terra, água, sol, sangue. Somos nós que criamos”, diz ela. Krenak é uma liderança indígena mineira, originária do povo Krenak, da região do Rio Doce, que sofreu uma das maiores tragédias minerárias do mundo em 2015.
Ocorreu em Mariana, em novembro daquele ano, o rompimento de uma barragem de Fundão, da empresa Samarco Mineração, despejando resíduos tóxicos até chegar à bacia do rio. “Poluído e, portanto, matou o Rio Doce (nosso Watu), 850 quilômetros que eram sagrados para o povo Krenak. E nove anos se passaram sem que a justiça fosse feita.” Essa espera também se tornou uma injustiça. Há poucos dias, em novembro de 2024, foi anunciada a absolvição das empresas Samarco, Vale e BHP pelas autoridades brasileiras. Parece uma contradição para o planeta e para todos os esforços realizados pelos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e governos para que o meio ambiente, a biodiversidade e os povos indígenas sobrevivam. “Não se pode acreditar na impunidade deste país. O lucro não pode estar acima de nossas vidas. A mineração corrói nossas montanhas e tira nossas vidas”, disse Krenak em suas redes sociais há poucos dias.
Na recente Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade realizada na Colômbia (COP16), Krenak carregava sua bandeira de luta: “Amazônia Livre do Extrativismo para combater a crise climática”. Reflita e repita continuamente: “As conferências não existiriam se primeiro tivéssemos resolvido os problemas causados ao meio ambiente. A biodiversidade pertence à humanidade, somos todos um e é responsabilidade de todos.” Por meio do Instituto Shirley Krenak, esta incansável defensora dos direitos dos povos indígenas cumpre uma missão que permeia cada uma de suas ações: promover iniciativas educativas que exaltem a ancestralidade indígena e celebrem o profundo vínculo com a Mãe Terra. E esse compromisso está intrinsecamente ligado a uma visão feminina que ela e outras ativistas trazem para o campo político. Basta observar as ações da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) da qual Krenak faz parte. Em 2022, esse movimento realizou a Caravana dos Nativos das Terras. Atravessaram 27 territórios brasileiros e com isso os diferentes biomas daquele país (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa). Tudo está relacionado. “Na Anmiga as integrantes são mulheres-semente, mulheres-raiz, mulheres-água, mulheres-terra, mulheres-chuva, mulheres-vento. Somos uma biodiversidade de líderes, cada um está no seu espaço, mas na mesma árvore sagrada”, explica.
A primeira organização de mulheres indígenas nasceu em 1884, com a Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro. O percurso natural dos rios, das raízes das árvores, dos brotos de folhas e galhos foram entrando no campo político com representantes como a primeira ministra indígena do Brasil, Sonia Guajajara e a deputada federal, educadora e ativista indígena Célia Xakriabá. Nas eleições municipais de 2024 houve um aumento de 130% de candidatos indígenas em comparação com as eleições de 2016. Mesmo assim, continua a haver mais opções masculinas em todas as áreas políticas.
Em uma das cenas finais do documentário Kunha Karaí e as narrativas da terra, Krenak, às margens do Rio Doce evoca uma canção. Ele contempla isso em silêncio por um tempo. O silêncio se torna eterno. “Para nós não é só água, é um ser vivo, que já não está mais vivo. Toda essa água está contaminada com resíduos e mercúrio. A luta dos povos indígenas é dizer às pessoas que vamos ficar sem mais água para beber no planeta. Lutamos para que toda a sociedade veja que também pode fazer alguma coisa. Mas o conforto da sociedade é maior que a força da luta. Todos nós fazemos parte de um universo. E precisamos ficar mais fortes.”
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Conhecimento ancestral orienta ambientalistas indígenas brasileiros: “Nossos mais velhos já diziam que o sol ia esquentar mais” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU