05 Outubro 2024
"O Bem Viver se baseia nos saberes ancestrais, pois sem a valorização desses conhecimentos não é possível atingir esse objetivo. Os povos indígenas insistem na importância de renovar constantemente todas as inter-relações pessoais e comunitárias no equilíbrio entre sentir bem, pensar bem e agir bem", escreve Margot Bremer, teóloga paraguaia, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU. A tradução é do Cepat.
Há muitos anos, Dom Leónidas Proaño nos deixou esta palavra profética: “Devemos voltar às fontes para resgatar a vida”. Parece que o Bem Viver sempre foi sonhado e por isso é sempre atual; mas nunca foi o sonho de todos. Hoje, como quase sempre, estamos mergulhados num contexto adverso. Estamos imersos em uma cultura que prioriza o consumo, a violência, a destruição da natureza e um grande individualismo, que embute consequências imprevistas e provoca desigualdades e desequilíbrios na humanidade e na natureza. As sequelas desumanizantes são cada dia mais claras.
Os povos indígenas desenvolveram um tesouro cultural estreitamente vinculado à natureza, com um forte sentido de comunidade. O papa recomenda recolher esta experiência de vida que reflete essa tradição ancestral (QA 36). Ele esclarece que “a diversidade não significa ameaça, não justifica hierarquias de um poder sobre os outros, mas sim diálogo a partir de visões culturais diferentes, de celebração, de inter-relacionamento e de reavivamento da esperança”. A diferença não é um obstáculo, mas permite que seja transformada em ponte através do intercâmbio eu se dá no diálogo (QA 38).
Por isso, gostaria de introduzir o tema de hoje com palavras de um sábio indígena que podem despertar a relevância do nosso tema:
“Nossos ancestrais nos disseram que chegaria a hora do índio. Diziam que chegaria o momento em que o pensamento e os conhecimentos do homem branco se fragmentariam, se esqueceriam do seu lugar no círculo natural.
Teriam grandes espaços de conhecimento, como, por exemplo, as universidades, mas careceriam de inter-relacionamentos, de compenetração; eles saberiam analisar e chegar até o último átomo, mas com isso seu núcleo espiritual também explodiria. Os ancestrais diziam que viriam tempos difíceis, que as invenções tecnológicas e a urbanidade artificial prejudicariam as águas, o ar e a terra.
Mas também diziam que nestes tempos entre os brancos haveria alguns que teriam sido capazes de manter a ligação entre a mente e o coração; seriam alguns que não teriam partido seu coração. Eles começariam a procurar novamente uma resposta fundamental para todas as nossas novas perguntas. E vão encontrá-la na nossa, na nossa visão do mundo e da vida. Os ancestrais diziam que esse seria o dia em que surgiria a voz do índio e que o mundo finalmente nos escutaria.” - Chefe dos Mohawk, 1977
São palavras fantasiosas ou proféticas? Nestes tempos de mudança de época e de mudanças climáticas, o papa encoraja todas as gerações, especialmente os jovens, a conhecerem bem as próprias raízes, ouvindo as histórias dos sábios anciãos. “Sejam herdeiros da bela história que os precedeu e a levem adiante. Tenham coragem” (1). Muito antes, Bartomeu Meliá já havia nos alertado que “os Guarani não se encontram simplesmente numa história maior do Paraguai, mas o Paraguai está na história indígena Guarani. Não apenas a língua, mas as diversas formas do seu modo de ser indígena – do seu teko econômico-político-religioso – parecem cada vez mais modernas num mundo cujos valores estão se degradando rapidamente e se tornando completamente insustentáveis. Os problemas indígenas não são problemas, são soluções” (2).
Para uma melhor compreensão do Teko Porã, o Bem Viver Guarani, precisamos mergulhar na visão de mundo Guarani, semelhante à de quase todos os outros povos indígenas do Cone Sul e muito diferente da Weltanschauung colonial ocidental, pois não é antropocêntrica, mas cósmica. Sua relação com as próprias origens tem um enfoque religioso. Expressam sua relação com o criador e com tudo o que é criado à imagem dos laços familiares, dos laços de parentesco, que também se refletem na forma organizacional de sua convivência. Portanto, o Bem Viver não está separado do cosmos ou de Deus que o criou com a humanidade e com todos os outros seres existentes. Os Guarani o chamam de Ñamandú ou Ñanderuvusú ou Ñanderú Papa Tenondé, que sempre significa “Nosso Pai” (ou Nosso Avô) primeiro e último. Ñande quer dizer nós. Trata-se aqui de um nós includente que difere de outro nós excludente (ore). Aqui o ñande significa que é o Deus Pai de todos os homens, de todos os seres vivos e também de todo o cosmos. Com esta convicção, os Guarani não precisam fazer proselitismo. Isto implica então que tudo o que existe está emparentado, formando uma única grande família, uma única casa, que hoje costumamos chamar de Casa Comum (cf. a canção paraguaia Es linda nuestra tierra: “As plantas são parentes…”). Desse modo, na cosmovisão Guarani, o divino se apresenta em categorias comunitárias, justamente nos laços de uma família extensa, o clã, e é assim que também a sua convivência social é organizada.
O Bem Viver é um sonho, uma utopia que mobiliza e continua mobilizando muitos povos indígenas para dar sentido às suas vidas caminhando juntos em direção a esse objetivo. É uma utopia que faz as pessoas caminharem com os pés no chão em busca de uma outra Terra sem Males. As utopias sempre ressurgem em tempos de crise; sua memória reaparece nas periferias da sociedade humana. Ali nascem sonhos alternativos que às vezes levam a grandes transformações. Os povos Guarani também se levantaram em momentos de grandes catástrofes e se colocaram em pé para caminhar rumo a uma Terra sem males, sempre à luz do sonho do Bem Viver, enraizado, às vezes até escondido, nas profundezas de qualquer realidade calamitosa. À medida que todas essas potencialidades inerentes começam a ser ativadas, eles recuperam a energia para se colocar em pé e começar a caminhar juntos em direção a outra terra para ali iniciar novamente o desejado teko porã. A Bíblia também nos diz que em tempos de colapso, o Povo de Deus relia as suas narrativas de criação e descobria que a criação não está terminada, mas está em pleno processo. Ainda não chegaram ao fim do mundo.
O povo Guarani, como a maioria dos povos indígenas, tem um modo próprio de ser e viver, o que chamam de tekoha. Cada comunidade procura sempre estar o mais profundamente enraizada no bioma com o qual convive e que marca ao longo de toda a sua identidade cultural particular, o tekoha (teko = vida, também “estado de vida, ser, condição, estar, costume, lei, hábito” (3), que significa e produz ao mesmo tempo relações econômicas, sociais e organizações político-religiosas especiais, assim como todas as outras dimensões essenciais da vida Guarani. “Sem tekoha não há teko”, costumam dizer. A vida para eles não depende de uma categoria econômica isolada, mas depende sobretudo de uma interpenetração total e equilibrada com todas as outras categorias vitais. O tekoha é a inter-relação de espaços biogeossociais, ou seja, a sua estrutura fundamental é o jogo harmonioso de três espaços básicos: a montanha de coleta e horticultura, a casa de encontro e reencontro e a mata de plantas medicinais, caça e pesca. São espaços topográficos próprios em nível sociopolítico-ecológico-econômico. Eles definem simultaneamente o modo de vida de cada comunidade Guarani. Apesar desta diferença, condicionada pela própria natureza, têm em comum algumas estruturas vitais, tais como: o estilo de governo, a cooperação no trabalho (minga), a distribuição equitativa dos bens, as suas danças, os seus cantos e as suas “belas palavras primeiras”, seus mitos fundadores e refundadores, seus hinos e orações que os ajudam a caminhar em plenitude em direção ao almejado Teko Porã.
Há momentos de pleno Bem Viver, mas são como flashes, sempre quando há harmonia plena na convivência com a comunidade, com a natureza, com os de fora e com o Deus de toda a criação: então o teko porã está presente. Ulrich Schmidl (1537) chamou esse estado de “divina abundância”.
O modo de ser Guarani baseia-se na palavra, na palavra falada e na palavra escutada. É inspiradora, criativa, intuitiva e deve ser sempre respeitada, porque a Palavra é tudo e tudo é Palavra. O termo Guarani ayvu tem três significados ao mesmo tempo, mas estão inter-relacionados. O termo ayvu = palavra, significa simultaneamente alma, linguagem humana e uma certa semelhança com o modo de ser divino.
O mito Mbya Guarani Ayvu Rapyta relata a criação desta Palavra original e originante por Deus Ñamandú. É um dos mitos fundadores que fala da solidão divina, motivo para criar a Palavra. Só depois de ter pensado a quem dar esta palavra é que ele cria o ser humano para ser seu portador num mundo que mais tarde será criado. Esta palavra constitui uma “pequena porção” do próprio criador – o amor e a sabedoria – que deve posteriormente tornar-se presente em toda a sua criação como reflexo da sua própria divindade. Cada Guarani é uma palavra sonhada antes mesmo de sua concepção e, portanto, cada um é portador do sonho divino da criação. E esse sonho divino é a bela palavra Teko Porã, o Bem Viver Guarani. Na realidade, a pequena fração da Palavra divina no ser humano é, ao ser ouvida, inspirada e profetizada; o início de uma história única que reflete a identidade de uma parte da Palavra divina que o ser humano recebe. Será o nome que cada recém-nascido receberá numa espécie de batismo, um rito da “encarnação da Palavra”, como o chamam os antropólogos ocidentais. A Palavra divina contém vida, ou seja, sem a participação do fragmento da Palavra de Ñamandú a vida humana não é possível. Pois a vida é dinamismo, é caminhar em comunidade, é relacionar-se através do diálogo, da troca de palavras que às vezes mudam a mente e a consciência dos interlocutores. O diálogo entre diferentes palavras na enunciação e na escuta é troca e interpretação de pensamentos diferentes que produzem reciprocidade. Também pode ser transladado para o nível econômico, onde se trocam bens materiais, dando e recebendo mutuamente, criando assim equidade e crescimento do sentido de comunidade. Para os Guarani, a diversidade é um valor que oferece a possibilidade de se complementarem e enriquecerem. Toma-se consciência de ser inacabado, de estar no caminho com outros, e cria-se uma feliz interdependência familiar graças à inspiração de belas palavras. Vimos que para os Guarani a cosmovisão e a fé religiosa estão intimamente ligadas. Isto permite-nos compreender que a Palavra contém uma raiz profundamente religiosa, porque o seu autor é o próprio criador. Até hoje, os Guarani se sentem portadores da palavra divina e sua língua lhes confere a identidade guarani, da qual nunca querem abrir mão.
O povo Guarani tem consciência de estar num mundo que tem outros ideais, outros sonhos, outras utopias, contrários ao sonho inerente ao criador. Dessa forma, os Guarani vivem uma certa tensão em meio a um mundo cheio de imperfeições e perversidades. Somente a convicção de ser uma “pequena porção” da Palavra divina poderá resistir e ajudar a vencer todos os males na sua caminhada pela vida.
A longa jornada do povo Guarani historicamente fez com que se dividissem em novas comunidades. Estas novas parcialidades foram se diferenciando gradualmente umas das outras. De acordo com diferentes lugares e experiências de novos acontecimentos, eles reinterpretaram e atualizaram as palavras herdadas de seus mitos e tradições através de constantes releituras. Sua caminhada foi inspirada na busca de uma vida melhor tendo a terra boa como “casa comum” onde pudessem viver o tão sonhado Bem Viver. Cuidavam e cultivavam com especial esmero a reciprocidade (jopoi = mãos abertas para o outro). No âmbito econômico prático, fortalecia substancialmente o seu sentido de comunidade e garantia a base da igualdade em cada comunidade guarani.
Porém, a vida Guarani, como a de todos os povos, é uma jornada difícil. Tem obstáculos internos e externos. Um exemplo na história dos povos Guarani e de todos os povos de Abya Yala é a invasão dos “outros” há mais de 500 anos, que trouxe aos povos Guarani irresistíveis sofrimentos, violências e mortes ao defenderem seu próprio modo de ser e viver. Bartomeu Meliá lembrava muitas vezes que aqueles conquistadores não respeitaram o modo de viver e de ser guarani, das indígenas em geral, salvo algumas exceções. Eles vieram com outro modo de pensar e interpretar a vida e acreditaram que era universal e o melhor. Os Guarani, que souberam viver a diversidade de culturas há milênios como frações destinadas a se complementarem, resistiram à imposição do “outro” como única realidade verdadeira. Queriam ser guaranis autênticos, o que se manifestava especialmente no uso de sua língua, de sua bela Palavra, que consideravam sua única identidade. Naquele momento histórico parecia que os Guarani estavam derrotados e dominados para sempre. Porém, já haviam superado momentos tão críticos diversas vezes em sua história a partir dos quais conseguiram reconstruir o seu teko porã.
Existem muitas formas de resistência, ora visíveis, ora clandestinas, ora invisíveis. Os Guarani, até hoje, resistem e persistem, organizando-se, denunciando e lutando por seus direitos. Uma das muitas formas de resistência, invisível de fora, é a renovação constante daquilo que é próprio. Os Paí Tavyterá fazem isso comunitariamente na celebração de suas assembleias. Nelas continuam a ouvir as “belas palavras” dos seus mitos, especialmente os da criação do mundo e outras histórias sagradas de recriação, que os convidam a discernir se o seu caminhar histórico está verdadeiramente canalizado na direção do seu Teko Porã, o Bem Viver. Aí tomam novas decisões para restaurar o equilíbrio econômico-solidário através da reciprocidade na vivência do dia a dia na sua própria organização comunitária. Também buscam medidas para negociar com os políticos da nação que também é um Estado, alheio à cultura Guarani. Os Guarani seguem sendo sociedades sem Estado, embora tenham que estar inseridos num Estado. Nas negociações com as autoridades políticas paraguaias, as palavras guaranis não são bem compreendidas ou respeitadas. Esta valorização unilateral provoca mais uma vez discriminações e sofrimentos. A palavra Guarani está ligada à vida e à pessoa, como portadora da sabedoria e de amor divinos.
O Bem Viver é uma memória ativa do futuro que faz os Guarani lutarem pela defesa ou pela retomada do seu território ancestral. Território é mais que um pedaço de terra; é uma relação familiar de muitas gerações que ali ficaram en-terradas. Além do seu valor ecológico-econômico, pode proporcionar-lhes a oportunidade de viver um estilo de vida comunitário, sem acumulação e, portanto, sem pobres ou ricos. Hoje, ao serem obrigados a enfrentar diversas formas de pressão econômica, religiosa e cultural, alheias ao seu modo de ser, criam novas estratégias. Valorizam e cuidam dos seus valores humanos que desejam manter para as novas gerações.
Atualmente, ainda existem muitos abusos contra os direitos indígenas, que provêm de práticas coloniais. Apesar das tentativas frustradas de planejar hoje a conquista, substituindo ou transformando as mentes indígenas, é surpreendente que existam muitas comunidades Guarani que projetam seu futuro retornando ao teko yma, seu “modo de ser originário”. Muitas comunidades Guarani confiam hoje que as belas Palavras da origem lhes abrirão um futuro maior do que as promessas dos políticos modernos.
Os atuais despejos frequentes dos verdadeiros filhos da terra mostram que ainda não saímos da colonialidade. Hoje os conquistadores são os agroempresários: latifundiários, produtores de soja, pecuaristas, empresas transnacionais. Duas visões de mundo, duas culturas continuam sempre se confrontando com violência e ausência de diálogo que manifesta a presença do neocolonialismo.
No entanto, aconteceu no Paraguai que os ameaçados de despejo, diante da polícia em ação, celebraram o seu ritual de inclusão. Embora aqueles “agentes de segurança” tenham queimado as suas casas, toda a colheita e até as sementes, não conseguiram evitar que as cinzas fecundassem o rebento de novos sonhos alternativos. Essa eloquente resistência da comunidade Avá Guarani foi um silencioso convite alternativo ao diálogo, mas não foi aproveitado por uma mentalidade colonial ainda existente.
Hoje, em plena mudança de época, a presença do neocolonialismo parece anacrônica, mas está em pleno vigor. Talvez este momento caótico e kairótico ofereça uma oportunidade para que estas belas Palavras sejam mais ouvidas, aceitas e reconhecidas como uma alternativa possível que sobreviveu milhares de anos e que nasceu nesta terra particular que hoje habitamos. O Papa Francisco adverte que “assim como há potencialidades na natureza que se poderiam perder para sempre, o mesmo pode acontecer com culturas portadoras de uma mensagem ainda não escutada e que hoje estão mais ameaçadas do que nunca” (QA 28). A terra e a humanidade procuram outros caminhos. Será possível resistir hoje com a proposta do Teko Porã a esta atual tendência apocalíptica do sistema neocolonial?
Num processo de descolonização mútua, ambas as partes poderiam apoiar-se na busca do que é próprio e adquirir uma abordagem mais integradora que fala de um “nós”, bela Palavra para a criação de uma comunidade de autêntico bem viver. Claro que não é fácil, por isso o teólogo boliviano José Luis López adverte: “Devemos ter em mente que ao longo de mais de 500 anos os preconceitos mútuos se enraizaram nas culturas, tanto nas originárias como nas nacionais. Para um diálogo – para que hoje seja acolhida a contribuição do outro –, precisamos iniciar um processo de desconstrução para abrir espaço para uma nova reconstrução. Um Bem Viver na diversidade, vivido até agora durante meio milênio na adversidade, precisa muito caminhar e ‘continuar mergulhando no que é humano, redescobrindo o que é humano e aspirando ao que há de humano em cada um/uma’”. Ao descobrir e valorizar a profunda sabedoria ancestral dos povos originários, as sociedades latino-americanas poderão descobrir a forte presença da colonialidade na sua população: na política, na economia, na arquitetura, na moda, na comida... em tudo.
A dança Guarani para o dia de ara pyahu (primavera como Ano Novo Guarani) é outra forma pela qual as belas Palavras expressam resistência para construir o próprio futuro. A primavera é o início de novos tempos, tempo de pedir coragem para resistir e enfrentar os “seres invisíveis que habitam a noite” que nos ameaçam. Isto pretende ser expresso numa Palavra dançada, uma Palavra criativa e recriadora, sempre acompanhada pelo gesto do fumo ritual do tabaco, que simboliza o elemento original que recria e renova toda a vida (tatachina, jasuka). É o tempo que impulsiona os dançarinos a embarcarem na caminhada rumo ao Bem Viver.
Lembremos que o teko porã se assenta nos saberes ancestrais, pois sem valorizar esses conhecimentos não é possível alcançar um Bem Viver para todos. Quase todos os povos indígenas insistem na importância de manter e renovar constantemente a sua inter-relação equilibrada entre o sentir bem, pensar bem e agir bem. É uma resistência interna, pessoal e coletiva, contra a crescente infiltração neocolonial. Não esqueçamos que o Bem Viver tem origem na vida familiar e comunitária, não é, portanto, individualista. É o lugar onde começa o seu caminhar, despertando a memória que pode ser a matriz civilizacional de todos os povos. Com os mesmos pés que continuam dançando na Mãe Terra, querem caminhar rumo à Terra sem Males. Mas o canto também é uma das belas Palavras que encontramos inclusive em outros povos indígenas. Aiban Wagua, teólogo Kuna, diz que os líderes espirituais do seu povo cantam os animais, as estrelas, as nuvens, a chuva, o sol e a lua... para que todos os seres vivos entrem numa relação de equilíbrio como elemento importante do Bem Viver que é uma verdadeira “música do universo”.
A utopia, o sonho do teko porã como paradigma alternativo, é uma ousada resistência à modernidade ocidental e colonial. Está sofrendo a ameaça de ser destruído em seu tecido de convivência humana e de convivência com a vida da terra. A sua valorização da diversidade cultural e religiosa, bem como da biodiversidade existente, resiste ao modelo lucrativo ocidental com um estilo de vida hegemônico, ligado a um único modelo de produção (cf. LS 146).
É admirável que o sonho do teko porã, convivido há milênios, tenha permanecido ao nível das belas palavras em forma de diálogo e em forma de reciprocidade econômica. Juan José Tamayo, teólogo espanhol, reconhece o Bem Viver como um projeto de vida que “tem uma das mais belas utopias de outro mundo possível desenhadas pela humanidade como expressão da consciência antecipatória” (4).
Estas belas Palavras, criadas como princípio de vida e convivência, e conservadas pelos Guarani ao longo de milênios, poderiam ser uma proposta de um caminho alternativo e inovador para os nossos tempos? Sabemos que o Bem Viver se baseia nos saberes ancestrais, pois sem a valorização desses conhecimentos não é possível atingir esse objetivo. Os povos indígenas insistem na importância de renovar constantemente todas as inter-relações pessoais e comunitárias no equilíbrio entre sentir bem, pensar bem e agir bem. É uma resistência interna à propaganda neocolonial da novidade a partir do zero. Não esqueçamos que o Bem Viver se origina na vida familiar/comunitária e, a partir daí, desperta a memória de ser matriz civilizacional de muitos povos.
Os Guarani e a maioria indígena estão convencidos de que a ordem do teko porã está presente no mundo. A natureza reflete em muitas partes um equilíbrio sagrado que inspira e aspira à harmonia do Bem Viver. É a Palavra divina que compartilha o seu amor e sabedoria em tudo o que foi criado. A bela Palavra de Teko Porã pode nos ajudar a “retornar às fontes para resgatar a vida”. Acreditamos que este sonho do teko porã é inerente a cada um de nós e estará sempre a caminho acompanhado por Aquele “que ama tudo o que existe e não despreza nada do que criou, porque é um ‘amigo da vida’” (Sabedoria 11, 24-26).
1. Discurso do Papa Francisco aos jovens em Dili, Timor Leste, 11 de setembro de 2024.
2. MELIÁ, Bartomeu. Camino Guaraní, Guaraní Rape. Assunção: CEPAG, 2016, p. 227.
3. MONTOYA, Antonio Ruiz de. Tesoro de la Lengua Guaraní, Madri: Iuan Sanchez, 1639.
4. TAMAYO, Juan José. Teologías del Sur, El giro descolonizador. Madri: Ed. Trotta, 2017.
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Teko Porã e o caminho das belas palavras do Povo Guarani, uma resistência ancestral. Artigo de Margot Bremer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU