12 Dezembro 2024
Pensador indígena ministrou uma das conferências de inauguração da cátedra Darcy Ribeiro, do Ieat, nesta segunda-feira.
A reportagem é de Ewerton Martins Ribeiro e Teresa Sanches, publicada por Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 02-12-2024.
“Darcy Ribeiro conviveu com uma geração que se sentia intimidada, pela arrogância do pensamento colonial, a evitar ter ideias próprias. Os pensadores da América Latina evitavam ter ideias próprias porque tê-las impedia que eles dialogassem com o que era a produção moderna ou contemporânea de um mundo [colonial] definido por publicações em inglês, francês ou alemão – bibliografias grandiosas, mas que não incluíam os latino-americanos. O Darcy, contudo, não tinha medo de pensar. Obviamente, quem não tem medo de pensar pode incorrer em algum erro, em algum equívoco. Mas isso não importa. O que importa é ter coragem de pensar. E Darcy tinha. Ele tinha aquela maneira tão gentil dele de se comunicar com todos nós, e isso possibilitava uma abertura ampla de entendimento do que ele estava propondo e das possibilidades de diálogo. Com os povos indígenas, durante a vida toda, eu acho que o Darcy se sentiu em casa.”
“Até o século 19, começo do século 20, a única narrativa que todo mundo podia acessar era a de que nós [os indígenas latino-americanos] éramos um povo beneficiário da presença colonial entre nós, que teria vindo nos ‘modernizar’, nos ‘civilizar’. Quando Darcy optou por uma ideia de povos-testemunhos, ele estava confrontando a narrativa instituída. Estamos olhando agora uma história muito antiga, de quando a Europa tinha a arrogância de contar a história do mundo na perspectiva de que tudo aconteceu a partir dela. Darcy Ribeiro [em contraponto a essa tradição] nos deixou uma obra monumental nos campos da literatura, da antropologia, das artes, da política. Ele não foi uma pessoa com um ‘único sinal’. Ele deixou muitas pistas para que a gente pudesse falar dele, tocar sua presença como cidadão, como sujeito que imaginou o Brasil. O nosso querido Darcy Ribeiro foi uma pessoa tão maravilhosa, tão plural, que nos ofereceu várias entradas para nos referirmos a ele.”
Foi nos termos acima que o pensador indígena Ailton Krenak modulou a conferência que proferiu na tarde desta segunda-feira, 2, no auditório da Reitoria, no evento de inauguração da cátedra Darcy Ribeiro: Soberania, Educação e Política, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) da UFMG. Para uma plateia preponderantemente jovem, formada sobretudo por estudantes de graduação e pós-graduação, Krenak tratou da relação do antropólogo e político de Montes Claros com os povos indígenas brasileiros em uma fala que misturou a sua tradicional reflexão livre, de origem oral, com leituras de parágrafos de um texto em que ele está trabalhando.
Como se sabe, Darcy Ribeiro (1922-1997) dedicou boa parte de seus esforços para o estudo – e, de certa forma, para a defesa da ontologia – dos povos indígenas brasileiros. Além das várias obras ensaísticas publicadas, entre suas realizações nesse campo está a redação, como funcionário do Serviço de Proteção aos Povos Indígenas (entidade precursora da Funai), do projeto do Parque Indígena do Xingu, criado em 1961.
Durante a manhã desta segunda-feira, Denise Ferreira da Silva, da Universidade de Nova York, e Carlos Roberto Jamil Cury, professor emérito da Faculdade de Educação da UFMG, já haviam falado, respectivamente, sobre a "dívida impagável" do colonialismo com os povos africanos e indígenas brasileiros e sobre a relação do postulado intelectual de Darcy com a educação brasileira.
Conforme explicou a diretora do Ieat, Patrícia Kauark, a cátedra Darcy Ribeiro é um projeto de residências de longa duração. A ideia é proporcionar a pesquisadores externos uma interação mais profunda com os grupos de pesquisa locais. Após a conferência de Ailton Krenak, o professor do Departamento de Ciência Política da UFMG Leonardo Avritzer, coordenador da cátedra, fez a última comunicação do dia, dessa vez mirando a obra de Darcy pelo viés político e sociológico.
Ainda que tentando modular sua fala para alcançar a mediana do público que o ouvia, formado sobretudo por graduandos, Ailton Krenak não se furtou de lançar ideias provocadoras. Ao mesmo tempo, o pensador se permitiu não as esquadrinhar totalmente, de modo a, ao contrário, convocar o público a participar ativamente do exercício intelectual de se pensar as questões, em vez de recebê-las mastigadas. “Vejo que há uma expressiva juventude aqui premiando-me com a sua presença. Podem ter certeza: o medo de pensar é o que impede os avanços que a gente poderia conseguir a cada geração, e que não conseguimos porque a gente fica intimidado com o que alguém fez antes de nós com a aparência de grandioso”, introduziu, remontando todo o aparato de saber já estabelecido no mundo desde a Europa, contexto que remonta à Grécia antiga.
Após discorrer sobre a singularidade arquitetônico-social da construção de Brasília, do sonho democrático do período que antecedeu o golpe de 1964, da atuação de Darcy Ribeiro e de outros intelectuais brasileiros no fomento desse sonho e no risco recentemente vivido pela democracia brasileira de sofrer um novo golpe, Ailton afirmou: “Eles [Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, entre outros que ele havia mencionado em outros momentos da conferência] queriam a democracia. Eles acreditavam na possibilidade de que viéssemos a ser uma democracia. Mas veja, eles eram sofisticados. Eles queriam uma democracia com palácios [remetendo-se a Brasília]; eles pensavam diferente daquele discurso trabalhista que acha que pobre pode morar em qualquer lugar; aquele discurso que é muito parecido com o pensamento fascista, que sugere que pobre ‘mergulha no esgoto e sai vivo’. Então a gente não pode ficar de bobeira e ouvir uma frase fascista e uma frase trabalhista sem entender a cumplicidade ideológica que elas implicam”, provocou.
Em seguida, Ailton, depois de algum tempo em silêncio, brincou com a plateia: “Deu nó?” A brincadeira sinalizava que ele sabia que a aproximação que havia feito entre fascismo e trabalhismo poderia causar curtos-circuitos em pensamentos esquemáticos, em se considerando a possibilidade natural de se aproximar imediatamente a chave trabalho/trabalhismo do campo ideológico da esquerda. Ele dobrou a provocação: “Vou ler de novo. ‘A gente não pode ficar de bobeira e ouvir uma frase fascista e uma frase trabalhista sem entender a cumplicidade ideológica que elas implicam’. O mundo do trabalho acha que os pobres têm um destino: ser pobre. É por isso que o mundo do trabalho é o mundo do trabalho.” Após uma nova pausa, Ailton então apenas concluiu, sem se permitir esquadrinhar mais seu pensamento: “Vejam, é como um haicai. Fica para vocês pensarem.”
A comunicação de Ailton Krenak na tarde desta segunda-feira na UFMG foi atravessada pela convocação ao pensamento livre, não esquematizado nem submetido a estruturas prévias ou excessivamente formalizadas de concepção, que ele demarca como coloniais, próprias de um mundo pouco interessado em efetivamente combater as “crises sistêmicas”. Na esteira desse pensamento, Ailton criticou o excesso de referências ao conhecimento produzido no âmbito dos países desenvolvidos, como se dependêssemos dele para validar o conhecimento produzido por nós, e a mobilização em certa medida acrítica que vem sendo feita da ideia de “pensamento decolonial”. “Sou convidado por muitos de vocês a ler suas teses e dissertações, e então vejo vocês fazendo lá uma ‘crítica decolonial’. Eu fico me perguntando: a gente está na Europa?”, brincou.
A brincadeira, como de praxe, era séria. “Ora, a gente não tem de fazer uma crítica ‘decolonial’, a gente tem de fazer uma crítica contracolonial. A gente tem é de denunciar e detonar o pensamento colonial como uma coisa que se perpetua inclusive a partir da nossa própria maneira de produzir conhecimento. Muitas vezes, pensamos que estamos produzindo novas epistemologias, mas elas estão eivadas de pensamento colonial, cheias de vícios. Então a gente tem de pensar bem e avaliar se quando estamos reproduzindo Deleuze ou não sei mais quem, nós estamos mesmo sendo decoloniais ou se estamos sendo apenas ‘uns bobões’. Certo?”
Ele concluiu: “Então acalmem-se, pensem e não fiquem repetindo refrão. Refrões são reproduzidos para nos tornar dóceis. Apenas pensem, porque a única maneira de confrontar o pensamento colonial é se opondo a ele no cotidiano, em sua maneira de viver, comer, andar, dançar, falar, pensar. Se você imita a fala do dono, você não se liberta".
“Darcy Ribeiro tem sido para mim de muita inspiração, especialmente nesses momentos tão difíceis, vivenciados pelas universidades públicas nos últimos anos, que chamo de período de exceção. Sempre penso sobre aquela frase em que ele dizia que temos que escolher entre a resignação ou a indignação. Eu também escolho a indignação”, disse a reitora Sandra Regina Goulart Almeida logo no início dos trabalhos de inauguração da cátedra.
Para o coordenador da cátedra, professor Leonardo Avritzer, do Departamento de Ciência Política (DCP) a iniciativa destaca o resgate da relação entre política e educação para a construção de um projeto de país soberano, que segundo o professor, foi vislumbrando pelo próprio Darcy Ribeiro, assim como por Gustavo Capanema e Anísio Teixeira. “Para eles, o projeto de educação é bem mais que formar alunos e professores, mas deve ser um projeto nacional de educação para formação dos indivíduos”, pontuou.
O patrono da cátedra, deputado federal Patrus Ananias, ao referendar a contribuição e Darcy Ribeiro para a política e a educação, entre suas inúmeras facetas, destacou seu “fascínio e afeto pelo país, ao mesmo tempo que mantinha uma crítica rigorosa contra uma parcela da burguesia, que não tem sentimento de compromisso com o país”, afirmou o deputado.
Na primeira conferência do dia, a professora Denise Ferreira da Silva, da Universidade de Nova York, fez uma conexão sobre uma das faces de Darcy Ribeiro, que ela denominou de “teórica’, com o seu mais recente trabalho, o livro Dívida impagável. Segundo a professora, seu livro, é de certa forma, “uma resposta à questão apresentada por Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, lançado em 1995”. Para a autora, Darcy foi um teórico e estudioso do povo e da nação.
Denise conheceu Darcy na aula inaugural de seu curso de graduação em ciências sociais, em 1981, no Instituto Federal do Rio de Janeiro. “Não lembro exatamente o dia, mas foi em março de 1981, eu estava sentada na segunda ou terceira fileira do auditório lotado de estudantes. E quando ele falava da mudança nas universidades, apontou para mim e disse: ‘a culpa é sua’, referindo-se à entrada das mulheres nas universidades. Imaginem o coração de uma jovem adolescente, sendo apontada por Darcy Ribeiro”, brincou.
“Outra passagem que marcou aquele dia”, continuou a professora, “foi quando o teórico disse que as elites comem os subalternos. Isso para mim foi como se um segredo tivesse sido revelado. Essa foi a única vez que Darcy Ribeiro apareceu em um curso de ciências sociais, mas com certeza sua perspectiva foi contemplada na construção dessa episteme moderna pós-iluminismo que se consolidou no século 20", afirmou.
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Ailton Krenak: ‘‘Não temos de fazer crítica decolonial, e sim, contracolonial’’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU