07 Dezembro 2024
O processo de implementação e gestão da Casa Comum reflete essa estratégia, que coloca em primeiro plano a deliberação democrática, a cooperação igualitária entre as organizações e a participação de todos e todas na tomada de decisões.
O artigo é de David Hamou e Rodrigo Savazoni, publicado por Outra Palavras, 04-12-2024.
David Hamou é doutor em Sociologia pela Universidade Paris-Nanterre.
Rodrigo Savazoni é escritor, realizador multimídia, pesquisador e gestor cultural. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero (2001), Mestre em Ciências Humanas na Universidade Federal do ABC - UFABC (2014) e Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC - UFABC (2017).
Ele pode ser fundamental para deter o avanço da ultradireita. Mas, talvez, a tática já não seja apenas a luta por autogestão ou a “reconquista do governo”, mas transformar radicalmente a lógica do Estado, num pacto de cooperação e sinergia com os ativismos.
A ascensão em escala global da extrema direita e do neoliberalismo autoritário representam uma ameaça direta à democracia. Foi o que demonstraram os anos de governo Bolsonaro no Brasil, os quais constituíram um verdadeiro laboratório da reação conservadora antidemocrática no mundo. Sob aquele governo, o incentivo à destruição do meio ambiente, a manipulação das paixões nacionalistas, os ataques à diversidade de gênero e a legitimação de ataques racistas foram acompanhados pela disseminação da lógica empresarial da concorrência, a generalização da privatização e os ataques à legislação trabalhista e ao sistema de aposentadorias. As estruturas de participação social foram desmontadas; bem como novas instituições de perseguição política, escoradas no uso de plataformas proprietárias de redes sociais, foram criadas. Além disso, a proliferação das mentiras e fake news, da violência verbal e do negacionismo minaram as próprias condições de existência de uma deliberação democrática, produzindo um rebaixamento do debate público em nosso país.
Essa situação, longe de ser exclusiva do Brasil, está inserida em um contexto global de avanços das forças antidemocráticas, como mostram a eleição de Javier Milei na Argentina e o retorno de Trump ao poder nos Estados Unidos. Essa extrema direita está fortalecendo sua posição por meio de uma estratégia de alianças internacionais, como demonstrado pela organização de um evento que reuniu Milei e o chileno José Antonio Kast com o partido xenófobo espanhol Vox e os líderes da extrema direita europeia, Marine Le Pen, Giorgia Meloni e Viktor Orbán. A resposta a essa nova aliança global reacionária também deve ser internacional. A estratégia política do Comum, na qual o projeto Casa Comum se insere, pode e deve representar uma renovação do internacionalismo desde a sua base, capaz de fortalecer a democracia e conectar em rede iniciativas de autogoverno em nível local.
Nesse contexto global de ataque generalizado à democracia e aos direitos mais fundamentais, que conduz a uma “desdemocratização da democracia”[1], é mais do que nunca necessário implementar uma verdadeira reconstrução democrática, na qual a sociedade civil brasileira pode ser protagonista.
Diante dessa situação, apresentamos duas propostas estratégicas.
Em primeiro lugar: a reconstrução democrática não pode limitar-se à reconquista do governo, mas deve, pelo contrário, atravessar toda a sociedade. Os movimentos sociais e a sociedade civil, que desempenharam um papel fundamental na resistência ao governo extremista de Bolsonaro, na reeleição de Lula e na produção de condições de vida vivível quando isso parecia impossível, também têm um papel fundamental a desempenhar na reconstrução democrática em andamento, dentro e fora das instituições. Se era indispensável que as forças progressistas recuperassem o controle do governo, o aprofundamento democrático não se pode limitar aos partidos políticos ou às formas já instituídas do poder. Sem abandonar a possibilidade de formas de colaboração entre o Estado e a sociedade civil, esta última também deve manter uma agenda autônoma que se emancipe dos ritmos e das modalidades da política parlamentar. Defendemos que a estratégia política do Comum, que visa tanto construir novas formas de poder social quanto democratizar as nossas instituições políticas[2], pode se tornar um novo paradigma para essa renovação democrática. Chegou a hora de elaborarmos um novo imaginário coletivo, abrir o campo dos possíveis democráticos e inventar novas maneiras de manejar coletivamente os assuntos públicos. Do trabalho aos cuidados, da cultura ao sistema de saúde, das infraestruturas urbanas ao acesso à terra, é no conjunto das áreas da vida social que devemos incentivar o autogoverno e a intervenção direta de todos e todas na gestão democrática dos recursos e serviços comuns. Nós entre nós, refazendo as conexões que foram afrouxadas e tecendo outras, que ainda não havia sido possível fiar.
Em segundo lugar: em consequência, é necessário nos afastarmos de uma estratégia puramente defensiva e adotarmos uma postura mais proativa, com o objetivo de fortalecer a capacidade de mobilização da cidadania para além das formas democráticas liberais. Diante da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro e dos repetidos ataques às instâncias do Estado de Direito, como o STF, tornou-se mais necessário do que nunca proteger a infraestrutura política e jurídica do Estado de Direito. Primeiro, porque ela constitui um baluarte contra a extrema direita, notadamente por salvaguardar garantias fundamentais como a separação de poderes ou o respeito à imparcialidade das eleições. Segundo, porque, apesar de todas as suas imperfeições, a democracia liberal como existe hoje também é fruto de uma história de lutas pela emancipação, como demonstram a legislação trabalhista, a liberdade sindical, a liberdade de reunião ou as leis contra o racismo e a violência de gênero. No entanto, embora essa postura defensiva seja necessária, ela não é suficiente e deve estar vinculada a uma estratégia de aprofundamento da democracia. Precisamos ir além do que já conquistamos, precisamos ativar a imaginação e explorar as múltiplas vias das alternativas democráticas. Esse é o objetivo da estratégia política dos comuns, que defende uma profunda reformulação da democracia, tanto por meio da democratização das instituições públicas quanto da criação de novas instituições coletivas.
A estratégia do comum visa revitalizar a participação social por meio da construção de um novo paradigma de intervenção da sociedade civil nos assuntos gerais. Pensadores e praticantes do comum, em muitos de seus debates, afirmam o potencial comuneiro de soluções criadas no Brasil, em governos da esquerda democrática (sobretudo do Partido dos Trabalhadores), como o Orçamento Participativo e a Gestão Pública Compartilhada. Podemos, então, afirmar que um dos desafios que estamos a enfrentar com este texto é o de pensar em formas de atualizar o “modo petista de governar”, tanto dentro como fora das estruturas partidárias. Uma vez reconhecido que esses mecanismos já não têm sido mais adotados pelas gestões públicas contemporâneas, esse esforço se direciona não a retomar modelos preexistentes, mas a inventar, no agora, soluções que se adéquem às características contemporâneas da sociedade brasileira.
Olhemos com atenção redobrada para isso que afirmamos. Nos anos 1990 e na primeira década de 2000, o Brasil esteve na vanguarda da inovação em termos de democracia participativa, com medidas como o orçamento participativo em Porto Alegre, que atraiu a atenção de progressistas em todo o mundo, levando a esperança de uma renovação da democracia. Mais uma vez, é necessário defender essas conquistas e ocupar todos os espaços de consulta formal entre o Estado e a sociedade civil. No entanto, temos de reconhecer que esses mecanismos participativos se tornaram um tanto rotineiros e que, após várias décadas de existência, às vezes se tornaram lugares de diálogo inofensivo, com dificuldades para exercer uma influência real nas decisões políticas. Essa realidade se reflete em uma forma de desencanto com os órgãos formais de participação, resumida pelo secretário da Secretaria Nacional de Periferias (SNP) Guilherme Simões Pereira, que relata as seguintes palavras de uma liderança das periferias: “Estamos cansados de audiência pública [3]“.
Esses “limites à experiência de participação” estão parcialmente ligados ao aspecto processual desses mecanismos democráticos, que nem sempre levam em conta as expressões de participação popular de base. De fato, como aponta o filósofo Jacques Rancière, a ideia de participação reúne duas propostas heterogêneas, a saber, o desejo reformista de mediação e a perspectiva de intervenção permanente da cidadania em todas as esferas. “A mistura das duas propostas, conclui ele, produz aquela ideia bastarda que atribui, como lugar de exercício da permanência democrática, a ocupação dos espaços vazios do poder. Mas a permanência da democracia não é antes de tudo sua mobilidade, sua capacidade de mudar os lugares e as formas de participação?[4]“. Defendemos a hipótese de que a perspectiva do comum pode encher os pulmões da democracia participativa, promover uma revitalização da participação social que seja capaz de mudar os lugares e as formas de participação em vez de ocupar os espaços vazios do poder. Haveríamos de pensar a possibilidade de vislumbrar as comunidades como a expressão da representação no processo de participação social, para além dos indivíduos, sejam lideranças ou não. Trata-se de responder coletivamente à questão de como radicalizar a participação social no sentido de uma nova política comuneira hoje. Para atingir esse objetivo, é necessário ir além de uma compreensão da participação como simples consulta ou escuta da opinião da sociedade e avançar para uma perspectiva de coprodução política, incorporada em formas de coelaboração, codecisão e coaplicação de políticas públicas com a cidadania.
Mas o que queremos dizer com “comum”, e como o comum pode representar uma nova alternativa na necessária rearticulação democrática entre a sociedade civil e o Estado? Além da proliferação de definições e abordagens sobre o comum, os comuns, os bens comuns ou o procomum, como podemos nos apropriar desse conceito desde a prática? Inventá-lo a partir da ação em conjunto, da cooperação e da colaboração uns com os outros? Como o comum entendido como resultado deste movimento de construção coletiva dialoga com outras perspectivas do comum?
Foi o trabalho de Elinor Ostrom na década de 1970 que deu o pontapé inicial no pensamento contemporâneo sobre os comuns. A cientista política americana, a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel de Economia em 2009, desenvolveu com a sua equipe uma teoria original sobre os bens comuns e as instituições autônomas capazes de gerenciar recursos naturais compartilhados, como florestas, pastagens e áreas de pesca. Em sua obra, Ostrom demonstra que certas formas de organização institucional local são capazes de assumir a gestão dos bens comuns de maneira economicamente eficiente e ecologicamente sustentável[5]. Seu trabalho marca, portanto, um avanço além da divisão entre a gestão pública e privada de bens e o surgimento de uma terceira via além do mercado e do Estado: a gestão comunitária local.
Na tradição de Ostrom, a maioria das perspectivas concorda que o comum é composto por três elementos: um recurso, uma comunidade e um conjunto de regras. Alguns, no entanto, enfatizam mais uma dessas dimensões, como o historiador Peter Linebaugh, para quem comum não é mais o tipo de recurso em si, mas a comunidade que se encarrega dele e, acima de tudo, a atividade de “comunalizar” (commoning), enfatizando o comum como uma prática, como um verbo, e não como uma realidade reificada[6].
Nas décadas seguintes, a perspectiva econômica sobre os “bens comuns” foi, de fato, continuada e, por vezes, questionada. Ao mudar de “bens comuns” para “comum” no singular, Pierre Dardot e Christian Laval propõem uma nova abordagem do comum como um princípio político de autogoverno coletivo, um verdadeiro “princípio geral para a reorganização da sociedade”. Nesta visão, o comum nunca é definido de antemão, porém sempre depende de uma atividade de “comunalização” (mise en commun) que representa uma alternativa política tanto para o mercado quanto para o Estado. Assim, o comum é, acima de tudo, o “princípio político da coobrigação para todos os que estejam engajados numa mesma atividade”, uma forma de “prática instituinte”, entendida como um processo de transformação das instituições e de criação permanente de instituições do comum[7]. Nesse sentido, trata-se de não se limitar as formas já instituídas da política, mas, ao contrário, de construir alternativas institucionais, de abrir o campo das possibilidades democráticas e de criar novas instituições cujos contornos e modalidades são fruto de uma verdadeira deliberação entre todos os participantes.
Outra perspectiva que difere da abordagem da economia política em relação aos bens comuns é a das teorias feministas, que propõem reintegrar a questão do gênero e da reprodução social no centro da análise dos comuns. Quando o Midnight Notes Collective publicou New Enclosures em 1980, já estava denunciando a apropriação capitalista das estruturas e dos espaços de reprodução social, especialmente por meio dos programas de reestruturação e da disseminação da dívida imposta pelo Banco Mundial nos países do Sul Global. Silvia Federici, por sua vez, mostra como os ataques do neoliberalismo ao sistema de pensões, às formas de proteção social e à legislação trabalhista estão levando a uma reprivatização da reprodução, que deve ser assumida pelas mulheres na esfera doméstica. Ao mesmo tempo, Federici nos lembra do papel vital desempenhado pelas mulheres na proteção dos comuns e defende a construção de formas cooperativas de reprodução social, que vão além da mera produção econômica na esfera do mercado[8].
No Brasil, o pensamento do comum consta do vocabulário de muitos ativistas, militantes e teóricos da esquerda democrática, apesar das dificuldades de tradução linguística e política do termo anglo-saxão commons para o português[9]. Essa diferença discursiva, porém, é diminuída pela prática, uma vez que muitas das ações e sentidos de importantes atores políticos do campo progressista poderiam ser qualificadas como comuneiras. Nesta nova idade da luta social, não se trata de aplicar ao Brasil teorias desenvolvidas em outros contextos – muitas vezes no Norte Global – mas de pensar os comuns desde a realidade brasileira, como mostram as propostas de uma integração das práticas informais na área dos comuns[10] ou de uma abordagem centrada na “produção e reprodução de novos comuns urbanos sob condições periféricas”[11]. A imbricação da esfera pública com o domínio privado oligárquico, consequência do colonialismo no Brasil, implica articular uma estratégia política baseada nos “comuns de sobrevivência”, destinados a garantir as condições de vida aos mais desfavorecidos[12]. Ao fazer esse deslocamento das práticas e teorias do comum, o visualizamos não (apenas) nas terras comunais do medievo europeu, mas também e muito mais nas táticas, manhas, hábitos e instituições emergentes das populações subalternizadas de nosso país. Em específico, percebemos a possibilidade de afirmar os comuns em diálogo com a ancestralidade negra, reivindicando os terreiros (não apenas os religiosos, mas os barracões das escolas de samba, as hortas comunitárias, as festas populares, as esquinas e quadras onde ocorrem trocas e aprendizagens horizontais) como horizonte comum. Também devemos fazer esse mesmo processo com os saberes indígenas, capturando a floresta e sua arquitetura complexa entre humanos e mais que humanos como inspiração para a produção de outros arranjos políticos democráticos. Essas duas visões podem ser resumidas na ideia de um “devir-floresta do comum” e de um “devir-terreiro do comum”[13].
Essas abordagens são apenas uma parte da crescente profusão de teorias sobre os comuns. Não se trata de decidir a favor de uma ou outra visão dos comuns, mas, ao contrário, de confrontá-las com a realidade, na construção coletiva de um horizonte de transformação, em diálogo com os participantes da Casa Comum. Cada uma dessas perspectivas oferece valiosas contribuições para a reflexão: a abordagem neoinstitucionalista nos lembra da importância de definir regras para o uso coletivo dos comuns; a hipótese dos comuns como autogoverno nos permite pensar sobre eles como um processo político que rompe com a lógica da soberania estatal e da propriedade privada; as perspectivas feministas enfatizam a dimensão essencial da reprodução social, sem a qual os comuns não poderiam existir e ser sustentáveis; enquanto as perspectivas decoloniais ou antropofágicas nos levam a pensar nos comuns a partir de realidades não ocidentais e a reintegrar a questão racial ao pensamento e à prática dos comuns. No entanto, a fim de contribuir para esse diálogo, consideramos importante propor um posicionamento sobre uma das principais problemáticas na reflexão sobre os comuns: a relação entre os comuns, o Estado e o mercado.
A questão da relação entre o Estado e o mercado está no centro da atual controvérsia em torno dos comuns. Para Ostrom e a corrente neoinstitucionalista, os comuns representam uma “terceira via” entre o Estado e o mercado, e essa “nova triarquia” entre o mercado, o Estado e os comuns poderia fazer surgir um “Estado-parceiro” dos comuns [14]. Por outro lado, uma segunda tendência tende a pensar os comuns como antagônicos ao Estado e ao mercado. Nesse caso, o Estado é visto não como um parceiro dos comuns, mas como um adversário que pode destruí-los[15]. Assim sendo, o objetivo desses atores anti estatais é “desconstruir o poder do Estado[16[”. Em resumo, é a questão do papel das instituições não-estatais e sua relação mais ou menos conflituosa com o Estado que é reativada nesta discussão e, consequentemente, a questão da relação entre a sociedade civil e a esfera pública.
Não se trata apenas de um debate teórico, pois essas duas visões se materializam em estratégias políticas diferentes, uma com o objetivo de coexistir pacificamente com o Estado e o mercado, e outra com o objetivo de propor uma forma de secessão em coletivos isolados. Embora essas duas estratégias possam ter suas vantagens, dependendo do contexto, também achamos importante reconhecer suas respectivas limitações. Para aqueles que os veem como uma “terceira via”, os comuns podem existir em paralelo e serem compatíveis com o mercado e o Estado. No entanto, essa visão ignora os conflitos com os quais os comuns são frequentemente confrontados e, por conseguinte, as tentativas de cercamento privado e estatal que ameaçam sua própria existência. Por outro lado, o desejo de construir alternativas apenas nos interstícios e nas margens do sistema econômico e político corre o risco de limitar a emancipação a grupos isolados de commoners, sem levar em conta as pré-condições subjetivas e materiais de participação nos comuns e, portanto, as pessoas que não têm acesso a eles na prática. Essas duas estratégias opostas compartilham uma característica: sejam os comuns aliados ou, ao contrário, estritamente separados do mercado e do Estado, a possibilidade de que os comuns possam ser o foco de uma transformação democrática mais ampla da sociedade é negada.
A colaboração acrítica com o poder e a fuga do poder são semelhantes, pois deixam a soberania e a propriedade inalteradas. A encruzilhada em que estamos não demanda nem submissão nem deserção, mas um preparo para ousar divergir e ousar permanecer. Neste esforço de reconstrução democrática que se inaugura com o terceiro governo Lula, precisamos caminhar para a construção de formas de cooperação com autonomia. Com isso, vislumbramos evitar um risco duplo na relação entre os comuns e o Estado: um risco de desativação por meio da cooptação e um risco de deserção por meio da fragmentação das lutas.
Em vista disso, precisamos conceber novos vínculos entre os comuns e a esfera pública, capazes de transformar a lógica pública no sentido do comum, e ao mesmo tempo fazer uso tático do Estado e de seus recursos com o objetivo de fortalecer a auto-organização social. Essa estratégia pode ser materializada em um processo de “devir-comum do público”, que consiste em “lutar para recuperar, por meio da auto-organização coletiva, os espaços de tomada de decisão sobre os recursos necessários para satisfazer nossas necessidades fundamentais”[17]. Não se trata mais apenas de se opor aos cercamentos privados e estatais dos comuns, garantindo os processos de auto-organização dentro deles, mas também de enfrentar diretamente o Estado e o mercado, instituindo uma melhor distribuição de recursos e uma democratização da tomada de decisões sobre a vida comum. Embora reconheça que o Estado não tem o monopólio da institucionalidade, essa estratégia de comunalização atua tanto “dentro quanto contra o Estado[18]“, a fim de reforçar a esfera pública não estatal. Trata-se, então, de usar taticamente os recursos do Estado para fortalecer o poder dos comuns.
Se queremos reduzir a distância entre o poder de influência da sociedade civil e o do setor privado, é importante entender como esse último opera. Diversos estudos demonstraram que o neoliberalismo não significa “menos Estado”, senão sim um fortalecimento da autoridade do Estado para promover a acumulação capitalista. Acima de tudo, a racionalidade neoliberal não influencia as decisões do Estado de fora para dentro, mas visa a transformar por dentro a própria lógica da ação pública, de acordo com os padrões de concorrência da iniciativa privada, em uma forma de “mercadorização da instituição pública obrigada a funcionar de acordo com as regras empresariais[19] “.
Se quisermos enfrentar o avanço neoliberal e nos opor aos cercamentos privados da esfera pública, é necessário, portanto, não apenas fortalecer a influência das organizações da sociedade civil sobre o Estado, senão também transformar profundamente a própria lógica do Estado, não no sentido de uma racionalidade competitiva, mas, ao contrário, no sentido da dinâmica do comum, ou seja, da cooperação e da participação igualitária de todos e todas nas regras que nos governam. Por esse motivo, nosso desejo é “promover a formação de ativistas e agentes públicos”, por conta do reconhecimento da natureza altamente política da administração e busca um objetivo duplo. Por um lado, trata-se de promover uma forma de profissionalização dos atores da sociedade civil quanto ao seu impacto político, desenvolvendo seu conhecimento dos mecanismos burocráticos e do funcionamento da máquina administrativa. Em segundo lugar, pretende-se que os funcionários públicos conheçam melhor as demandas e as práticas políticas da sociedade civil, através da organização de workshops, cursos de treinamento comuns ou grupos entre as organizações sociais e os funcionários públicos. É essa aprendizagem mútua que possibilitará a transformação das práticas administrativas e o fortalecimento da capacidade de mudança dos ativistas, em uma tentativa de superar a dicotomia entre o técnico e o político.
Em suma, defendemos a ideia de que uma rearticulação entre o Estado e a sociedade civil poderia basear-se no princípio político do comum, que tende para uma extensão da deliberação pública para além da esfera profissional da política. Esta mudança da fronteira da interface Estado/sociedade civil já está em ação em várias experiências políticas, tanto internacionais quanto brasileiras.
Observando o cenário ao redor do globo, é notório encontrar alguns exemplos dessa aliança público-comum em países da Europa e também nos Estados Unidos. Em que pese as diferenças sócio-históricas e de condições de produção dos comuns em nossos territórios, entendemos que há um desafio que atravessa tanto o centro como a periferia do sistema neoliberal. Esses exemplos, portanto, podem nos ajudar a compreender o desafio que temos para a construção de um pacto público-comum em nosso país. Em particular, essas experiências nos lembram que o desafio de entrar em instituições representativas não deve ocultar que o objetivo de democratizá-las continua sendo o de fortalecer o poder social que está fora dessas instituições, a fim de promover a gestão comum da esfera pública. Portanto, não se trata de “traduzir” as lutas dentro do governo, mas de criar novas formas de colaboração entre as instituições públicas e as instituições populares capazes de fortalecer o autogoverno da própria sociedade.
Na Espanha, novas formas de colaboração entre a sociedade e as instituições públicas foram criadas durante a experiência do “municipalismo”, quando novas coalizões cidadãs chegaram ao poder local em 2015, em um cenário de crise econômica e crise de representação. Ada Colau, ex-porta-voz da Plataforma de Afectados por la Hipoteca, o maior movimento social de direito à moradia da Espanha, tornou-se prefeita de Barcelona e governou a cidade à frente da plataforma Barcelona en Comú de 2015 a 2023. O processo de criação da plataforma municipalista, conhecido como “confluência”, favoreceu a organização de baixo para cima, organizando várias assembleias de bairro e construindo o programa de forma participativa com os movimentos sociais. Logo, o objetivo do municipalismo não era simplesmente “tomar o poder” em nível local, mas usar a ocupação das instituições para abri-las à participação real dos e das habitantes e dos movimentos sociais. O experimento Barcelona en Comú também encontrou obstáculos, especialmente na forma da oposição do Estado central, lobbies privados e partidos políticos tradicionais, mas, acima de tudo, devido à inércia e à estrutura hierárquica da prefeitura. Porém, o municipalismo de Barcelona também tem sido um laboratório para a rearticulação entre instituições públicas e movimentos de protesto, principalmente por meio da adoção de cartas de comuns urbanos que permitem a cessão de uso de equipamentos públicos e da coprodução com movimentos sociais de novas normas de direito à cidade e direito à moradia[20].
Em outro contexto, a experiência de Cooperation Jackson, de Mississipi, Estados Unidos, também demonstra a possível complementaridade entre a ocupação de instituições e a construção de instituições populares autônomas. Esta organização de base luta a favor da democracia econômica e da autodeterminação preta, mediante três pilares de ação. O primeiro é a construção de uma rede de cooperativas gerida pelos trabalhadores e trabalhadoras, que conta com cooperativas de economia social e solidária, nos setores de guardaria, saúde, alimentação, assim como com um FabLab e um Comunity Land Trust. A segunda estratégia do movimento foi a criação de assembleias populares abertas para favorecer a participação de base na gestão da cidade[21]. Por último, em uma cidade que conta com 80 % de população preta, e enquanto a elite política da cidade sempre foi branca, Cooperation Jackson também decidiu e conseguiu recuperar as instituições municipais da cidade, com a eleição como prefeito de Chokwe Lumumba em 2013 e do seu filho Chokwe Antar Lumumba em 2017, reeleito em 2021.
Se o comum é, então, o objetivo político que estamos perseguindo, ele também é o princípio organizacional da Casa Comum, orientando tanto a sua metodologia de construção interna quanto a forma como ela se atrela a outras iniciativas sociais, políticas e culturais. A ideia dos comuns está relacionada tanto ao objetivo político quanto ao caminho a ser seguido para alcançar esse objetivo, com a ideia de não separar os meios e os fins. Isso pressupõe uma ruptura com uma certa tradição política que sustenta que “os fins justificam os meios” e que, para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, seria necessário o uso de meios injustos e igualitários. É essa estratégia que Hannah Arendt chama de paradigma da “fabricação”, de um único ato de fundação de uma nova sociedade, que legitimaria o uso de todos os instrumentos necessários para atingir o objetivo estabelecido, como sugere o provérbio “não se faz uma omelete sem quebrar ovos[22]“. Ao contrário, a “estratégia política do comum” rompe com essa perspectiva, reconhecendo “uma certa imanência do fim à luta pelo fim, ou seja, à atividade de implementar meios na e pela luta pela emancipação[23]“. A reconstrução da democracia promovida pela Casa Comum é, consequentemente, tanto um caminho quanto um objetivo. Em outras palavras, nesse caso, ao contrário do adágio maquiavélico, os meios justificam, ou melhor, prefiguram os fins.
O processo de implementação e gestão da Casa Comum reflete essa estratégia, que coloca em primeiro plano a deliberação democrática, a cooperação igualitária entre as organizações e a participação de todos e todas na tomada de decisões. É o que propõe a metodologia “Nosso jeito”, desenvolvida pelo Instituto Procomum, e que prevê o desenvolvimento de sete etapas, que podem ser subsequentes ou simultâneas, para a instalação de um processo colaborativo. Trata-se, pois, de aplicar formas de colaboração democrática desde a primeira fase de identificação e estruturação do projeto, o que possibilitará compor as muitas vozes que integram o projeto, e em especial as três organizações do Comitê de Fundação, formado pelo Instituto Procomum, pelo Advocacy Hub, e pelo Instituto Afrolatinas. Posteriormente, esse processo de cooperação também estará ativo, principalmente nas fases 3, “chamamento” e 4, “encontro”, que preveem a aproximação com aqueles que optarem por se juntar a nós e a construção das dinâmicas de ocupação da Casa Comum e dos seus protocolos de convívio, baseados nos princípios do comum. A Casa Comum é, portanto, um laboratório de práticas democráticas prefigurativas, que propõe experimentarmos aqui e agora o outro mundo possível que desejamos. Não se trata apenas de clamar por novas formas de fazer política, mas de colocá-las em prática em nosso cotidiano.
Não é por acaso que a Casa Comum escolheu se instalar na capital do país. Brasília, acima de tudo, é um lugar de poder. O desejo da Casa Comum de alterar as fronteiras entre o Estado e a sociedade civil, com o objetivo de tornar a esfera pública mais permeável ao seu exterior, deve ser materializado em uma política de apoio ativo aos ativistas que se juntaram ao governo. É extremamente difícil para os ativistas habitarem as estruturas administrativas do Estado, especialmente para as lideranças de comunidades sub-representadas nas esferas de poder. Diante dessa situação, a Casa Comum quer implementar formas de cuidados dos agentes da sociedade civil. Em particular, isso envolverá oferecer a eles outro espaço não governamental para a socialização e a reflexão, permitindo-lhes compartilhar suas experiências e receber cuidado em seu trabalho cotidiano nos meandros do poder.
Contudo, embora Brasília seja um lugar de poder, também pode e deve se tornar um lugar de contrapoder. Os movimentos sociais que convergem para a capital do país muitas vezes se veem atuando de forma precária, sem recursos e sem um espaço de referência que os apoie na formulação de suas demandas. É isso que justifica a ambição da Casa Comum de disponibilizar seu espaço e recursos para organizações sociais e de protesto que não têm sede própria em Brasília. Fortalecer a influência da sociedade civil significa reduzir a assimetria entre seu acesso ao poder e o do setor privado, que tem muitos recursos e meios à sua disposição na capital. Essa dinâmica de colaboração deve envolver também os espaços comuns que já existem ou estão surgindo em nossa cidade, com o objetivo de construir uma federação de lugares de uso comum capaz de se estender a novos espaços, de responder a novas necessidades e de construir novos horizontes democráticos.
[1] Brown Wendy, In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West, New York, Columbia University Press, «The Wellek library leituras», 2019.
[2] Dardot Pierre e Laval Christian, Comum: ensaio sobre a Revolução no século XXI, São Paulo, Boitempo, 2017.
[3] Ver o debate “Periferias” organizado em abril 2024 na USP: https:/www.youtube.com/watch?v=tuzJFdFz7eU
[4] Rancière Jacques, Aux bords du politique, Paris, Gallimard, 2010, p. 110.
[5] Ostrom Elinor, Governing the Commons: The evolution of institutions for collective action, Cambridge, M.A., Cambridge University Press, 1990.
[6] Linebaugh Peter, The Magna Carta Manifesto: Liberties and Commons for All, Berkeley, University of California Press, 2008.
[7] Dardot Pierre e Laval Christian, Comum, op. cit.
[8] Federici Silvia, « Feminism and the Politics of the Commons » in Uses of a whirlwind: movement, movements, and contemporary radical currents in the United States, Craig Hughes, Stevie Peace, Kevin Van Meter, et al. (éd.), Edinburgh ; Oakland, CA, AK Press, 2010.
[9] Silveira Sergio Amadeu et Savazoni Rodrigo Tarchiani, « O conceito do comum: apontamentos introdutórios », in Liinc em Revista, no 1, vol. 14, 5 juin 2018, p. 296‑321.
[10] Majo Claudio de et Silva Claiton Marcio da, « Para um estudo dos bens comuns no Brasil », in Fronteiras: Revista Catarinense de História, no 40, 16 août 2022, p. 296‑321.
[11] Tonucci Filho João Bosco Moura, « Ocupações por moradia e a produção do comum urbano na periferia: explorações a partir de Belo Horizonte », in SILVEIRA, Clóvis Eduardo Malinverni da; BORGES, Gustavo; WOLKMER, Maria de Fátima Schumacher.(Orgs.). O comum, os novos direitos e os processos democráticos emancipatórios. Caxias do Sul: EDUCS, 2019, 2019.
[12] Dal’Bo Da Costa André, De Jesus Silva Selma Cristina, Ken Ota Nilton, et al., « Peut-on penser le commun en tant que stratégie politique dans un pays périphérique comme le Brésil ? » in L’alternative du commun, Laval Christian, Sauvêtre Pierre et Taylan Ferhat (dir.), Paris, Hermann, « Colloque de Cerisy », 2019, p. 365‑376.
[13] Savazoni Rodrigo Tarchiani, O Comum na Encruzilhada, Azougue Editorial, 2024.
[14] Bauwens Michel, « The new triarchy: the commons, enterprise, the state », P2P Foundation, https://blog.p2pfoundation.net/the-new-triarchy-the-commons-enterprise-the-state/2010/08/25, 25 août 2010, consulté le 11 octobre 2022.
[15] De Angelis Massimo, Omnia Sunt Communia: on the Commons and the Transformation to Postcapitalism, London, Zed Books, « In common », 2017, p. 21.
[16] Broumas Antonios G., « Commons’ Movements & “Progressive” Governments As Dual Power: The Potential for Social Transformation in Europe », in SSRN Electronic Journal, 2016.
[17] Méndez de Andés Ana, Hamou David e Aparicio Marco (ed.), Códigos comunes urbanos: herramientas para el devenir-común de las ciudades, Barcelona, Icaria Editorial, 2020, p. 8.
[18] London Edinburgh Weekend Return Group, In and Against the State, London, Pluto, 1980.
[19] Dardot Pierre et Laval Christian, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, São Paulo, Boitempo, 2016.
[20] Hamou David, « Un pied dans l’institution, mille pieds dans la rue ». Commun, municipalisme et mouvements sociaux pour le droit au logement à Barcelone (2015-2019), Tese de doutorado, Université Paris-Nanterre, 2023.
[21] Akuno Kali et Nangwaya Ajamu, Jackson rising: the struggle for economic democracy and Black self-determination in Jackson, Mississippi, Daraja Press, Montréal, 2017.
[22] Arendt Hannah, Entre o passado e o futuro, Perspectiva., São Paulo, 2005, p. 184.
[23] Dardot Pierre, « Le commun comme principe stratégique » in L’alternative du commun, Christian Laval, Pierre Sauvêtre et Ferhat Taylan (éd.), Paris, Hermann, 2019, p. 27‑43.
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Comum, trilha para a reconstrução da democracia. Artigo de David Hamou e Rodrigo Savazoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU