Um grupo de cientistas brasileiros, ao estudar sedimentos florestais no leito do oceano atlântico, mapeiam características passadas do bioma e projetam cenários futuros para a maior floresta tropical do mundo
Pode parecer estranho para quem não é especialista no tema, mas é o do fundo do mar que os cientistas reconstituem um retrato fiel do passado da floresta amazônica e demonstram como o aquecimento global antrópico coloca a nossa e outras espécies em risco. “Isso ocorre porque os sedimentos carregados pelos grandes rios, como o Amazonas, transportam partículas de solo, restos de vegetação, e outros materiais orgânicos e inorgânicos das áreas continentais até o oceano”, explica Thomas Akabane, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Cada camada sedimentar guarda informações sobre as condições ambientais do momento em que foi depositada, como o tipo de vegetação predominante, a intensidade das chuvas, a ocorrência de incêndios florestais, e até as mudanças na circulação oceânica”, complementa o entrevistado.
As correntes marinhas têm um papel fundamental nesse processo, na medida em que elas são responsáveis pela troca de calor entre os hemisférios. “A Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (AMOC, na sigla em inglês) é um importante regulador do balanço térmico entre os hemisférios, sendo responsável pelo transporte de uma quantidade gigante de calor para o Atlântico Norte. Desta forma, o seu enfraquecimento significaria uma diminuição substancial das temperaturas em partes da Europa e América do Norte, enquanto que para nós, na América do Sul, isto representaria uma grande mudança nos padrões de chuvas” alerta.
As fronteiras de nossos desafios ambientais se alargam até a dimensão social, está igualmente dramática e com poucas ambições de serem, de fato, resolvidas pelas autoridades. “As mudanças climáticas não ocorrem de maneira isolada, mas interagem diretamente com desigualdades sociais. Nesse sentido, enfrentar as mudanças climáticas exige não apenas a redução de emissões de gases de efeito estufa, mas também a promoção de justiça climática, considerando as responsabilidades históricas”, ressalta Akabane.
Thomas Akabane (Foto: Currículo Lattes)
Thomas Kenji Akabane é formado em Geologia (2016), mestre (2019) e doutor (2024) em Geociências (Geoquímica e Geotectônica) pela Universidade de São Paulo (USP). Está realizando pós-doutorado na Université de Bordeaux, na França. Sua pesquisa foca na dinâmica da vegetação e em regimes de incêndio, utilizando proxies como palinologia, microcarvão e geoquímica. Participa de pesquisas em ambientes tropicais da América do Sul, com enfoque na Amazônia e Cerrado, além de atuar na paleopalinologia do Cenozoico no sudeste do Brasil.
IHU – Para contextualizar, pode explicar o que são as correntes marítimas e qual a sua função no equilíbrio climático global?
Thomas Akabane – Correntes marítimas são formadas pelo movimento de massas de água influenciada por fatores como a rotação do planeta e influência de ventos em superfície, mas em grande medida por diferenças de temperatura e salinidade, que afetam a densidade da água. Essas correntes desempenham um papel crucial no equilíbrio climático global, pois são responsáveis por redistribuir o calor.
IHU – Existe uma descrição científica que é fundamental compreendermos para entender os estudos que o senhor e sua equipe realizam: o que é a Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (AMOC) e qual sua importância?
Thomas Akabane – A Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (CRMA ou AMOC, em inglês) é uma grande circulação oceânica do Atlântico responsável pelo balanço térmico entre os hemisférios, por meio do transporte em superfície de águas mais quentes do Atlântico Tropical em direção a altas latitudes do Atlântico Norte, que afundam próximo à região da Groenlândia e retornam para o sul em profundidade.
Representação gráfica do grande sistema de correntes oceânicas do Atlântico (AMOC), que transportam águas quentes para o norte e águas frias para o sul – Fonte: NOAA
IHU – Como as mudanças nas correntes marítimas podem afetar os padrões de precipitação da Amazônia?
Thomas Akabane – A AMOC é um importante regulador do balanço térmico entre os hemisférios, sendo responsável pelo transporte de uma quantidade gigante de calor para o Atlântico Norte. Desta forma, o seu enfraquecimento significaria uma diminuição substancial das temperaturas em partes da Europa e América do Norte, enquanto que para nós, na América do Sul, isto representaria uma grande mudança nos padrões de chuvas. Como o transporte de calor em direção ao norte se torna menos eficiente, ocorre um relativo aquecimento do hemisfério sul, o que promove um deslocamento da zona de convergência intertropical (cinturão de chuvas tropicais) em direção a sul. Desta forma as regiões do norte da América do Sul, incluindo a Amazônia, sofrem com uma redução na quantidade de chuvas, enquanto que no sul da Amazônia é previsto um aumento de chuvas, sob essas condições.
IHU – Como a correlação entre a mudança das regiões de maior precipitação de chuvas e a cobertura vegetal, com mais ou menos densidade florestal, pode provocar um colapso no bioma amazônico?
Thomas Akabane – O grande problema é que a região sul da Amazônia, que poderia acomodar uma expansão de florestas, em oposição à redução no norte, concentra a maior parte da degradação e do desmatamento. Assim, considerando um aumento da vulnerabilidade das florestas no norte da Amazônia e somando-se às condições atuais de ocupação da região, é difícil imaginar que o sul e o sudeste amplamente ocupados pela agropecuária poderiam compensar uma potencial perda de florestas no Norte.
IHU – Um dado curioso do trabalho de seu grupo é que as pistas sobre o impacto no bioma amazônico, devido à desaceleração da AMOC, vieram do fundo do mar. Como isso se explica?
Thomas Akabane – Os sedimentos marinhos depositados sob influência de grandes rios representam um ótimo registro da história natural daquela respectiva bacia de drenagem. Isso ocorre porque os sedimentos carregados pelos grandes rios, como o Amazonas, transportam partículas de solo, restos de vegetação, e outros materiais orgânicos e inorgânicos das áreas continentais até o oceano. Esses materiais acabam se acumulando no fundo do mar ao longo de milhares de anos, formando camadas de sedimentos que funcionam como arquivos naturais.
Cada camada sedimentar guarda informações sobre as condições ambientais do momento em que foi depositada, como o tipo de vegetação predominante, a intensidade das chuvas, a ocorrência de incêndios florestais, e até as mudanças na circulação oceânica. Portanto, estudar os sedimentos marinhos nos permite acessar uma janela do tempo e avaliar como ocorreu a interação entre o oceano e o continente ao longo de um período.
Animação da Nasa, mostrando como funciona o grande sistema de circulação oceânica da Terra. O vermelho representa águas quentes que viajam pela superfície, enquanto que o azul representa águas frias que viajam pelas profundezas do oceano. A Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico (AMOC) é a parte desse sistema que percorre o Oceano Atlântico, entre a Antártida e a Groenlândia — Fonte: Nasa/Goddard Space Flight Center Scientific Visualization Studio
IHU – Como os sedimentos marinhos, retirados do leito da costa do Atlântico informam sobre como era a vida do bioma florestal há milhares de anos?
Thomas Akabane – A análise de grãos de pólen e partículas carbonizadas em sedimentos é uma ferramenta essencial para a reconstrução da vegetação e do histórico de incêndios do passado. Cada tipo de planta produz um pólen com características únicas, o que permite identificá-las e diferenciá-las em registros sedimentares. Assim, mudanças na composição da vegetação ao longo do tempo se refletem diretamente nas variações dos tipos de pólen preservados nos sedimentos.
Além disso, as partículas carbonizadas indicam a ocorrência e a intensidade de incêndios florestais, que estão frequentemente associadas a alterações climáticas e à dinâmica do bioma. A combinação dessas informações possibilita reconstruir a história ambiental de uma região, identificando períodos de mudanças climáticas, variações na cobertura vegetal e a frequência de eventos de fogo.
IHU – Quais foram as principais mudanças que a Amazônia viveu nos seus milhares de anos? Os estudos sugerem que houve transformações significativas no bioma?
Thomas Akabane – Uma das mudanças mais marcantes ocorreu durante o Último Máximo Glacial, um período entre cerca de 23 e 19 mil anos atrás, quando as temperaturas globais estavam cerca de 6ºC mais frias, as concentrações de CO2 na atmosfera eram em torno de 180 ppm (o normal em condições pré-industriais é ~260 ppm, hoje estamos em mais de 420 ppm). Durante este período, havia também menos precipitação nas as partes orientais da Amazônia. A combinação de diminuição na precipitação e baixo CO2 atmosférico contribuíram para uma retração extensa da floresta nas regiões de borda. No entanto, a maior parte da região Amazônica permaneceu muito provavelmente florestada, mas com uma composição bastante diferente da atual pela incorporação de plantas que hoje encontramos apenas acima de 1.000 metros de altitude. As condições mais frias permitiram a descida dessas plantas que passaram a compor as comunidades florestais das terras baixas amazônicas.
Logo após o Último Máximo Glacial, num momento de gradual aumento das temperaturas, ocorreu um enfraquecimento abrupto e bastante intenso da AMOC – período conhecido como Heinrich stadial 1, entre 18 e 14.8 mil anos atrás – tendo como consequência mudanças significativas nos padrões de chuvas da região. Essas mudanças afetaram as florestas na Bacia do Amazonas, fazendo com que houvesse um aumento de tipos de florestas sazonais e savanas. Nossos modelos indicam que essas mudanças correspondem com o que é esperado para o norte da Amazônia, onde houve a maior diminuição de chuvas.
IHU – Olhando para a realidade atual e em perspectiva com os prognósticos associados às mudanças climáticas, estamos diante de um risco real de extinção da Amazônia?
Thomas Akabane – Diversos estudos indicam haver um indicativo bastante grande de um risco real de extinção parcial ou de colapso funcional, caso as pressões climáticas e antrópicas continuem crescendo, principalmente em grande parte da porção leste da Amazônia, onde o desmatamento e a degradação são mais intensos. Na situação atual, cerca de 17% da floresta Amazônica foi completamente desmatada somado a uma grande porcentagem de áreas degradadas. O avanço dessas condições, principalmente causadas pelo desmatamento ligado ao setor pecuário, somado às mudanças climáticas, incluindo um aumento de eventos extremos de calor e seca, pode aproximar a região de um ponto de inflexão (tipping point), no qual grandes partes da floresta tropical seriam substituídas por formações mais secas, como savanas e florestas sazonais, comprometendo irreversivelmente sua biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos.
Um potencial colapso da AMOC seria apenas mais um fator a aumentar a vulnerabilidade da região. No entanto, mesmo sem o colapso da AMOC, nós já encontramos um cenário bastante preocupante. Se mudanças na estratégia de conservação efetiva da floresta não forem adotadas e nos mantermos neste ritmo de aquecimento, é capaz que a Amazônia sofra uma desestabilização mesmo sem considerar o efeito da AMOC.
IHU – Como a ciência pode nos ajudar diante das encruzilhadas do colapso climático?
Thomas Akabane – A ciência desempenha um papel crucial para nos orientar nas encruzilhadas do colapso climático, oferecendo conhecimento e soluções para mitigar os impactos das mudanças climáticas e promover a adaptação. Por exemplo – pensando do ponto de vista da minha área de atuação – a partir da compreensão de como se deram as complexas interações entre diversos elementos do sistema climático no passado (oceano-atmosfera-biosfera), é possível ajudar a prever cenários futuros melhorando o direcionamento de estratégias de conservação para enfrentar as consequências das mudanças climáticas.
A ideia de que o clima da Terra está em constante transformação é crucial para contextualizar o momento atual. Quando consideramos que nossa espécie nunca viveu em um planeta com níveis de CO2 tão elevados quanto os atuais, fica evidente o risco de estarmos criando condições ambientais para as quais não fomos biologicamente adaptados. O impacto disso se estende desde mudanças abruptas nos padrões climáticos até desequilíbrios em ecossistemas que sustentam a vida humana. É importante lembrar que pequenas alterações nas temperaturas médias globais têm efeitos profundos no sistema terrestre. Durante o Último Máximo Glacial, por exemplo, as temperaturas eram cerca de 6°C mais frias do que os níveis pré-industriais. Essa diferença foi suficiente para a formação de vastas calotas de gelo que cobriam grande parte da América do Norte e da Europa.
Ao projetar essas lições do passado para o presente, percebemos que o aquecimento global já em curso, e que pode ultrapassar 2°C no próximo século se não houver mudanças drásticas, tem o potencial de desencadear transformações igualmente profundas, como o colapso de ecossistemas tropicais, o aumento irreversível do nível do mar e o desaparecimento de espécies incapazes de se adaptar às novas condições.
IHU – Como observa os limites e as possibilidades de avanços concretos nas políticas ambientais dos países que participaram das negociações da COP29?
Thomas Akabane – Infelizmente acho que não consigo acrescentar muito a essa pergunta para além das notícias que tenho lido. Apesar de saírem resoluções importantes em relação às mudanças nas estratégias de desenvolvimento e o aporte de verbas por conta de países desenvolvidos (os principais responsáveis pelas mudanças climáticas), acabo tendo uma visão pessimista em relação à real preocupação dos países em relação ao combate às mudanças climáticas – principalmente pensando no volume de recursos que tem sido acordado.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Thomas Akabane – Eu acredito que a ciência tem um papel fundamental no enfrentamento das mudanças climáticas e no direcionamento das políticas públicas. No entanto, é importante reconhecer que essa questão só poderá ser enfrentada de forma coletiva, integrando esforços globais e locais.
As mudanças climáticas não ocorrem de maneira isolada, mas interagem diretamente com as desigualdades sociais. As regiões mais afetadas serão as regiões do hemisfério sul, que concentram países mais pobres onde as populações tendem a sofrer de forma desproporcional os impactos de eventos extremos e com menos capacidade de adaptação. Nesse sentido, enfrentar as mudanças climáticas exige não apenas a redução de emissões de gases de efeito estufa, mas também a promoção de justiça climática, considerando as responsabilidades históricas.
A ciência pode fornecer dados que embasem decisões políticas mais justas e eficazes. Além disso, a ciência também desempenha um papel importante na ampliação da sensibilização das pessoas em relação a esse tema e na mobilização para a ação coletiva. Então eu acho que a resolução da crise climática não pode ser dissociada das questões sociais e é uma tarefa coletiva que exige a colaboração entre governos, cientistas, sociedade civil e comunidades locais.