18 Novembro 2024
"A imposição do trabalho foi uma criação social ao longo da história. Trabalhar excessivamente é uma regressão civilizatória imposta pelo capitalismo. É chegado o momento da utopia de se trabalhar menos acontecer. Não se trata de uma bandeira revolucionária, é apenas uma invocação a dignidade humana", escreve Cesar Sanson, professor de sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
O forte movimento vindo da sociedade, sobretudo da juventude, pelo fim da jornada de trabalho em sua escala 6x1 recoloca em debate o lugar do trabalho na vida social. Uma das coisas novas da modernidade manifesta em um dos seus maiores eventos, a Revolução Industrial, foi empurrar todos para o trabalho sem tréguas.
A grande revolução da Revolução Industrial foi a de colocar o trabalho no centro organizador da vida individual e coletiva transformando-nos numa sociedade do trabalho. Até então, o trabalho era menosprezado. Na sociedade antiga e do medievo o trabalho ocupava um lugar de não reconhecimento da condição humana uma vez que era associado à servidão. Trabalhar era estar aprisionado a uma vida sem sentido.
O labor, como nos lembra Arendt ao interpretar a sociedade do trabalho grega, é destituído de qualquer sentido. Um homem livre e pobre “preferia a insegurança de um mercado de trabalho que mudasse diariamente a um trabalho regular e garantido; este último, por lhe restringir a liberdade de fazer o que desejasse a cada dia, já era considerado servidão (douleia), e até mesmo o trabalho árduo e penoso era preferível à vida tranquila de que gozavam muitos escravos domésticos” [1].
Migeotte, estudioso da sociedade do trabalho na antiguidade, cita o filósofo Xenofonte para destacar a condição indigna de quem trabalha: “As profissões (technai) chamadas de artesanais (banausikai) são, de fato, criticadas, e é com razão que são totalmente menosprezadas nas polis. De fato, elas arruínam o corpo dos trabalhadores e daqueles que se ocupam com elas, obrigando-os a permanecerem sentados à sombra; às vezes, até mesmo a passar todo o dia junto ao fogo. Como os corpos ficam assim efeminados, as almas também ficam fracas. Mais do que tudo, essas profissões chamadas banausikai não deixam nenhum lazer (ascholia) para se ocupar dos amigos e da polis [...] [2].
Cícero em “De oficius” afirma que “inferiores são as profissões de todos os que trabalham por salário, a quem pagamos o trabalho e não a arte, porque no seu caso o próprio salário é um atestado da sua escravidão” [3].
O trabalho para gregos era um interdito para se dedicar ao conhecimento, a arte e a política. Para Aristóteles “os cidadãos não devem levar uma vida nem de artesão (banausos) nem de mercador (agoraios), pois tal vida é vil e contrária à arétè, e que aqueles que se tornarem seus cidadãos também não devem ser agricultores (géôrgoi), pois é necessário lazer (scholè) para desenvolver a arétè e exercer as atividades políticas” [4].
Esta desqualificação da condição de quem trabalha é a mesma no período medievo. Na Idade Média, o trabalho é pouco valorizado, não está no centro das relações sociais, não é reconhecido socialmente e é visto com menosprezo. Até então prevalece o paradigma grego do lugar social do trabalho.
Será apenas com a Reforma Protestante e posteriormente com a Revolução Industrial que o trabalho passará a ser valorizado e se transformará em fim último da condição humana. Como nos lembra Gorz, o que nós nos acostumamos a chamar “‘trabalho’ é uma invenção da modernidade. A forma sob a qual o conhecemos, praticamos e o situamos no centro da vida individual e social, foi inventada, e em seguida generalizada com o industrialismo” [5].
O capitalismo reservou a condição humana uma única destinação: trabalhar. Porém, mais do que isso, trabalhar muito. Em Marx, por exemplo, é extensa e dramática a explanação da superexploração do trabalho nas fábricas. Referindo-se as longas jornadas de trabalho de homens, mulheres e crianças afirma que as fábricas todo ano “produzem seus boletins de batalha industrial” [6]. “Batalha industrial”, no caso, é uma referência ao elevado número de acidentes de trabalho.
Destaque-se que na Idade Média as pessoas trabalhavam bem menos de que na Revolução Industrial, uma vez que era grande o número de feriados religiosos – calcula-se que raramente se trabalhava mais do que a metade dos dias no ano – e as condições climáticas alteravam o ritmo do trabalho, trabalhando-se mais no verão e menos no inverno. Por outro lado, as máquinas rudimentares da época tampouco exigiam aceleramento na atividade.
Com o capitalismo todos foram enquadrados no trabalho. É preciso reafirmar que os trabalhadores trabalham porque necessitam, não porque necessariamente gostem. Dito de outra forma, a centralidade que o trabalho ocupa na vida é uma exigência do capital e não uma reivindicação dos trabalhadores. A destinação humana ao trabalho em seu enquadramento capitalista não tem nenhum sentido porque se apresenta como ausência de sentido.
O trabalho tal e qual se apresenta hoje, com suas devidas exceções, não enriquece as pessoas, ao contrário, as leva ao embrutecimento. Particularmente as atividades profissionais a que estão submetidos os que trabalham na escala 6x1 com seus baixos salários, estresse e ausência de descanso, produz adoecimento em massa e uma sensação de perda da vida.
Os desabafos são inúmeros, como deste ex-funcionário de um call Center [8]:
“Após os 6 dias trabalhados, no seu único dia de folga você tem que escolher: fazer tudo que lhe dá prazer ou satisfação de forma mal feita, precária… ou apenas dormir para no outro dia voltar para a mesma rotina. Não estão erradas as pessoas que dizem: escala 6×1 é análoga à escravidão (...) Hoje não podemos dizer que somos escravos(as) porque não somos politicamente propriedade de ninguém. Mas somos escravos modernos(as) sim porque, mesmo que política e culturalmente sejamos ‘livres’, economicamente somos escravizados(as) pelo tempo: somos obrigados(as) a vender nossa força de trabalho e tempo de serviço, é a nossa mercadoria que trocamos pelas míseras moedas que vão nos servir apenas para pagar as dívidas do aluguel ou financiamento da casa, da feira, das contas de energia, água e internet, e, se sobrar, comprar algum lanche ou nos entupir de bebida alcoólica para esquecermos a condição de escassez e desencanto em que vivemos”.
Não cabe e não se justifica mais manter escalas 6x1. Trabalhar menos sempre foi uma utopia dos trabalhadores. O capital sempre foi contra. Por que as utopias do capital se tornam realidade e a dos trabalhadores não? É chegado o momento dos trabalhadores e trabalhadoras em meio a tantas regressões e derrotas, ao menos ganharem essa.
1 - ARENDT, Hannah (2002). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 40-41.
2- MIGEOTTE, L. (2005). Os filósofos gregos e o trabalho na antiguidade. In: MERCURE, D.; SPURK, J. (org.). O trabalho na história do pensamento ocidental. Petrópolis: Vozes, p. 21.
3 - Finley, M. (1980). A economia antiga. Porto: Afrontamento, p. 52.
4 - MIGEOTTE, L. (2005). Os filósofos gregos e o trabalho na antiguidade. In: MERCURE, D.; SPURK, J. (org.). O trabalho na história do pensamento ocidental. Petrópolis: Vozes, p. 27.
5 - GORZ, André (1998). Métamorphoses du travail: quête du sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, p. 25.
6 – MARX, Karl (2017). O Capital. Vol. I, II e III. São Paulo: Editora Boitempo, p. 497-498.
7 - Um desabafo sobre trabalho na escala 6×1:
https://reporterpopular.com.br/um-desabafo-sobre-trabalho-na-escala-6x1/
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fim da escala 6x1: uma bandeira revolucionária? Não! Uma luta pela dignidade. Artigo de Cesar Sanson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU