24 Outubro 2024
“Vivemos em um planeta chamado Terra, que tem dois terços de ‘água’”. Para o economista Jeremy Rifkin, este mal-entendido sobre a nossa identidade por si só revela um grande caos acerca do nosso rumo como espécie dominante. Portanto, renomear o planeta pode ser um primeiro passo para contar uma história diferente da humanidade? Mais ainda, pode nos salvar de uma corrida chamada “progresso”, que está nos levando à autodestruição?
A reportagem é de Gianluca Schinata, publicada por Wired, 19-10-2024. A tradução é do Cepat.
É com esta firme proposta que começa o último livro do autor estadunidense Jeremy Rifkin, intitulado Planet Aqua. Usando a linguagem do marketing, poderíamos dizer que o que o autor sugere é um “rebranding do planeta”. Afinal, o principal público-alvo daqueles que têm o poder de contornar o desafio das mudanças climáticas são os executivos e CEOs das empresas; e as pessoas de negócios sabem a importância de mudar a identidade da marca de uma empresa, no momento de definir uma nova missão.
Durante quase duas horas, Rifkin fala [online] de seu escritório, em Washington, citando técnicos, cientistas, filósofos e poetas: Schopenhauer? Não era um pessimista. Platão? Colocou a humanidade no caminho errado. A IA? Não cumprirá o que promete, precisa de muita água. E os donos do petróleo? Sabem que a sua festa acabou.
Planet Aqua é o seu 24º livro, em mais de meio século de atividade. Para além das suas diversas atividades literárias e acadêmicas, Rifkin é hoje um dos principais arquitetos dos planos econômicos da União Europeia (UE) e da China para a transição ecológica. Também assessor da maioria democrata no Senado estadunidense.
“Este livro se escreveu sozinho. Depois de cinquenta anos no ramo, percebi que no Ocidente entendemos tudo errado”. É assim que Rifkin começa a apresentar o motivo de ter escrito Planet Aqua. Parte do livro bíblico do Gênesis, citando as primeiras palavras: “no princípio existia o ‘abismo’ e as águas. Só mais tarde Deus apareceu e separou a luz das trevas e a água da terra”. As águas, então, preexistiam até mesmo a Deus. Como narra o autor estadunidense em seu livro, essa preexistência também aparece na narrativa da criação da civilização babilônica e em outras versões religiosas da criação em todo o mundo.
“Um ponto muito importante, oferece-nos a dimensão da importância da água para a vida. Somente nas religiões ocidentais, como conta a história de Adão e Eva, Deus confia a ‘criação’ ao homem, como se ele fosse o seu guardião, mas também o seu guia. Ao contrário, nas religiões orientais, o homem faz parte da natureza, não está subordinado a ela”, destaca Rifkin. Um tema que se repete frequentemente em sua última obra é a referência contínua ao 'animismo' frente às religiões: um convite a recuperar aquele sentido de unidade entre as diferentes entidades naturais, das quais o homem é apenas um componente. A narrativa é diferente, uma das chaves para nos salvarmos da nossa atual concepção suicida do futuro e optar por um progresso mais resiliente.
O livro relembra o dia 24 de agosto de 2021, quando a Agência Espacial Europeia (ESA) introduziu pela primeira vez o termo ‘planeta água’. Até a NASA se posicionou a favor, afirmando em sua página web que ao observar a nossa Terra do espaço, fica evidente que vivemos em um planeta de água. “O paradoxo é que hoje os Estados Unidos estão literalmente sob a água, é uma crise de visão que se reflete em problemas enormes e concretos. Temos que ver a Natureza como fonte de vida e não como um recurso. Pensemos nas repercussões sociais desta crise, por exemplo, se vale a pena que a Geração Z se reproduza. Sabemos que caminhamos na direção errada. O problema é que tentamos sair disto com as mesmas ferramentas que criaram o problema. Penso na industrialização, no capitalismo em particular. Portanto, retomando o tema da mudança de marca, precisamos de um novo ‘manual’”, detalha.
Na linguagem dos negócios, um manual é um documento que descreve as políticas, fluxos de trabalho e procedimentos de uma empresa. Aqui, a referência é ao futuro da nossa espécie no Planeta. “No meu papel como assessor da Comissão Europeia, parti desse mesmo conceito: 'se o documento não funciona, não temos um manual. Temos de começar do zero’. Rifkin o vincula à governança, ao sistema econômico, ao enfoque da ciência e da tecnologia, à forma como as novas gerações são educadas e, inclusive, à forma como concebemos e orientamos o tempo e o espaço. As atuais infraestruturas humanas, tanto físicas quanto organizacionais, bloqueiam o desenvolvimento humano em um sentido absoluto: “A coisa mais vergonhosa que descobri é que se você pega um livro de biologia do ensino médio, isso tudo fica muito claro”.
“As crianças na escola não aprendem a história correta: a cultura do desenvolvimento humano, baseada na água por seis mil anos, é diferente”, diz Rifkin. A hidrosfera é a totalidade da água do planeta em suas diferentes condições de agregação: do subsolo à superfície e a atmosfera. Segundo o estadunidense, durante seis mil anos, canalizamos, privatizamos, exploramos e envenenamos a hidrosfera. “Hoje, revela-se e ameaça provocar a sexta extinção em massa na Terra. Como um dos meus professores dizia a meu respeito: ‘Não é o mais inteligente, mas se dedica, pelo menos tenta’. Neste caso, há 40 anos, tento unir diferentes pontos para oferecer uma leitura. Esse é o meu propósito com este livro: oferecer um cenário completo, uma visão composta”.
Planet Aqua percorre as principais conjunturas da história da humanidade sob a perspectiva da relação do ser humano com os recursos hídricos. Começando pela primeira sociedade hidráulica urbana, fundada pelos sumérios às margens dos rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, onde se reconhece universalmente que nasceu a civilização humana moderna. A necessidade de dominar grandes fluxos de água exigiu o desenvolvimento de competências. Foram necessários milhares de trabalhadores para construir canais e barragens, artesãos para montar os edifícios e arquitetos para projetar e gerir. E, por último, inventou-se a primeira forma de escrita, a cuneiforme, para administrar tudo isso.
Na mesma linha, o autor explica como os cereais desempenharam um papel crucial na formação do Estado agrário, a primeira forma complexa de organização política: “Os cereais podiam ser conservados, armazenados e transportados de forma simples, ao contrário dos tubérculos e das raízes. Que lástima que requeiram tanta água”. Este e outros aspectos abordados por Rifkin repensam a relação do homem com a água como a base do nosso desenvolvimento. “Considerei que era necessário compartilhar esta versão da história, para entender o que fizemos de errado e o que temos que fazer agora em seu lugar”.
O livro de Rifkin compartilha certas semelhanças com suas outras obras: aparecem as referências mais canônicas a filósofos e poetas. Algumas lembram os apelos do escritor Amitav Ghosh sobre a importância da literatura e da filosofia para comunicar as mudanças climáticas, a mudança de narrativa, para tornar mais sensível o problema das mudanças que enfrentamos e a urgência das soluções que temos de empreender. O autor pretende não se limitar a apresentar informações, mas, sim, contar diferentes histórias para transmitir mensagens mais profundas.
Interessava-nos saber se Rifkin pretendia promover a revanche da esfera humanística sobre a esfera técnica, depois desta última ter moldado o século passado. Ele sorriu e mencionou: “Em 2018, fizemos um documentário sobre o meu livro A Terceira Revolução Industrial. No início, aparecia esta longa frase de Walter Benjamin: ‘O valor da informação não sobrevive ao momento em que é nova. Vive nesse momento; deve se abandonar completamente a ele e explicar-se sem perda de tempo’. Uma história é diferente, não se desgasta, preserva e concentra sua força e é capaz de libertá-la mesmo depois de muito tempo”.
Segundo Rifkin, o público-alvo do documentário eram os jovens, não havia música, nem gráficos, durava 1 minuto por decisão do produtor. “Pensamos: ‘Hum, depois de 30 segundos no máximo, vão nos abandonar’. E em vez disso o documentário foi visto por 8 milhões de pessoas, a imensa maioria jovens. Surpreende ver o que é possível propor às novas gerações”. Fora da dimensão de um clipe de 30 segundos no TikTok.
Este é o ponto da entrevista, quando critica o rumo da filosofia que Platão deu à história da humanidade. O pensador grego introduziu o conceito da divisão mente-corpo, que só pode ser experimentada através do pensamento puro e do raciocínio dedutivo, e não através da experiência sensorial. Segundo Rifkin, esta concepção condiciona a forma como gerações de cientistas e estudiosos realizam as suas pesquisas: “Todos já ouvimos inúmeras vezes a frase ‘tente não ser tão emotivo... Seja mais racional. Confie mais na razão do que na experiência’. Até Bacon injetou no Iluminismo uma ideia da natureza como algo passivo, como um objeto de ciência do qual extrair segredos. E este enfoque utilitarista de tudo o que nos cerca é o que ainda guia os nossos avanços científicos”.
Depois veio John Locke, que deu a base filosófica ao conceito de propriedade privada e, neste caso, à possibilidade de possuir porções da hidrosfera. “Sua tese sobre a Natureza e o papel da propriedade privada proporcionou a base intelectual para o desenvolvimento do capitalismo”, afirma Rifkin. Daí a subtração de terras para uso privado, parte ativa do processo de fotossíntese e que, no longo prazo, criou problemas como a fragmentação da Natureza. Por isso, precisamos de uma nova história, que conte como a água cria tudo: “A ciência sabe disso, mas não explica ou talvez não perceba tudo para se manifestar. É fundamental recuperar os filósofos e humanistas para também reconfigurar a narrativa”.
“Os jovens da Geração Z são muito conscientes, protestam e agem assim por instinto. É simples assim, possuem biofilia, empatia pelos outros seres vivos”, comemora Rifkin. E neste ponto lança uma perspectiva para o grande desafio climático que aguarda as novas gerações. Em seu livro, relata que a Smithsonian Institution realizou um estudo para entender como nossa espécie se desenvolveu durante o curto período que passou na Terra. “Para mim, esta talvez seja maior nota de esperança do nosso tempo”. Os pesquisadores analisaram os últimos 800.000 anos de registro geológico para descobrir que este período foi marcado pela inclinação do eixo da Terra e por mudanças extremas da temperatura, incluindo glaciações e um aquecimento repentino. O estudo conclui que conseguimos coexistir porque a nossa espécie é uma das mais adaptáveis do planeta, embora fisicamente seja menos dotada do que outras.
Planet Aqua questiona muitos dogmas: um deles é o papel contemporâneo da arte. Diante de uma visão comercial e utilitarista do trabalho artístico, em que um objeto é feito para durar e quanto mais dura, mais valor adquire, Rifkin recomenda prestar atenção no crescimento do que chama de ‘arte efêmera’: “É imediata, destinada a dissolver-se e a não se conservar. É uma forma de arte que celebra a dimensão temporal da existência”. Alguns exemplos são os shows de stand-up, as sessões de jazz, as batalhas de rap, instalações temporárias em exposições e os flash mobs.
“Nos anos 1990, várias gerações começaram a se aproximar da arte efêmera, ligada a elementos naturais como a areia. Através deste tipo de atividade, você pode se sentir parte de algo maior. O problema das novas gerações é que podem protestar, mas quando gastam mais de sete horas em frente a uma tela, como é habitual, sua saúde mental se deteriora e seu cérebro para de se desenvolver”, lembra Rifkin. O futuro estará repleto de momentos em que precisaremos ficar em casa, mas também de dias em que precisaremos aprender ao ar livre e interagir na realidade viva. “A chegada das artes efêmeras será tão importante quanto aquelas que deram origem ao Renascimento”.
Rifkin apoia a importância do advento da IA, mas não compartilha o entusiasmo pelo metaverso: “o problema é que cria uma desconexão com as aptidões humanas relacionadas à empatia. Uma qualidade que deve ser treinada na vida real e que não pode ser transmitida através de um dispositivo digital”.
E duvida que a IA se desenvolva tanto como muitos CEOs pensam: “Existirá um papel vital para a IA, mas neste momento aqueles que a desenvolvem só almejam ganhar bilhões de dólares. Não se desenvolverá tanto como pensam. A motivação é a seguinte: não há água suficiente. É verdade que a IA funciona com eletricidade, mas também precisa de muita água para funcionar. Estudos mostram que o sol e o vento já podem substituir os combustíveis fósseis no fornecimento geral de eletricidade e que, portanto, isto pode favorecer a expansão da IA, mas o problema é que estamos reunindo muitos dados, instalando sensores por todos os lados. Então, se você tem um veículo autônomo enviando dados para um cérebro geral, haverá um tempo de latência que criará problemas. E você sabe quanta água é necessária para produzir um chip? Oito toneladas de água doce para cada um. Enquanto a humanidade cada vez passa mais sede”.
Precisamos de água e precisamos de IA, mas esta última não para usos secundários, mas para usos primários: das infraestruturas à mobilidade. Por exemplo, na distribuição de energia nos governos biorregionais propostos por Rifkin em seu livro. “Mas sabem o que importa para aqueles que se dedicam à IA para este momento sobre o qual estamos falando agora? Eu acredito que não”.
Poucos têm uma visão mais atualizada do desafio da transição ecológica que a de Rifkin, dado o seu papel como assessor dos Estados Unidos, da China e da Comissão Europeia. Recentemente, fundos de investimento do tamanho da BlackRock e Vangard se mostraram mais tímidos em seu apoio a investimentos em sustentabilidade. A Shell garante que extrairá petróleo até 2050. Se precisamos fazer a transição energética para nos salvarmos, as premissas para a mudança parecem mais nebulosas.
“É uma impressão momentânea. Na verdade, as petroleiras já não investem tanto em exploração. Agora, concentram-se em aumentar o preço do petróleo e dos recursos fósseis que já estão disponíveis. Não sei o que os líderes dizem a seus filhos quando voltam para casa à noite. Se você é diretor-geral de uma petroleira, sabe que tem de cinco a dez anos, no máximo, para maximizar os lucros e mostrá-los aos seus acionistas. A energia solar e a eólica são muito mais baratas do que a nuclear, menos custosas do que o petróleo e absolutamente mais econômicas do que o carvão. Não se importam com o mercado: o custo marginal das energias renováveis é próximo de zero, não há concorrência no futuro com, por exemplo, o urânio ou a extração de combustíveis fósseis”, diz Rifkin.
No início e no final do livro de Rifkin está presente o grande embate da concepção do “sublime”, conceito desenvolvido pelo filósofo irlandês Edmund Burke. O autor estadunidense destaca que dentro desta noção existem dois enfoques diferentes e opostos, provenientes de dois grandes filósofos: “Immanuel Kant nos convidaria a exercer o nosso impulso racional e forçar as águas a se adaptarem aos caprichos da nossa espécie, ao passo que Arthur Schopenhauer convidaria a nos identificarmos com a natureza vivificante da existência e a encontrar formas de nos adaptarmos a um ciclo hidrológico que muda rapidamente. A humanidade terá de escolher entre estas duas formas muito diferentes de ver o futuro do planeta azul. As opções que tomarmos afetarão não só o nosso destino, mas o futuro da própria vida na Terra”.
Então, a solução para não nos extinguirmos é recuperar o medo e o respeito à natureza que nos cerca? “Há muitos anos, escrevi The empathic civilization: The race to global consciousness in a world in crisis [A Civilização Empática: A corrida para a consciência global em um mundo em crise], um livro de quase 650 páginas para o qual dediquei 10 anos. Concretamente, retomo o conceito de 'sublime', segundo Burke, e analiso essas manifestações naturais extremas: de um tornado a uma inundação, os tipos de fenômenos que nos extrapolam como humanos. Embora o mesmo possa ocorrer na contemplação de um arco-íris”.
Tudo isso representa agora a evolução da narrativa que estamos vivendo. “Seremos capazes de mudar a narrativa da humanidade para nos salvarmos? Não sei. Existem movimentos rumo a uma nova narrativa? Sim, estão surgindo”. O desafio recai sobre os ombros pequenos dos jovens. Se serão capazes de ir além do protesto para mudar a academia, a forma de entender a ciência, a forma de pensar. “A chave será evoluir como humanidade em um sentido adaptativo para ver a natureza como um processo e um modelo, como um ser vivo: não mais apenas como um objeto instrumental para os nossos fins”, conclui Rifkin.
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Jeremy Rifkin quer mudar o nome da Terra e reescrever a história da humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU