Para o professor e pesquisador argentino, o mundo do trabalho e dos direitos sociais mínimos passa por uma agenda de retrocessos, mas a continuidade de Milei está longe de ser uma realidade
O mundo o trabalho na Argentina não é tão diferente da realidade brasileira e menos ainda do restante da América Latina. Ele se caracteriza por um aumento da precarização, pela retirada de direitos e pelo projeto ininterrupto das elites econômicas de transformar as vidas, incluindo as humanas, em recursos financeiros.
“Não estamos diante de um problema de escassez, mas de concentração. Existem recursos suficientes para que a humanidade viva uma vida digna, mas estão concentrados em poucas mãos. Por que isso acontece? Porque os processos de racionalização próprios da modernidade capitalista foram autonomizados pela política e pelos controles estatais”, indaga Diego Alvarez Newman, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A instabilidade econômica da Argentina tem raízes nas sucessivas crises políticas que o país viveu, mas que passou por uma inversão nas últimas décadas. “Anteriormente à ditadura, a Argentina foi caracterizada por uma crise particular de instabilidade política entre 1955-1976, devido à composição de uma estrutura social heterogênea por cima e homogênea por baixo. Isto é, com uma baixa centralização do capital e com as classes dominantes divididas entre si (burguesia agrária e burguesia industrial), enquanto os setores assalariados conservavam um peso importante, sobretudo os trabalhadores industriais, com homogeneidade nas condições de trabalho, nos ingressos e na representação política através do peronismo”, explica o entrevistado.
Contudo, com a emergência do neoliberalismo a partir do final dos anos 1970, “a saída da ditadura deixa uma sociedade com uma classe dominante mais homogeneizada a partir da centralidade do capital financeiro e da tecnocracia transnacional, e mais heterogeneizada por baixo. Mas houve um segundo ciclo que se desenvolveu, foi uma tendência e chegou à década de 1990. Foi aí que se produziu a reconversão produtiva e se levaram a cabo as reformas laborais flexibilizantes que terminaram por desmembrar a relação salarial e consolidar uma estrutura social ao inverso: muito mais homogêneo por cima e heterogêneo por baixo”, complementa.
Quanto a Javier Milei, Newman o descreve como mais uma das figuras contemporâneas do capitalismo financeiro, como Trump ou Bolsonaro, avatares dessa perspectiva política. Ressalta, porém, que o que está em jogo é um desmonte das mínimas estruturas de seguridade social. “A redução do déficit fiscal como ferramenta macroeconômica não é utilizada para o saneamento das contas públicas. Não há ‘modernização’ do estado, mas sim ‘destruição’ do estado sob a ilusão de que os capitais privados substituem suas funções”, adverte.
Diego Alvarez Newman (Foto: Reprodução | YouTube)
Diego Alvarez Newman é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, professor de ensino médio e superior e pós-graduado em Sociologia pela mesma instituição. É pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e do Instituto de Estudos Sociais em Contextos de Desigualdades (IESCODE) ligado à Universidade Nacional José Clemente Paz (UNPAZ). Coordena o Grupo de Trabalho CLACSO “Transições justas e cuidado da casa comum” baseado no Programa de Estudos Culturais da Universidade Nacional Arturo Jauretche (UNAJ). Pesquisa principalmente a área de ciências sociais do trabalho. Entre outros, é autor, junto com Mariana Dovio, de ¿Qué futuro para el trabajo? Racionalidad neoliberal y ciclos de promoción estatal de la flexibilización laboral (1991-2020) (Topos Editorial del IPEHCS, 2024).
IHU – Como se caracteriza o atual mundo do trabalho na Argentina e na América Latina?
Diego Alvarez Newman – A América Latina e o Caribe foram caracterizados historicamente por terem mercados de trabalho duplos, ou seja, um setor formal incluído nos direitos trabalhistas e um setor informal sem acesso a eles. Essa caracterização foi complementada pela emergência do neoliberalismo nos últimos meses da década de 1970 e pelo fenômeno que Robert Castel denomina como a ruptura da sociedade salarial.
Surgiu, principalmente nos anos 1990, com o neoliberalismo já consolidado, o conceito de heterogeneidades laborais associado aos processos de flexibilização laboral e ao trabalho não clássico. Ou seja, a aparição de toda uma variedade de modalidades de emprego que não necessariamente são informais, mas sim com aspectos de precariedade. Os mais comuns são os contratos temporários e os estágios. Isso é consequência do fenômeno no qual a formalidade também pode ser precária, principalmente pela perda de direitos.
Seguindo certa historicidade, uma hipótese que manejamos é que a primeira onda dos governos progressistas na América do Sul supõe um refreio dos processos de flexibilização laboral, mas sem alcançar uma mudança estrutural no mercado de trabalho e na matriz produtiva.
Ainda que tenha havido uma valorização positiva nesta onda, pelo menos no caso argentino, vê-se que a criação de empregos de qualidade apresentou fortes limitações após a crise global de 2008. Houve uma redução da pobreza e da desigualdade, mas, posteriormente, não houve geração de emprego sem a intervenção de políticas sociais redistributivas.
Por isso, na atualidade fala-se de heterogeneidades laborais e de segmentação dos mercados de trabalho. Sendo muito esquemático e retomando à caracterização que fez o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), pode-se concluir que coexistem três setores: um setor de alta produtividade e plenamente incluído no mercado global (principalmente agro e a extração de recursos naturais); um setor de produtividade média que afeta o mercado interno (principalmente relacionado à indústria e que conta com proteções estatais); e um setor microinformal ou, como se denomina hoje, de economia popular (vinculado aos setores vulneráveis) que ficou marginalizado da economia e gerou seu próprio trabalho através de “mudanças”.
IHU – A sociedade do emprego foi restringida a um grupo cada vez mais pequeno da sociedade. Na configuração atual não há lugar para todos. Como enfrentar esse problema?
Diego Alvarez Newman – A sociedade do trabalho, ou seja, uma sociedade integrada através do emprego de qualidade, está em franco retrocesso. Isso é um fenômeno global. Mas ele toma formas particulares dependendo do país ou região. Por exemplo, Bolívia, Colômbia, Peru e Venezuela, são nações onde o trabalho por conta própria é muito maior que a média. Enquanto no México, Chile, Argentina e Brasil há outra composição. São sociedades onde o emprego por conta própria tende a crescer, mas segue sendo sociedades majoritariamente assalariadas e precarizadas.
Já se viu todo o tipo de política pública com maior ou menor sucesso e tendência à atração de investimentos, à fixação de salários mínimos altos para conseguir um piso, ou no caso do trabalho por conta própria para o fomento do empreendedorismo ou da economia popular.
No entanto, não questionamos a matriz ético-política do que denominamos racionalidade organizacional do capital ou governança corporativa e sua vontade de reduzir a vida humana a um recurso. Por racionalidade organizacional do capital, entendendo uma matriz epistêmica de inteligibilidade econômica que subordina a vida no planeta ao capital com o propósito de, nas questões das condições de possibilidade do trabalho humano e da exploração da natureza, aumentar seu consumo produtivo e reduzir os custos para valorizar e acumular capital.
Não estamos diante de um problema de escassez, mas de concentração. Existem recursos suficientes para que a humanidade viva uma vida digna, mas eles estão concentrados em poucas mãos. Por que isso acontece? Porque os processos de racionalização próprios da modernidade capitalista foram autonomizados pela política e pelos controles estatais.
A financeirização é um exemplo claro. A economia financeira gera maiores dividendos do que a economia real, que por sua vez caiu asfixiada por esta. É dito que os trabalhadores da economia real são subsumidos a processos de redução de custos, cujo ganho é absorvido pela economia financeira. Concretamente, trabalhamos a baixo custo para alimentar os ganhos de investidores e acionistas.
Assim mesmo, essa racionalização produziu um processo fenomenal de exclusão laboral. Aquilo que o Papa Francisco denomina como os descartados. Isto é, pessoas que não têm a possibilidade de obter um emprego considerando os níveis de competências laborais exigidos.
IHU – O que são os programas socioprodutivos na Argentina? É uma política pública? Como funciona?
Diego Alvarez Newman – Os programas socioprodutivos são uma política pública de promoção do trabalho precisamente nos setores descartados. Em um de meus artigos, tentei fazer uma genealogia dos programas socioprodutivos na Argentina. Eles são basicamente transferências financeiras condicionadas realizadas pelo Estado, ou seja, que requerem algum tipo de contrapartida, aos denominados “setores vulneráveis”. Essa contrapartida pode ser em trabalhos e ações gerenciadas por municípios, movimentos sociais ou com finalidade educativa.
O mais relevante que identificamos nesta investigação é o fenômeno da dependência ocupacional dos programas socioprodutivos nos aglomerados urbanos. Descobrimos que na pós-pandemia é cada vez maior o número de pessoas que requerem esses programas para poder trabalhar ou como complemento financeiro à sua ocupação microinformal. Esse fenômeno se concatena com algo mais preocupante: em nenhum caso, identificamos que os beneficiários desses programas tenham conseguido se inserir no mercado formal de trabalho.
Isso não significa que não há trabalho, mas sim que você está desenvolvendo uma economia paralelamente nos setores vulneráveis e que para funcionar requer necessariamente recursos do Estado, seja por meio de transferências monetárias, seja via subsídios para equipamentos, etc. Isso abre toda uma série de problemas. Podemos seguir tendo como horizonte uma sociedade integrada ao longo do trabalho? O que podemos fazer frente um modelo de fragmentação social onde o trabalho cumpre a função de segmentar? Porque parecia que o trabalho mais vinculado ao conhecimento seria cada vez mais individualizado.
IHU – Quais são, no entanto, as contradições destes programas socioprodutivos?
Diego Alvarez Newman – A contradição é precisamente que não inclui, mas segmenta. Mas isso não significa que não deva existir. Pelo contrário, é muito importante que exista porque abre oportunidades em setores que não existem.
Agora veja, o problema não são esses programas em si, mas as diretrizes de inclusão no trabalho que os determinam. Isto é, uma visão estratégica sobre como deve incluir o trabalho nesses setores. É aí que entramos em um grande problema porque esses programas foram usados pelos últimos governos como um instrumento para a governança, ou seja, para reduzir conflitos e alcançar uma pacificação social.
O último programa socioprodutivo que teve uma visão estratégica se chamou “Argentina Trabaja” e foi executado entre 2009 e 2016. Basicamente, ele fomentou a inclusão do trabalho através de cooperativas com orientação para o desenvolvimento local. Isso propiciou o trabalho comunitário, não isento de conflitos, entre os municípios e as organizações sociais.
IHU – Pode comentar o que é exatamente a economia popular? Qual a diferença dela com a economia social e solidária?
Diego Alvarez Newman – “Economia popular” é um conceito que teve muitos anos na América Latina, mas especialmente na Argentina, que teve vitalidade e relevância com o surgimento da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP) no ano de 2011. Esta confederação aspira representar o universo de trabalhadores independentes que se desenvolvem em unidades econômicas de baixa produtividade, com um baixo nível de capitalização, com um processo produtivo inserido na “cultura popular” e com um baixo grau de integração na economia formal. É a economia dos chamados “setores vulneráveis”.
A diferença entre esta economia e a economia social e solidária surge das práticas laborais desses setores. Com a saída da crise de 2001-2002, o governo argentino daquele ano começou a implementar programas socioprodutivos nos quais os beneficiários se integravam às cooperativas de trabalho. Este formato respondeu às formas de organização das organizações sociais daquela época (trabalhadores desocupados ou piqueteros)[1].
Quando os programas socioprodutivos começaram a se massificar novamente, depois de 2008, a fisionomia da questão laboral no universo popular mudou. Não se trata de institucionalizar experiências anteriores de associativismo levadas a cabo por organizações de trabalhadores desocupados, mas sim de integrar o trabalho a setores heterogêneos (mulheres, jovens, adultos com bandejas diversas), que não necessariamente estavam organizados, e que, em muitos casos, o foco era um trabalho baseado na estratégia de multiatividades nos bairros para garantir sua subsistência.
Este novo sujeito popular não era um desempregado, mas, sim, um trabalhador por conta própria, informal, que apela aos “bicos” como estratégia de subsistência. O novo sujeito não se encaixou no perfil definido pela política social com perspectiva de cooperativismo daquela época, porque seu problema não era não ter trabalho, mas que seu trabalho foi encontrado aquém dos rendimentos de subsistência ou mesmo sem acesso a eles. A economia popular apareceu, pelo menos na Argentina, para representar esse tema laboral cujo trabalho por conta própria não é reconhecido.
IHU – Como se produz o desmembramento da relação salarial e como isso produz um processo de fragmentação da classe trabalhadora?
Diego Alvarez Newman – A Argentina é um caso paradigmático desse fenômeno, embora não se acredite que seja representativo do que aconteceu no resto da América Latina e no Caribe. Há um texto notável de Juan Villarreal que se chama “Los Hilos sociales del poder”. Este texto permite compreender como uma sociedade relativamente integrada através do trabalho como foi a Argentina, acaba desmembrada.
O texto marca um ponto de inflexão: a ditadura militar de 1976-1983. Sua hipótese é que, anteriormente à ditadura, a Argentina foi caracterizada por uma crise particular de instabilidade política entre 1955-76, devido à composição de uma estrutura social heterogênea por cima e homogênea por baixo. Isto é, com uma baixa centralização do capital e com as classes dominantes divididas entre si (burguesia agrária e burguesia industrial), enquanto os setores assalariados conservavam um peso importante, sobretudo os trabalhadores industriais, com homogeneidade nas condições de trabalho, nos ingressos e na representação política através do peronismo.
A saída da ditadura deixa uma sociedade com uma classe dominante mais homogeneizada a partir da centralidade do capital financeiro e da tecnocracia transnacional, e mais heterogeneizada por baixo. Mas houve um segundo ciclo que se desenvolveu, foi uma tendência e chegou à década de 1990. Foi aí que se produziu a reconversão produtiva e se levou a cabo as reformas laborais flexibilizantes que terminaram por desmembrar a relação salarial e consolidar uma estrutura social ao inverso: muito mais homogêneo por cima e heterogêneo por baixo.
Agora veja, está aberta a análise sobre como se está reconfigurando a dinâmica do capital em tempos de uma profunda transformação tecnológico-financeira. A tendência parece ser o assentamento de corporações tecnológicas hiperequipadas, divorciadas dos controles estatais, e que até mesmo estão por cima do Estado, dependendo do segmento em que atuam. Falamos de uma classe milionária homogênea em nível global que está transformando as relações sociais em todas as suas dimensões. Este processo assume particularidades em cada um dos países.
IHU – O que explica o crescimento do Trabalho Informal Urbano? Como ele afeta a precariedade do mundo do trabalho?
Diego Alvarez Newman – Os três ciclos mencionados acima foram aumentando o Trabalho Urbano Informal: a ditadura militar, a consolidação neoliberal e, na atualidade, a mudança tecnológica financeira. E produziu uma classe do trabalho muito heterogênea e precarizada.
O que mais preocupa nisso, no meu entender, é menos a heterogeneidade produtiva, e muito mais a falta de uma estratégia política capaz de ter uma visão do conjunto do universo do trabalho. Hoje, os sindicatos tiveram sérios problemas para representar o conjunto e os setores populares parecem ter sido capturados pelo mito da meritocracia.
Há um problema comum que é a falta de emprego de qualidade, e as condições de trabalho são cada vez menos dignas. No entanto, frente à homogeneidade deste problema comum não emerge uma força social com vistas a reverter essa tendência. Pelo contrário, o descontentamento diante das condições laborais indignas parece que está se canalizando nas ultradireitas.
IHU – Qual a diferença entre trabalho precário e subemprego?
Diego Alvarez Newman – É uma boa pergunta porque há certa confusão conceitual e até mesmo divergência entre autores. O trabalho precário é aquele que não reúne as condições mínimas de qualidade do emprego, mas não é informal. Por exemplo, os trabalhadores temporários, os contratos trabalhistas por tempo determinado ou o funcionário assalariado sob formas de trabalho autônomo. Enquanto o trabalho informal é aquele que se realiza sem nenhum tipo de contrato de trabalho.
O subemprego, de acordo com o Instituto Nacional de Estadística y Censos de la República Argentina – INDEC, se refere àquelas pessoas que têm trabalho, mas estão em disputa e contam com tempo para trabalhar por mais horas. O Observatório da UCA que mencionei em outra pergunta, acrescenta a categoria de “subemprego instável” para abordar o Setor Informal Urbano, isto é, a economia dos setores vulneráveis ou economia popular.
IHU – Como a pandemia afetou o mundo do trabalho na Argentina?
Diego Alvarez Newman – Como o estado teve que criar políticas de contenção massiva se pôde verificar uma série de fenômenos. Creio que a pandemia foi, para muitos, um momento de tomada de consciência de que deixamos de ser uma sociedade integrada, com um estado de bem-estar relativo. Claro que desde o mundo acadêmico sabíamos, mas não desde o ponto de vista da governança política.
O governo deste grupo então começou a marchar com dois grandes dispositivos de contenção: o Ingresso Familiar de Emergência (IFE), que foi orientado aos setores vulneráveis, desempregados e trabalhadores informais; e o programa de Assistência ao Trabalho e Produção (ATP) que se voltava à continuidade ao pagamento dos salários dos trabalhadores formais.
Quando o governo lançou as bases para as inscrições no IFE, esperava entre 4 e 5 milhões de pessoas. Foram 9 milhões de beneficiários do programa. Nesse momento a política tomou consciência, com dados muito concretos, da magnitude do problema laboral que já havia sido identificado pela academia e pelos movimentos sociais. Numa sociedade, considerando a totalidade dos segmentos laborais (não somente os assalariados) até 2023, os 51% dos trabalhadores são informais, apenas 40% dos trabalhadores estão em condições formais (com emprego de qualidade), somado a um desemprego de 9%.
Paralelamente, também na pós-pandemia se constituiu outro fenômeno aberrante. A existência de trabalhadores pobres que possuem empregos de qualidade. Se tomarmos o universo de trabalhadores formais, entre 28 e 30% não conta com rendimentos suficientes para cobrir suas necessidades de subsistência. Isto tem um enorme incidente simbólico, que derruba o imaginário coletivo vinculado à ideia de que um trabalho é capaz de salvar uma pessoa da pobreza.
Isso trouxe à tona uma terceira tendência que é a necessidade de uma pessoa ter mais de um trabalho para poder acessar ganhos dignos. Temos por um lado o pluriemprego, isto é, trabalhadores que têm mais de um trabalho registrado em relação de dependência. E a pluriatividade que são aqueles trabalhadores que paralelamente ao seu emprego formal se inscrevem como trabalhadores independentes no regime de segurança social para prestar serviços ou para vender bens.
Então, quando olhamos para o problema em seu conjunto, há claramente uma enorme heterogeneidade produtiva e laboral que deriva da flexibilização e se apresenta como dinâmica organizacional. Mas há homogeneidade no universo do trabalho, devido ao déficit de ingressos, instabilidade trabalhista e más condições de trabalho. É neste último lugar que radicaliza a potencialidade política do universo trabalhador. A pergunta é: como traduzir esse material homogeneizado em um discurso político?
IHU – O senhor mora na Argentina. Qual é a realidade do país depois da eleição de Javier Milei e como sua ascensão ao poder impactou o mundo do trabalho?
Diego Alvarez Newman – Milei é parte da forma que endogeniza o capitalismo tecnológico financeiro na Argentina. Há uma matriz de extrema-direita que prega um discurso de ruptura que é o de Trump, Bolsonaro, Bukele e outros como Kast, no Chile, López Aliaga no Peru, ou Manini Ríos, no Uruguai. O mesmo acontece na Europa.
Esse discurso de ruptura toma formas particulares de atender às especificidades de cada país. A Argentina tem há 10 anos uma desordem macroeconômica, isto é, um regime de alta inflação, com desvalorizações sucessivas, com baixas reservas e com um déficit fiscal insustentável devido à fuga de capitais. Isto não é um dado menor: a Argentina não é um país pobre ou de baixa produtividade, é um país empobrecido pela fuga e pela evasão fiscal.
Assim, com o correr do tempo, ele se transformou em uma desordem existencial no nível da população. Isto é, situações cotidianas como comprar no comércio e não ter preços de referência ou alugar moradias impagáveis e em dólares. Havia uma demanda clara da sociedade para colocar a economia em ordem e é neste contexto que se deve compreender a emergência de Milei.
Milei logra capturar essa bronca social porque as duas frentes políticas constituídas, Juntos pela Mudança (2016-2019) e a Frente de Todos (2020-2023), não só não puderam conter a inflação, mas agravaram todos os problemas econômicos e sociais. Nesse sentido, eu seria muito cauteloso com a hipótese de que a sociedade foi “direitizada”. Pois bem, tendo a pensar que a sociedade está desesperançada.
Acredito que Milei busca interpelar essa desesperança desde um discurso que pretende colocar em confronto tudo aquilo que está abaixo da órbita do Estado (aposentados, empregados públicos, universidades, sistema de ciência e tecnologia, empresas estatais, etc.) com os cidadãos que trabalham e que pagam impostos para sustentar esse sistema de “casta”.
Há um amplo consenso acadêmico para caracterizar esse discurso como cruel. Porque os despossuídos, o fechamento de agências e os cortes orçamentários são festejados pelos funcionários do governo diante do sofrimento dos afetados.
Há outro dado em que devemos prestar atenção e que é chave para a compreensão do dogmatismo deste governo. A redução do déficit fiscal como ferramenta macroeconômica não é utilizada para o saneamento das contas públicas. Não há "modernização" do estado, mas sim "destruição" do estado sob a ilusão de que os capitais privados substituem suas funções. Creio que este é o experimento ou o salto no vazio que estamos vivendo, porque, pelo menos desde o que conheço, não há experiências anteriores deste tipo de política em nenhum lugar do mundo. A utopia ultradireitista de que os capitais não tenham nenhum grau de orientação política por parte do estado e que possam ser operados livremente. Podemos viver sob uma racionalidade política que reduza a totalidade da vida aos princípios do mercado? Estamos diante do avanço de uma determinada forma de ditadura de mercado?
É certo que a institucionalidade democrática por enquanto continuará funcionando. As medidas mais importantes que foram tomadas como a Lei de Bases, a reforma previdenciária ou o veto ao financiamento universitário foram aprovadas pelo congresso argentino e foram aprovadas enquanto o partido de Milei é uma franca minoria. Este experimento por enquanto está atingindo níveis mínimos de legitimidade no Parlamento.
Mas, pelo que disse em todas as respostas, a imagem de Milei caiu fortemente e não está claro que há legitimidade social para avançar neste tipo de reformas estruturais. Se está tocando em questões éticas da sociedade argentina como os direitos humanos, as aposentadorias, as universidades públicas e as empresas públicas que são um símbolo da soberania nacional, mas não parece que Milei tenha legitimidade social. Por isso, as eleições legislativas de 2025 serão realmente importantes para saber se realmente a sociedade argentina convalidará este rumo ou se começará a mostrar os limites sociais e políticos neste experimento.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Diego Alvarez Newman – Penso que foi possível abordar os temas mais importantes que afetam a Argentina tomando o trabalho como referência. Muito obrigado pelo convite.
[1] Piquetero é um termo em castelhano que designa o movimento iniciado por trabalhadores desempregados, egressos da empresa petroleira argentina YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), na década de 1990. Trata-se de um movimento de protesto que consiste na ocupação, a partir de piquetes, de ruas, estradas, espaços públicos etc.