28 Setembro 2024
É insuficiente nas eleições a esquerda desconstruir só discurso de seu opositor: é preciso levar a batalha também para o campo simbólico.
O artigo é de Jorge Barcellos, historiador, doutor em Educação pela UFRGS e autor, entre outros livros, de Neoliberais não merecem lágrimas: como a política neoliberal ampliou a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul (Clube dos Autores), publicado por A Terra é Redonda, 26-09-2024.
Esqueça o Boitatá, o Negrinho do Pastoreio, a Salamanca do Jarau. Um novo mito gaúcho surgiu nas eleições de Porto Alegre de 2024 o candidato de direita que disputa as eleições municipais se dizendo “o homem do chapéu de palha”. O nome, que caberia em qualquer livro de Stephen King, serve para o candidato Sebastião Melo (MDB) reforçar símbolos de simplicidade e proximidade com o eleitor.
Eu me surpreendo que a esquerda não denuncie esta estratégia. Eu a faço com a crença de que é insuficiente nas eleições a esquerda desconstruir só discurso de seu opositor: é preciso levar a batalha também para o campo simbólico. É que, nos últimos tempos, parafraseando a famosa expressão de Alain Finkielkraut, a esquerda se tornou moderna, enquanto que a direita, pós-moderna.
A esquerda busca convencer com a razão, com seus programas, exatamente como é o certo de fazer política; a direita quer convencer com a emoção, com piadas, com memes, o jeito errado como vem fazendo. O “homem do chapéu de palha” já apareceu no horário político da capital com o famoso óculos pixel de memes rindo de si mesmo, mas é o chapéu de palha, para mim, o símbolo mais representativo que precisa ser desconstruído. Por quê?
O mundo é feito de símbolos. Eles entram nas consciências, mexem com o imaginário, afetam o mundo. Na política, símbolos reforçam projetos, criam a base de narrativas, ficam na mente e conquistam votos. Entendo que a força do chapéu de palha na imagem de Sebastião Melo vem de dois pressupostos. O primeiro porque é um símbolo que quer agregar ao candidato os valores de ingenuidade quando não o é. O governo do homem do chapéu de palha não é ingênuo.
Há acusações de corrupção em seu governo; há críticas a sua gestão de proteção das enchentes; há críticas a privatização da Carris que realizou que levou ao desemprego de dezenas de cobradores. Para a esquerda, sua candidatura é um problema: nenhuma crítica cola no “homem do chapéu de palha”, diz a jornalista Rosane Oliveira. Graças ao sucesso de sua propaganda, o PT amarga a redução dos votos em Maria do Rosário de 31% para 27% enquanto que “o homem do chapéu de palha” passa de 36% para 41% dos votos entre 27/8 e 17/09 segundo a última pesquisa Quaest.
É preciso que se diga que “o homem do chapéu de palha” é uma notável associação simbólica com o personagem célebre Jeca Tatu. Em tempos em que os conteúdos programáticos importam menos que as imagens de campanha, que as carreiras políticas e conquistas menos do que memes divulgados na mídia, é importante buscar explicações para o sucesso desta imagem em sua propaganda. Em No tempo do Jeca Tatu: representação das populações rurais no imaginário urbano do século XX (1914-1980)” (disponível em aqui), Fabio Sgroi e Ana Paula Koury fazem uma análise importante do personagem Jeca Tatu que inspira minhas reflexões aqui.
O segundo pressuposto da força do símbolo usado por Sebastião Melo está no fato de que a imagem do Jeca Tatu permeou o imaginário da cultura brasileira urbana do século XX. Mas é preciso ir além da imagem do chapéu de palha simplesmente, que encarna simplicidade, para ver do que realmente se trata: o Jeca Tatu era a personificação da precariedade e do atraso do país.
Nesse sentido, o “homem do chapéu de palha” é o nosso Jeca Tatu, ele quer atualizar o personagem, ressignificando-o. Agora ele serve para encarnar a modernidade simples, o administrador que é próximo da população. Sai o caipira pobre e preguiçoso e entra o gestor simples e humilde. O chapéu de palha tem o poder de criar, nesse sentido, uma identidade. Tanto Jeca Tatu como o nosso “homem do chapéu de palha” trocaram sua origem: Jeca Tatu, a roça pela cidade; Sebastião Melo, nosso “homem do chapéu de palha”, a cidade do interior pela capital.
O personagem original foi uma criação de Monteiro Lobato (1882-1948) em 1914 “como personagem de um artigo publicado em jornal, o caipira pobre e preguiçoso” (Sgroi & Koury, 2019). O personagem atual é uma criação do marketing político. Interessante que, diferente da época de Jeca Tatu, quando acalorados debates sobre sua figura surgiram na imprensa, hoje a esquerda não vislumbra no “homem do chapéu de palha” um conteúdo simbólico importante para criticar.
Na época se vislumbrava no Jeca Tatu um dos motivos do atraso econômico do país e ele veio depois veio a se transformar em símbolo midiático com sua entrada no cinema pelas mãos de Amácio Mazzaropi (1912-1981) “Na tela grande, o personagem firmou-se de vez no imaginário urbano, encarnado por um intérprete que compreendia muito bem o repertório das camadas populares. O caipira sobreviveu na telona, com muito sucesso de bilheteria, até o início da década de 1980. Desde então, foi desaparecendo, consubstanciado no repertório da cultura urbana contemporânea”, afirmam os autores.
Até que, rufem os tambores, o “homem do chapéu de palha” ressuscita como personagem político aproveitando-se da memória dos camponeses convertidos na cidade em trabalhadores proletarizados ou relegados ao subemprego. Não foram os mais humildes ou aqueles que tiveram a experiência de assistir os filmes de Mazzaropi, também os que votaram nele e prometeram votar agora mais uma vez, mesmo tendo sido vítimas de suas políticas ou ausência delas, como visto políticas na enchente?
Na ficção, o Jeca Tatu era uma crítica à cultura do homem simples, depois encarnou o ideal progressista da luta conservadora e até transformou-se em símbolo do problema agrário, tão importante para o Partido Comunista. O “homem do chapéu de palha” assaltou o imaginário de esquerda, colou sua figura política em um personagem de Mazzaropi, mas a verdade é que, ao contrário daqueles, não se trata de um novo personagem crítico da ordem socioeconômica, mas um de seus principais defensores. Se Jeca Tatu encarna a passagem da cultura rural para a urbana, o “homem do chapéu de palha” que ser a passagem da cultura neoliberal para a ultraneoliberal.
Jeca Tatu vive no país da trapeira como o” homem do chapéu de palha” vive no país do êxtase neoliberal. Sgroi & Koury afirmam que a expressão “trapeira” faz parte do vocabulário caipira com o sentido de “grande desordem”. Esta, talvez, é uma boa palavra para caracterizar a gestão atual de Sebastião Melo: desordem no campo das políticas de proteção da enchente com a falta de manutenção das casas de bombas, desordem no campo das políticas de desenvolvimento urbano com flexibilização do Plano Diretor para facilitar a expansão imobiliária predadora e desordem no campo da recomposição dos salários dos servidores com a negativa de ajustes obrigatórios por lei.
Com o “homem do chapéu de palha”, mas não apenas ele, é preciso ser justo, já que se iniciou esta desordem no governo de Nelson Marchezan (2017-2021), esta é uma palavra importante para assinalar o processo de desagregação do campo da proteção ambiental que faz parte de “virar a capital de cabeça para baixo”, o que acontece desde o início dos governos neoliberais locais. Até então, as gestões de esquerda (1989-2005) estavam associadas ao freio da expansão predatória da construção civil, com a implantação de marco regulatório do Plano Diretor; preservação dos direitos dos servidores públicos, com recomposição salarial e preservação do meio natural, com ampla atuação da SMAM, com a manutenção do sistema de proteção, com a manutenção do DEP.
Com os governos neoliberais que iniciam com José Fogaça(PMDB) e chegam ao governo do “homem do chapéu de palha” – com um breve interregno pedetista – chegamos a flexibilização do Plano Diretor para ampliação da expansão imobiliária, precarização do município com redução dos concursos públicos, recuo de direitos dos servidores e de recomposição salarial e o fim do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), o que agudizou a enchente na capital. A cidade se transformou no principal laboratório de políticas de predação neoliberal, com o “homem do chapéu de palha” como um de seus atores.
Foi no meio dessa trapeira em que Porto Alegre se transformou que apareceu o novo Jeca tatu, o “homem do chapéu de palha”. O Jeca Tatu originou-se do convívio do escritor Monteiro Lobato com caboclos quando foi administrador de terras no Vale do Paraíba. Para Lobato, eram trabalhadores que não dispensavam cuidados para a terra, provocavam queimadas e empobreciam o solo até que se tornasse estéril. Os capitalistas beneficiados pelas políticas do “homem do chapéu de palha” fazem o mesmo em Porto Alegre: querem lotear a Fazenda Arado, uma notável planície de inundação e sitio arqueológico; transformam o ambiente urbano pela expansão de grandes prédios que tornam a vida e a cultura da cidade algo estéril.
Para Monteiro Lobato, o caboclo é um dos principais impedimentos do desenvolvimento do Brasil; para mim, o projeto neoliberal defendido pelo “homem do chapéu de palha” é o principal impedimento do desenvolvimento de uma cidade com habitabilidade e cultura: aqui, criar condições de expansão imobiliária é a forma de extinguir a cidade pela predação. O “homem do chapéu de palha” é esse ser parasita que, como na visão de Monteiro Lobato do Caboclo, vive de criar condições predatórias para o capital imobiliário, é um nômade sem apreço pela cultura local, que vive na penumbra de uma zona fronteiriça entre a aparência de um bom gestor que oculta seu papel destruidor do patrimônio da cidade.
O Jeca Tatu se vangloria de seu cachorro, seu pilão, seu chapéu e seu isqueiro; o “homem do chapéu de palha” se vangloria da simplicidade, da aproximação popular. Ambos recuam para não se adaptar, seja ao moderno, seja a tradição do lugar.
Monteiro Lobato queria que fossem colocados em práticas modelos mais modernos de administração; eu queria que fosse dado um passo a trás, que recuássemos na implementação de políticas neoliberais para um Estado de proteção social. Precisamos de desenvolvimento econômico sim, mas não que seja feito à custa da cultura local, do seu patrimônio, das condições de habitabilidade e da precarização dos serviços públicos, exatamente a linha adotada pelo “homem do chapéu de palha”, já que as consequências são exatamente as mesmas: esgotamento do uso do solo e a decadência do lugar, seja do Vale do Paraíba, seja de Porto Alegre.
Jeca Tatu é produto de um erro literário como o “homem do chapéu de palha” é de um erro político. O personagem nasceu em um texto que Lobato enviou para a seção de Queixas e Reclamações do Jornal O Estado de S. Paulo, mas que os editores publicaram como um artigo pela qualidade da escrita. O nosso “homem do chapéu de palha” nasceu como um erro político da cidade, que pensa estar votando em alguém que ama a cidade quando não ama. Que amor é esse que se faz às custas da destruição do ser amado? Ambos buscam a continuidade: Monteiro Lobato começou a escrever para o jornal, enquanto o nosso “homem do chapéu de palha” quer reeleger-se.
Todos tentam a seu modo a continuidade. O Jeca Tatu é bonito no romance e feio na realidade, dizem os autores “Quando comparece às feiras, todo mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher. Nada mais. Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longe”. dizem Sgroi & Koury. Não é a perfeita descrição do nosso “homem do chapéu de palha?” Não é a exploração do mundo natural que vemos na Fazenda Arado? Não é seu esforço em espremer o Plano Diretor, de tirar dele tudo o que impede nele a construção de grandes arranha-céus na cidade?
Ele é portador da lei do menor esforço, não para si, mas para os empresários que representa. Como diz os autores “o caboclo é o sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive…” (Sgroi & Kouri apud Lobato, 2009).
O “homem do chapéu de palha” diz que vive a cidade, mas não vive. Se visse, lhe importaria a sombra do prédio que quer autorizar a construção junto a catedral metropolitana de Porto Alegre. Devo ser para o “homem do chapéu de palha” como os críticos de Urupês, livro de Lobato onde o personagem aparece, pois sou também esse “literato da cidade”, termo para se referir aos intelectuais que criticavam sua obra. Eu também o crítico, mas não por estar no conforto de minha casa, mas por necessidade de mostrar o personagem real por trás da ficção eleitoral.
É preciso, como diz o filósofo Jacques Derrida(1930-2004) desconstruir o idealismo da figura que o “homem do chapéu de palha” encarna, é para isso é preciso ler sua imagem como um texto e seguir o caminho do filósofo da desconstrução, pois desconstruir não é destruir seu personagem, mas arrancá-lo de sua lógica, mostrar a disposição de seus elementos textuais.
Dizem os autores que as “réplicas que surgiram na imprensa após a publicação de Urupês foram tão furiosas quanto as palavras de Monteiro Lobato”. Até nisso nosso “homem do chapéu de palha” tem sorte. A campanha de sua opositora Maria do Rosário ainda é morna e o único político de esquerda crítico a altura, o deputado Leonel Radhe (PT), tem vídeos ótimos que não estão no horário político. Ele é o único que fez a desconstrução do personagem, investindo na associação de imagens da catástrofe da administração com o “homem do chapéu de palha”. Aqui, não é símbolo de simplicidade, mas de ineficiência.
É, aqui, uma resposta de esquerda “pós-moderna”, porque aceita e combate no campo dos símbolos a ideia de boa política. O sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007) já havia dito em sua obra A Sombra das maiorias silenciosas (Brasiliense) que a massa não quer o racional, mas o irracional. Nosso homem do chapéu de palha sabe disso e abusa e usa dos recursos de memes, inclusive consigo próprio.
Ao longo do tempo, o Jeca Tatu de Lobato sofre duas transformações segundo os autores. A primeira é a que vem depois que o autor lê o livro Saneamento básico no Brasil, de Belisário Penna e Arthur Neiva, publicado pelo Instituto Osvaldo Cruz em 1918, quando entende que o interior do país havia sido abandonado. Lobato acreditava que o caboclo era inferior e apático por sua condição racial, e substitui a ideia de superioridade de certas raças que o autor defendia por uma ideia de que o homem da roça era fruto do subdesenvolvimento “Ao verificar que o homem é produto do seu meio – e não o contrário – Monteiro Lobato “pede perdão ao Jeca, dizendo tê-lo ignorado doente””, dizem Sgroi e Koury.
Monteiro Lobato começa a publicar sobre a exploração do homem da roça por causa da concentração de renda e cria em 1924 Jeca Tatuzinho, conto infantil em que o personagem transformado em criança narra sua superação, da doença e miséria aos cuidados com saúde, prosperidade e trabalho árduo. Ele serve de propaganda para uma edição do Almanaque do Biotônico Fontoura distribuído gratuitamente em farmácias de todo o Brasil (Sgroi e Kouri, apud Duarte: 2009, p. 121). Os autores informam que a edição especial do Almanaque representou um dos maiores fenômenos de penetração pública de sua época e que sua tiragem bateu todos os recordes de qualquer publicação impressa daquele período. “A longevidade da revistinha também é digna de nota: em 1982 foram impressos 100 milhões de exemplares da edição” (idem, p. 129).
A mudança ocorre com o personagem preguiçoso e miserável quando ele recebe a visita de um médico, que o diagnostica com Amarelão “após ingerir um “elixir milagroso” – o Biotômico Fontoura e outras medicações do laboratório farmacêutico –, torna- se robusto, corado e saudável; passa a empunhar a enxada com vigor e transforma seu pedaço de terra decaído em um potente empreendimento agrícola, inclusive derrubando árvores para ampliar sua casa e socando a onça que antes tanto o amedrontava”, dizem Sgroi e Kouri.
É a descoberta pelo autor das reais condições de vida dos camponeses, desprezados pelo poder público e vítimas da alta concentração de renda nas mãos de proprietários de terras. Já na cidade do “homem do chapéu de palha”, a campanha de sua opositora Maria do Rosário já denunciou a mudança de personagem: se na eleição anterior creditava ao poder público estabelecido na Prefeitura a responsabilidade sobre as cheias, na atual propaganda lança sua crítica ao suposto abandono do governo federal – o que não é verdade, já que ele investiu no Estado 42,3 bilhões de reais para reconstrução das vítimas da enchente.
Se em Monteiro Lobato são proprietários de terra que são a origem dos males do caboclo, na terra do “homem do chapéu de palha” agora são os empreendedores e grandes empresários da construção civil. Não há em seu discurso nenhuma crítica ao capital, a exploração dos mais pobres, há apenas captura da imagem do caboclo através do uso do seu chapéu para benefício eleitoral. Pudera: a mudança no personagem de Lobato devia-se a uma aproximação do autor aos temas da reforma agrária defendida pelo Partido Comunista; o “homem do chapéu de palha” só tem interesse na reforma agrária que beneficia os empreendedores e que facilita a vida das corporações.
Nada das populações abandonadas a sua própria sorte nas pousadas contratadas pela Prefeitura e que incendeiam e matam seus ocupantes conforme noticiou o site Brasil de Fato (disponível em aqui.). Eles são como o Zé Brasil, nome de outro personagem da obra de Monteiro Lobato de um trabalhador rural. Lá como aqui, é sempre o abandono e absoluta miséria do trabalhador, seja rural ou urbano. Se os grandes proprietários de terra são a causa do abandono do Zé Brasil, os grandes empreiteiros são dos trabalhadores urbanos que o “homem do chapéu de palha” quer representar.
Zé Brasil é uma atualização de Jeca Tatu, mas “homem do chapéu de palha” não é atualização de nada, exceto da força das elites. Segundo os críticos da época, a passagem de um personagem ao outro foi uma evolução política; no nosso caso, há somente uma involução, como já mostramos na análise dos programas da eleição anterior do candidato em nosso livro “A incrível história do programa que encolheu” (disponível aqui).
A segunda transformação ocorre com o personagem Zeca Tatu é dado pela sua recriação por Amácio Mazarropi. Ele fez parte de um contexto de desenvolvimento capitalista como o “homem do chapéu de palha” faz parte de seu aprofundamento. O primeiro encarnou o personagem do Jeca Tatu nos primórdios da comunicação de massa no Brasil; o segundo encarna o personagem no período ultraneoliberal. O primeiro nasceu no programa humorístico de rádio Rancho Alegre de 1946 e que se tornou o primeiro programa humorístico da TV Tupi em 1950 e no segundo nasce na propaganda eleitoral de Porto Alegre nos anos 2024.
Tanto o personagem de Mazzaropi como o do “homem do chapéu de palha” buscavam ser a síntese das origens do povo. Mas enquanto o personagem de Mazzaropi nasce do teatro mambembe, o outro nasce das estratégias do marketing pós-moderno, quer dizer, o primeiro nasce numa forma de arte e o segundo numa forma de conquista das consciências.
O Jeca Tatu de Mazzaropi é justificado pela demanda das camadas populares; o do “homem do chapéu de palha!” pela demanda da classe política em se perpetuar no poder. Ambos são encenações, a primeira improvisada e regionalista e a segunda, calculada e política. Mas a transformação fundamental é no discurso de cidade que encarna: no primeiro, a cidade é a fonte do falso, do desonesto, do vicio; no segundo, é a fonte de riqueza, felicidade e progresso para todos – quando é apenas para alguns.
Tanto o Jeca Tatu de Mazzaropi quanto o “homem do chapéu de palha” de Sebastião Melo querem encarnar a imagem de um homem rural puro. Dizem os autores que “O Jeca mazzaropiano apareceu em 1959 no filme Jeca Tatu, produzido pela própria produtora do artista, a PAM filmes, e dirigido por Milton Amaral”; o nosso tem origem na propaganda política de 2024, exatos 65 anos depois. Se o Jeca de Mazzaropi era um confronto do homem do campo com a cidade, o jeca do “homem do chapéu de palha” é a sua aceitação resignada.
Ambos são inspirados na observação das pessoas, mas fazem apropriações do caipira de formas distintas. Ao final, o primeiro quer convencer as classes dominantes sobre a sua responsabilidade na situação do atraso no campo enquanto o segundo quer convencer as classes dominadas do interesse das dominantes na melhoria de sua condição. O que se faz aqui é em ambas é apenas mais uma forma da sedução, o desvio de finalidade do símbolo, mas se na primeira está a serviço da luta de classes, o da segunda está a serviço da dominação de classe.
As versões de Monteiro Lobato e de Mazzaropi do Jeca Tatu têm diferenças sim, mas na de Mazzaropi o personagem deixa de ser um parasita da nação, doente ou consciente como o de Lobato, mas um camponês conservador crítico da lógica industrial e nisso se distancia de seu similar político contemporâneo, que a defende.
A conclusão é que o “homem do chapéu de palha” não passa de um caipira estilizado, diferente do caipira real ou da herança mazzaropiana. Ele usa o símbolo do chapéu e a fala rústica para provocar identificação imediata com as pessoas mais pobres. Não há nada no “homem do chapéu de palha” que sinaliza para o Jeca do passado, além do chapéu. Este é, no entanto, um símbolo forte porque evoca uma sensibilidade. Qual? A do uso do tempo.
Lá, o tempo é do lavrador; aqui é o do ritmo frenético do empresário; lá, era o tempo que passa, aqui é o da busca por resultados. O Jeca do passado é mais rico que o do presente porque tem outro significado, o de valorizar o tempo passa entre o dia e a noite, as chuvas e as estações, diferente do tempo cronometrado da cidade. É que agora, não se trata de perder tempo, mas de comprar e vender tempo. E comprar e vender, disso o “homem do chapéu de palha” entende.
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Um chapéu de palha nas eleições de Porto Alegre. Artigo de Jorge Barcellos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU