06 Setembro 2024
"O diálogo é um potente 'gesto-barreira' para enfrentar as dramáticas crises que marcam esse tempo do Antropoceno, bem como o caminho necessário para 'derrotar a cultura da violência e da indiferença'".
O artigo é de Faustino Teixeira, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Nesses tempos nebulosos que vivemos no mundo, que coincide com um momento embaçado da temperatura brasileira, fomos despertados pela linda declaração do papa Francisco em encontro inter-religioso ocorrido em Jacarta, na Indonésia, no dia cinco de setembro de 2024. A fala simbólica de Francisco aconteceu dentro da grande mesquita de Istiqlal, a maior da Ásia.
Depois de saudar o grande imã, Nasaruddin Umar, Francisco recordou que ali naquele espaço, projetado por um arquiteto cristão, como nos outros lugares de culto da região, partilha-se, realmente, o diálogo, o respeito mútuo e a convivência harmoniosa entre as tradições religiosas e as distintas sensibilidades espirituais. No maior país muçulmano do mundo, a Indonésia, respira-se um salutar clima de respeito inter-religioso, confirmou Francisco.
Trata-se para Francisco de um verdadeiro dom, que traduz uma convocação cotidiana em favor do cultivo dialogal, de modo a fazer com que a experiência religiosa “seja um ponto de referência numa sociedade fraterna e pacífica e nunca um motivo de fechamento e confronto”.
Francisco fez referência ao “túnel da amizade” ali existente, que une a Mesquita Istqlal à Catedral de Nossa Senhora da Assunção. É, em verdade – sublinha Francisco -, “um sinal eloquente, que permite que estes dois grandes lugares de culto estejam não só ´em frente` um do outro, mas também ´ligados` um ao outro”. Trata-se de uma passagem que favorece o diálogo e o encontro, e uma possibilidade real de descobrir, viver e transmitir a mística do “viver juntos”. Como indicou Francisco, esse caminho dialogal deve prosseguir:
“Que todos nós, juntos, cada um cultivando a sua espiritualidade e praticando a sua religião, possamos caminhar à procura de Deus e contribuir para a construção de sociedades abertas, fundadas no respeito mútuo e no amor recíproco, capazes de isolar a rigidez, os fundamentalismos e os extremismos, que são sempre perigosos e nunca justificáveis”.
Desdobrando sua reflexão na mesquita, Francisco lançou o desafio de “olhar sempre com profundidade”, pois é o caminho que possibilita o encontro “para além das diferenças”. Já dizia o antropólogo Clifford Geertz, que só conseguimos julgar com clareza o outro quando nos tornamos capazes de enxergar com clareza. Esse olhar indicado por Francisco é o que avança para o mundo da profundidade, é o olhar que está “por baixo”, no mundo do subsolo, onde se permite com beleza e cortesia – como no túnel da amizade -, a experiência da aproximação do mistério divino, a resposta essencial àquela sede de infinito ancorada no coração. É ali na profundidade que ocorre a alegria despojada, “de uma vida mais forte do que qualquer morte”; a alegria que impele cada um de nós a “sair de nós mesmos para ir ao encontro de Deus”.
Curiosamente, essa convocação de Francisco coincidiu com a oração litúrgica do dia 05 de setembro, tomada do evangelho de Lucas, quando Jesus convoca Simão Pedro a avançar “para águas mais profundas” (Lc 5,4). É ali nessas águas profundas que as redes encontram o que é desejado.
O teólogo protestante, Paul Tillich, também gosta muito desse símbolo da profundidade, e serve-se dele para tratar o tema do diálogo entre as religiões. Em sua visão, o cristianismo encontra-se diante de um desafio singular, que é o de transcender sua particularidade. Mas não pelo caminho do abandono da própria tradição, mas de seu aprofundamento mediante a oração, o pensamento e a ação. Ao tratar em livro de 1968 o tema do cristianismo e as religiões, Tillich sublinhou:
“Na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana”.
Essa percepção de Tillich foi favorecida por uma rica viagem ao Japão, que realizou nos anos 60, e que abriu portas e janelas em sua reflexão teológica, sobretudo nesse campo do diálogo.
Em sua fala na mesquita de Jacarta, Francisco falou dessa profundidade, como o primeiro pensamento sublinhado ali naquele encontro de irmãos. Na sequência, lembrou de outra questão fundamental: “Cuidar dos vínculos”. Assim como o “túnel da amizade” foi feito para ligar lugares distintos de fé, assim deve ocorrer igualmente no diálogo amoroso entre as religiões. Trata-se do desafio de “criar vínculos”, de emaranhar-se no mundo do outro com fraternura. Um diálogo que vise não apenas encontrar pontos em comum, mas que avance além, com o cultivo desarmado e hospitaleiro de vínculos de amizade. É o diálogo de coração. Diz Francisco: “São vínculos que nos permitem trabalhar juntos e avançar unidos em busca de um objetivo, na defesa da dignidade humana, na luta contra a pobreza, na promoção da paz”.
O diálogo é um potente “gesto-barreira” para enfrentar as dramáticas crises que marcam esse tempo do Antropoceno, bem como o caminho necessário para “derrotar a cultura da violência e da indiferença”, como lembrou com acerto a Declaração Conjunta de Istiqlal. Francisco conclui sua fala dizendo que o tesouro mais precioso existente na Indonésia não é sua jazida de ouro, mas “a vontade de que as diferenças não se tornem motivo de conflito, mas se harmonizem na concórdia e no respeito recíproco”.
A harmonia é um conceito precioso para os orientais em geral. É um termo que guarda ali um significado muito especial, com alcance ainda mais profundo do que entendemos no Ocidente. O diálogo firma-se, assim, como um desafio essencial não só para as culturas mas também para as religiões e espiritualidades. O pensador palestino Edward Said, disse uma vez que as culturas são mais naturalmente “elas mesmas quando entram em parceria com outra”. Assim também ocorre no mundo das religiões. Não há outro caminho possível senão o diálogo. Como diz Marco Lucchesi, o diálogo é “um tesouro precioso, uma zona de aventura, espanto e inquietação”. Não ocorre para convencer o outro a uma verdade particular, mas para propiciar a escuta, a acolhida e a partilha de mundos que são preciosos e únicos. O diálogo existe não para reduzir ou diminuir o outro, ou convencê-lo para uma outra verdade, mas para um exercício comum de aprendizado de um caminho novo. Na medula do diálogo está uma experiência novidadeira de acolhida, quando conseguimos, de fato, hospedar o outro no coração. Seu centro está, portanto, numa acolhida. É quando então podemos, a partir de um olhar que indaga, mover nossos lábios para essa páscoa da alegria. Como diz Francisco em Jacarta, o diálogo é o mecanismo fundamental que nos ajuda a “atravessar o túnel com o olhar voltado para a luz”.
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Diálogo em profundidade: Francisco na Indonésia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU