07 Agosto 2024
"Vance é um novo elo político (e geográfico) entre o meio-oeste da MAGA, as elites financeiras de Nova York (Trump) e o capital de risco da Califórnia", escreve Bruna Della Torre, em artigo publicado por Blog da Boitempo, 02-08-2024.
Bruna Della Torre é pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp, onde estuda indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra fundadora da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia (bolsista Capes) e mestrado em Ciência Social (bolsista Fapesp), todos na Universidade de São Paulo. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.
Candidato a vice de Trump vê a si mesmo como branco pobre que ascendeu por esforço próprio – e cativa ao reafirmar o sonho da superação pessoal por esforço próprio. Uma isca para a classe trabalhadora pobre, em tempos de desalento político.
“Às pessoas de Midlletown, Ohio, e a todas as comunidades esquecidas em Michigan, Wisconsin, Pensilvânia e Ohio e em cada esquina de nossa nação, eu prometo que serei um presidente que nunca se esquecerá de onde ele veio”. Essa foi a declaração com a qual J.D. Vance, escolhido para ser vice-presidente na campanha de Donald Trump, terminou o discurso de anúncio de sua candidatura na Convenção Nacional do Partido Republicano de 2024. Vance prometeu reindustrializar o país, fortalecer os americanos de todas as cores e olhar pelas comunidades que carregam o peso das más decisões de Washington. Vance também criticou a participação dos EUA na guerra do Iraque e da Ucrânia e o apoio dos democratas a conflitos que só trouxeram empobrecimento e morte para a população de seu país. Sua esposa, filha de imigrantes indianos e considerada não branca nos Estados Unidos, apresentou-o na convenção como um homem simples e da classe trabalhadora, que adequa a dieta carnívora à sua dieta vegetariana e cujo passatempo principal é brincar com filhotes de cachorro e assistir ao filme Babe: o porquinho atrapalhado. Conforme disse Ruy Braga neste blog, Vance é uma espécie de isca eleitoral para a classe trabalhadora branca do meio-oeste na medida em que seu discurso de fato mobiliza diversas ansiedades desse setor: a hemorragia de empregos advinda da desindustrialização e a desclassificação social e econômica que a acompanha, a desestruturação das famílias pela pobreza e pela epidemia de opioides, heroína e fentanil que assola os Estados Unidos e a perda de esperança no sonho americano.
Quando Trump venceu as eleições em 2016, o livro de J.D. Vance, Hillbilly Elegy (2016) foi apontado como uma explicação “interna” do que era a MAGA (Make America Great Again) e dos motivos pelos quais a classe trabalhadora branca e pobre dos Estados Unidos havia votado majoritariamente no candidato. A obra permaneceu diversos meses na lista de best-sellers do New York Times e, em 2020, inspirou um filme homônimo, dirigido por Ron Howard. Dois anos depois, Vance seria eleito senador pelo Partido Republicano representando o estado de Ohio.
No livro, Vance conta a história de sua vida em Middletown, no meio-oeste estadunidense. A obra percorre sua infância e adolescência, sua passagem pela Marinha e participação na guerra do Iraque, as passagens pela Universidade Estadual de Ohio e pela Universidade de Direito de Yale até os primeiros trabalhos em firmas de advocacia de Washington. O livro aborda a comunidade hillbilly, palavra de difícil tradução, mas que Vance define a partir da geografia (hill é colina em inglês), do sotaque (os hillbillies dizem “mamaw” para vovó e se diferenciam dos brancos de elite pelo modo de falar) e a partir da raça:
Há um componente étnico à espreita no fundo da minha história. Em nossa sociedade consciente da raça, nosso vocabulário muitas vezes não se estende além da cor da pele de alguém – “pessoas negras”, “asiáticos”, “privilégio branco”. Às vezes, essas categorias amplas são úteis, mas para entender minha história, é preciso mergulhar nos detalhes. Posso ser branco, mas não me identifico com os WASPs do Nordeste. Em vez disso, me identifico com os milhões de americanos brancos da classe trabalhadora de ascendência escocesa-irlandesa que não têm diploma universitário. Para essas pessoas, a pobreza é a tradição familiar – seus ancestrais eram trabalhadores diaristas na economia escravista do Sul, meeiros depois disso, mineiros de carvão depois disso, e operários e trabalhadores de fábricas em tempos mais recentes. Os americanos os chamam de caipiras, rednecks ou lixo branco. Eu os chamo de vizinhos, amigos e família.
Vance narra sua criação pela avó – uma hillbilly religiosa fã do seriado Law and Order cuja palavra favorita era “fuck” e que vivia rodeada de armas) – a luta contra o vício da mãe em opioides, a “porta-giratória de figuras paternas” que passaram pela sua juventude, a situação da vizinhança pobre com “rainhas do welfare” (mulheres que alegadamente aproveitam-se maliciosamente de programas de bem-estar), a falta de perspectiva social, educacional e política de sua comunidade.
Memórias ou autobiografia, a obra foi vista como um grande acontecimento do que poderíamos chamar de autoficção de extrema-direita, uma vez que o livro acompanha a voga editorial atual, de mesclar sociologia e literatura, expressa, na esquerda, por autores como Annie Ernaux e Didier Eribon – uma semelhança que vale ressaltar apesar da evidente diferença de nível (intelectual e político) entre os autores.
As memórias de Vance tratam de sua “trânsfuga de classe”. Vance afirma que é um imigrante cultural, que se move entre a classe alta e a classe trabalhadora. O livro, afirma ele, orienta-se pelo desejo de “que as pessoas entendam como a mobilidade social” – que ele atribui ao caráter de sua avó, à disciplina e autoconfiança fornecidas pela Marinha e à educação universitária – “é vivida”. E afirma: “quero que as pessoas entendam algo que aprendi apenas recentemente: que mesmo para aqueles sortudos o suficiente para viver o sonho americano, os demônios da vida que deixamos para trás continuam a nos perseguir”.
Como grande parte da literatura contemporânea do gênero, Hillbilly Elegy também aborda os temas da vergonha, mais especificamente, a vergonha da pobreza:
Nós éramos pobres, um status que Mamaw assumia como uma medalha de honra, mas com o qual eu tinha dificuldade de me reconciliar. Eu não usava roupas da Abercrombie Fitch ou American Eagle a não ser que ganhasse de Natal. Quando Mamaw me pegava na escola, eu pedia para ela não descer do carro para que meus amigos não a vissem – com seu uniforme de calça larga e camiseta masculina – com um cigarro de menta enorme pendendo dos lábios. Quando as pessoas perguntavam, eu mentia que vivia com minha mãe e que eu e ela cuidávamos da minha vó. Até hoje me arrependo de que muitos amigos e conhecidos do colégio nunca souberam que Mamaw foi a melhor coisa que me aconteceu.
Como Eribon, Vance mobiliza sua história familiar para compreender a mudança de perfil eleitoral da classe trabalhadora. Admiradores de Franklin Delano Roosevelt, seus avós eram democratas porque acreditavam que esse era “o partido da classe trabalhadora”. O avô teria votado em Ronald Reagan contra Walter Mondale (segundo Vance, um representante da elite bem educada que o avô não teria engolido), mas a avó teria seguido com os democratas até Bill Clinton. Com Obama, seria compreensível, segundo ele, que o distanciamento de sua comunidade do Partido Democrata tenha ocorrido: as drogas, a guerra, a crise econômica teriam destruído a crença hillbilly nessa instituição. A alienação máxima teria sido atribuída à sua figura:
Seu sotaque – limpo, perfeito, neutro – é estrangeiro; suas credenciais são tão impressionantes que assustam, ele ganhou a vida em Chicago, uma metrópole densa, ele se porta com uma confiança que vem de saber que a meritocracia americana foi feita para ele. […] O presidente Obama surgiu ao mesmo tempo que as pessoas da minha comunidade começaram a perceber que a meritocracia americana não era para elas. Sabemos que não estamos bem. Vemos isso todos os dias: nos obituários de adolescentes que frequentemente omitem a causa da morte (lendo nas entrelinhas: overdose) […] Barack Obama acerta no coração das nossas inseguranças mais profundas. Ele é um bom pai enquanto vários de nós não somos. Ele usa ternos em seu trabalho enquanto a maioria de nós usa macacão, se temos a sorte de ter um trabalho. Sua esposa afirma que não deveríamos alimentar nossos filhos com alguns alimentos, e a odiamos por isso – não porque ela está errada, mas porque está certa.
A subjetividade cindida específica daquele que foge da sua classe e divide-se entre dois mundos estranhos é um dos aspectos principais do livro (e é também um traço comum ao subgênero literário supracitado). Quando foi cursar a faculdade de direito de Yale (que, segundo Vance, ofereceu-lhe dezenas de milhares dólares em ajuda estudantil porque ele era um dos mais pobres da universidade), o duplo pertencimento de classe fez o ressentimento crescer. Um de seus professores defendia que a universidade aceitasse apenas alunos de Stanford, Harvard e Princeton porque os outros não escreviam bem. Vance havia, segundo ele, batalhado na Universidade Estadual de Ohio com três empregos, vendido plasma e vivido alguns anos a base de Nyquil e Dayquil para chegar até Yale. “Eu vivi”, narra Vance, em meio ao que as pessoas em casa chamavam de “elites” e pela aparência exterior, eu era um deles: sou alto, branco e um homem hétero. Nunca me senti fora de lugar em nenhum momento da vida. Mas me senti em Yale […] Eles podem se parecer comigo, mas apesar de toda a obsessão da Ivy League com diversidade – basicamente todo mundo – negros, brancos, judeus, muçulmanos, o que for – vêm de famílias intactas que nunca precisaram de dinheiro.
Aqui vale uma nota. A vergonha da pobreza e a não adequação ao habitus das classes altas, para utilizar uma expressão bourdieusiana, são temas amplamente explorados no livro. Vance narra como não sabia como se portar nos restaurantes, qual era a diferença entre um Cabernet Sauvignon e um Chardonnay, etc. Mas, ainda que de modo populista, Vance parece ir além de Ernaux e Eribon nesse ponto, pois como mostra o trecho acima, ele se envergonha da vergonha da pobreza e assume com orgulho a origem subalterna (enquanto na obra dos últimos, sobressai a preocupação com o pertencimento) – o que explica como a direita está sendo mais capaz do que nós de renovar uma espécie de orgulho proletário, no sentido amplo do termo. É surpreendente que alguém como Eribon, que circula no topo da esquerda francesa tenha tido vergonha de sua origem por tanto tempo, como ele atesta em Retorno a Reims. Sem dúvida, isso diz muito sobre a esquerda – uma reflexão que ele fica devendo no livro. Nesse aspecto, como mostrei aqui em outra ocasião, parece-me que o caminho ficcional de Elena Ferrante, também uma autora que trata do tema, é mais interessante, pois é capaz de figurar como a violência no andar de baixo da sociedade apenas se reproduz de maneira mais mediada, embora igualmente destrutiva, no andar de cima – revelando que a fuga da violência da pobreza e da máfia para os círculos ricos e universitários “civilizados”, na verdade, é uma ilusão.
Nas entrevistas de emprego realizadas durante a faculdade, afirma ele, nada tinha a ver com realizações acadêmicas ou com o currículo: “as entrevistas se resumiam a passar numa espécie de prova social – uma prova de pertencimento”. Era preciso ser alguém com quem é agradável pegar um avião, como disse um de seus entrevistadores.
Eu sempre pensei que quando você precisa de um trabalho, você pesquisa vagas na internet. E aí você submete uma dúzia de currículos. E aí você espera que alguém te ligue de volta. Se você tiver sorte, talvez um amigo coloque o seu currículo no topo da lista. Se você tem qualificação para um trabalho cuja demanda é alta, como contabilidade, talvez a procura seja mais fácil. Mas as regras são mais ou menos as mesmas. O problema é que absolutamente todo mundo que segue essas regras, falha. Aquela semana de entrevistas me mostrou que as pessoas de sucesso estão jogando um jogo completamente diferente. Elas não enchem o mercado de trabalhos de currículos, esperando que um empregador conceda a graça de uma entrevista. Elas fazem network. Elas mandam um e-mail para um amigo de um amigo para ter certeza que o nome deles vai receber a atenção que merece. Elas pedem aos tios que liguem para antigos colegas de faculdade.
Vance ressalta que não tinha capital social para adentrar essa realidade e termina o livro dizendo que “às vezes enxergo membros da elite com um desprezo primitivo – recentemente, um conhecido usou a palavra ‘confabular’ numa frase e eu queria gritar. Mas preciso reconhecer: seus filhos são mais felizes e mais saudáveis, suas taxas de divórcio são mais baixas, sua presença na Igreja mais alta e suas vidas mais longas. Eles estão ganhando de nós no nosso próprio jogo”.
Que esse tipo de literatura – na fronteira entre memória, autobiografia e autoficção – que tematiza a “trânsfuga de classe” esteja em alta revela, no mínino, algo socialmente partilhado entre diferentes posições do espectro político. Ela combina o sofrimento da exclusão com um certo fascínio (que beira a obsessão) pelo andar de cima e tem um tom confessional que encobre o ficcional presente em qualquer autobigrafia e que excita o voyeurismo cada vez mais acentuado pelo extermínio da privacidade produzido pelas redes sociais.
Talvez essa literatura tematize um desejo de pertencimento e dê lugar para um crescente ressentimento de classe num mundo no qual ninguém mais pertence. Como mostra Vance, a despeito de meia dúzia de frases neoliberais sobre o sonho americano que encontramos aqui e ali no livro, não há sequer competição no andar de cima e ele sabe disso. Quem está achando que vai lutar a batalha da meritocracia, já fracassou. Esse é seu conteúdo sociológico de verdade e um dos impulsos capazes de explicar a força da extrema-direita. Ela tem assumido abertamente que o sistema em que vivemos não funciona e tem declaramente construído uma crítica ao esclarecimento, como comento a seguir.
Apesar disso, parece-me que a ambiguidade da literatura da “trânsfuga de classe” também pode ser tributada à sua proximidade com a ideologia do self-made man – e que talvez deva ser analisada caso a caso a partir da posição do narrador na autoficção contemporânea. Essa ideia é obviamente muito mais explícita no livro de Vance do que em Ernaux e Eribon, por exemplo, mas ainda assim seria interessante perguntar o que configura o grande interesse nessa narrativa mesmo à esquerda. Vance narra os obstáculos de sua infância e juventude e reconhece que contou com a sorte para ultrapassá-los e, ao mesmo tempo, responsabiliza os pobres de sua comunidade hillbilly por sua pobreza. De qualquer maneira, seja à esquerda ou à direita, o interesse gerado por essa literatura está relacionado ao sonho da superação do social por uma via individual (não é à toa que esse tipo de literatura está tão em voga no mercado editorial contemporâneo). E, aqui, vale uma digressão: para colocar a questão em termos de crítica literária, a autoficção da trânsfuga de classe parece fazer o oposto do romance – também esta uma forma biográfica. Enquanto no romance, nos melhores casos (penso aqui no romance histórico, no romance da formação e da desilusão), a perda das ilusões do herói ou da heroína confere força à forma por permanecer verdadeiro à ideia de que não é possível uma saída individual para uma problema coletivo – ou, em outros termos, a saída individual de um problema que diz respeito à toda uma classe –, a literatura da trânsfuga de classe inverte o caminho e, por isso, tem um elemento mistificador – ela é, mesmo em suas melhores expressões, a história de uma exceção, que pode reforçar as ideologias de ascensão social que mantém, até hoje, o liberalismo em pé. Talvez esse apelo contemporâneo possa se explicar justamente pelo fato de que essa trânsfuga ocorra pela via da escrita: uma última promessa de meritocracia no capitalismo atual – muitas vezes também ideológica.
No caso de Vance, certamente é. O livro, assim como seu autor, é uma peça de propaganda. Ele foi escrito por incentivo, com supervisão e apoio institucional de Amy Lynn Chua, sua professora em Yale e também contou com o apoio de Peter Thiel, mentor de Vance e conhecido do meio político desde 2011. Thiel foi um dos primeiros investidores do Facebook, cofundador do PayPal, da Palantir Technologies e fundador da Founders Fund – logo, um dos maiores bilionários do Vale do Silício.
A opção de Trump por Vance continua a ser majoritariamente atribuída a essa aliança que ele afirma ter com a classe trabalhadora (sustentada pela história contada no livro), especialmente sua parcela branca do centro-oeste e sul dos Estados Unidos e, em parte, é disso de fato que se trata. Até mesmo uma parcela da esquerda tem achado que Vance não representa o capital corporativo. Vance de fato parece incorporar o espírito dos desclassificados, daqueles que sentem que foram deixados para trás pelo “progresso” neoliberal estadunidense. A conversão política dessas pessoas, no entanto, das simpatias democratas à MAGA, não é um dado sociológico natural e tampouco imediato. Elas constituem um dos maiores alvos da extrema-direita, que fazem dessas regiões e populações empobrecidas laboratórios de sua propaganda. Vale lembrar que esse tipo de técnica foi amplamente usado pelos nazistas em regiões com grandes níveis de desemprego, como Nuremberg, durante a República de Weimar – uma região proletária e social-democrata que se tornou (foi tornada) a sede do Partido Nazista e uma das maiores forças fascistas na região.
O mesmo se pode dizer de Ohio e de outros estados que oscilam entre a tradição democrata e a MAGA. O discurso de Vance foi talhado para ecoar nessas regiões. Nesse sentido, é possível dizer que Vance foi artificialmente produzido por alguém como Thiel como um “intelectual” e político orgânico do meio-oeste, mas para representar interesses de outra classe. Vance transformou sua história e seu discurso numa mercadoria política de alto valor no âmbito da extrema-direita. Isso sim pode ser chamado de política identitária: o vice de Trump vende a imagem de alguém que pertence cultural e subjetivamente à classe trabalhadora americana, mas na verdade atende aos interesses do capital.
Quando escreveu o livro, Vance já trabalhava na Mithril Capital, empresa de capital de risco de Thiel (que aparece até nos agradecimentos do livro como um dos leitores e mentores da narrativa). Em 2019, ele se mudou para Washington, onde abriu uma empresa no mesmo ramo chamada Marya Capital, que foi financiada por Thiel e outros bilionários como o ex-CEO da Google Eric Schmidt (que deixou a empresa para trabalhar no departamento de defesa dos EUA em 2016).
A relação entre ambos não para aí. Peter Thiel investiu dez milhões de dólares na candidatura de Vance para o Senado em 2022. De acordo com o jornalista e ensaísta James Pogue, Vance faz parte, junto com pessoas como Curtis Yarvin – sobre quem já escrevi aqui – do “Thielverso”, um grupo de “elite” de extrema-direita, uma espécie de ecossistema neofascista que o bilionário construiu ao seu redor e que não é equivalente à MAGA e ao QAnon:
Podcasters, postadores anônimos do Twitter, filósofos online, artistas e criadores […] conhecidos como “dissidentes”, “neorreacionários”, “pós-esquerdistas” ou a margem “heterodoxa” – embora eles todos sejam frequentemente agrupados por conveniência sob o título de Nova Direita da América. Eles têm um conjunto extremamente diversificado de antecedentes políticos, com influências que vão desde os monarquistas jacobitas do século XVII, aos críticos culturais marxistas, às chamadas feministas reacionárias e ao Unabomber, Ted Kaczynski, a quem por vezes se referem com afeto semi-irônico como Tio Ted. O que quer dizer que esta Nova Direita não faz parte do movimento conservador como a maioria das pessoas na América o entenderia.
Yarvin, o “guru” do grupo, é o filósofo profeta, como o chamam, uma espécie de Olavo de Carvalho que estudou na Ivy League e de quem Vance é amigo próximo. Ele fundou um movimento político neorreacionário intitulado “Esclarecimento Obscuro” [Dark Enlightenment]. Foi seu blog, Unqualified Reservations, que popularizou a teoria da red pill, do deep state, da burocracia estatal tomada pelas elites globalistas, etc. e foi dali que Steve Banon extraiu muitas de suas ideias. O discurso de Yarvin é uma espécie de pastiche neofascista de uma dialética do esclarecimento. Yarvin – e Vance segue muitas de suas ideias – é um crítico do progresso, da democracia liberal, da hegemonia tecnológica.
Segundo Pogue, Thiel passou a patrocinar não só candidatos, mas influenciadores e artistas de extrema-direita. Ele financiou e organizou a Convenção Nacional Conservadora em 2022 e buscou nos últimos anos tornar a direita “descolada” novamente. Em 2022, Thiel financiou um festival de filmes “antiwoke”, do qual Yarvin participou. Agora, diz Pogue, “Yarvin é um herói cultuado por muitos na multidão ultradescolada, que você frequentemente ouvirá ser chamada de “a cena”.
Um dos motes da campanha de Vance é justamente, “luta cultural é luta de classes” – outro aspecto que revela a sua ampla consciência do momento atual (e que parcela da esquerda ainda não quer reconhecer). Segundo um perfil de sua atuação no Senado que saiu no jornal POLITICO.
Depois de um ano em Washington, Vance está convencido de que se conservadores como ele vão completar a tomada do Partido Republicano que começaram com Trump, eles precisam fazer o que a família Koch e outros doadores libertários de renome fizeram no último meio século: construir um sistema amplo de think tanks, redes de doadores, instituições educacionais, programas profissionais e veículos de mídia para apoiar seus aliados ideológicos no Capitólio. E para fazer isso, eles precisam de aliados endinheirados como Thiel.
Apesar de ter doado alguns milhões para Trump em 2016, Thiel sempre foi reticente em conceder o seu apoio irrestrito ao ex-presidente e Vance era, antes de se candidatar para o senado, um “Trump, jamais”. Vance criticou o racismo de Trump e chegou até mesmo a chamar o homem laranja de “Hitler da América”. A aproximação com Trump, mediada por Thiel, que o levou para conhecer Trump em sua casa de Mar-a-Lago em 2021, foi necessária para que Vance fosse eleito para o Senado. Desde então, essa relação só cresceu.
O que esses fatos indicam é que, além de representar um aceno à classe trabalhadora branca, Vance também foi cuidadosamente forjado para atrair o Silicon Valley, que historicamente apoiou os democratas e agora se divide entre republicanos e democratas. O financiamento que Trump tem recebido de Elon Musk, David Sacks, Marc Andreessen, Joe Lonssdale, Doug Leone, entre outros, é evidência disso.
Tenho defendido aqui que as plataformas e as redes sociais – a indústria cultural digital contemporânea – tem cumprido um papel organizacional para a extrema-direita, permitindo que ela organize globalmente partidos digitais de massa. A indicação de Vance como vice de Trump revela algo além disso. Ciente da sua importância para o neofascismo, a Big Tech não quer apenas fornecer a infraestrutura e os mecanismos de engajamento; ela almeja estar representada no governo.
Embora seja – seguindo Yarvin – um aparente crítico do progresso tecnológico, do capital monopolista (expresso no apoio a algumas regras anti-truste), da desendustrialização e um homem ligado ao solo e à família, Vance está ali como capitalista de risco. Ele é contrário ao wokismo do assim chamado “setor progressista” da Big Tech (com várias críticas fantasiosas ao esquerdismo da Google e do ChatGPT) e à regulamentação da inteligência artificial. Adepto do conservadorismo libertário de Thiel e Yarvin, e entusiasta da criptomoeda – recentemente, votou por uma regra que dificulta a detenção de ativos digitais pelos bancos – ele deseja transformar, junto com Trump, a América na capital mundial das criptomoedas, bem como numa superpotência do Bitcoin (seguindo a trilha de Nayib Bukele, em El Salvador).
Vance é um novo elo político (e geográfico) entre o meio-oeste da MAGA, as elites financeiras de Nova York (Trump) e o capital de risco da Califórnia. Ele é novo (o mais novo candidato a vice-presidente da história), carismático e apresenta um perfil diferente e aparentemente inverso ao de Trump. Sua origem é a classe trabalhadora. Vance sabe vender a imagem de bom pai, marido dedicado e orgulhoso da inteligência da esposa, enquanto Trump enfrenta inúmeros processos de estupro e assédio sexual. Seu racismo (que existe e sem dúvida é uma plataforma política) não é tão óbvio quanto o do ex-presidente. Ademais, Vance tem excelentes relações com parte importante do Vale do Silício e a “intelectualidade” de extrema-direita que se organiza por lá, bem como com as universidades da Ivy League (que ele critica, mas nas quais também tem uma rede de apoio). Conforme noticiou a reportagem do POLITICO supracitada, Kevin Roberts, presidente da Heritage Foundation, o principal think tank conservador em Washington que assina o “Projeto 2025”, disse que Vance “com certeza será um dos líderes – se não o líder – do nosso movimento”. Além disso, por ter sido da Marinha e lutado na Guerra do Iraque, ele angaria a simpatia não só dos militares (algo que não está presente na figura de Trump), mas de toda sociedade americana que respeita seus “veteranos de guerra”. Vance é alguém com muito potencial para influenciar a política americana nos próximos anos e mostra que o trumpismo, após ser derrotado nas urnas na corrida de 2020, está se reconfigurando para atrair novos eleitores e perpetuar seu projeto.
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J.D. Vance: nova cara da ultradireita nos EUA. Artigo de Bruna Della Torre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU