05 Agosto 2024
"T.S. Eliot, o poeta a quem o espírito cristão deve obras literárias que marcaram a contemporaneidade, descreveu corretamente a crise religiosa moderna como uma generalizada 'incapacidade emocional'. À luz desta leitura da realidade, o problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos. Por conseguinte, abre-se aqui a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade. Por isso, no regresso da minha Viagem Apostólica ao Japão, quando me perguntaram o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente, respondi: 'creio que falte ao Ocidente um pouco de poesia'”, escreve o Papa Francisco na Carta sobre o papel da literatura na educação, especialmente na formação dos futuros padres.
A Carta é publicada pelo Vaticano no dia 04-08-2024.
Segundo o Papa Francisco, "Karl Rahner pode estabelecer um belo paralelo entre o sacerdote e o poeta: "só a palavra é intimamente capaz de libertar tudo o que mantém encarceradas as realidades não expressas: a mudez da sua orientação para Deus".
Inicialmente, tinha escrito um título alusivo à formação sacerdotal, mas depois pensei que o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão. Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.
Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso, e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro nos ajuda a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade. Talvez essa leitura abra novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da onipresença dos meios de comunicação, das redes sociais, dos celulares e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou falando. Não se trata de algo ultrapassado.
Ao contrário dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo e a margem e o tempo para “enriquecer” a narrativa ou para interpretá-la são geralmente reduzidos, o leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, ele o reescreve, amplia com sua imaginação, cria um mundo, usa suas capacidades, sua memória, seus sonhos, sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso lhe permite, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande seu universo pessoal.
Isso me leva a avaliar muito positivamente o fato de, pelo menos em alguns seminários, se ultrapassar a obsessão pelas telas – e pelas venenosas, superficiais e violentas fake news –, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a nos dizer tanto. Mas, em geral, é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. Efetivamente, esta é, muitas vezes, considerada como uma forma de passatempo, ou seja, como uma expressão menor de cultura que não faria parte do caminho de preparação e, portanto, da experiência pastoral concreta dos futuros sacerdotes. Com poucas exceções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A esse respeito, gostaria de afirmar que tal perspectiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.
Com esta carta, desejo propor uma mudança radical de atitude em relação à grande atenção que deve ser dada à literatura no contexto da formação dos candidatos ao sacerdócio. A esse respeito, considero muito eficiente o que diz um teólogo:
"A literatura [...] brota da pessoa no que tem de mais irredutível, no seu mistério [...]. É a vida que se torna consciente de si mesma quando, utilizando todos os recursos da linguagem, atinge a plenitude da expressão"[1].
De uma forma ou de outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com seus desejos e seus significados.
Aprendi isso nos tempos da juventude, com meus alunos. Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé. Ensinava aos dois últimos anos do ensino médio e tinha que fazer com que meus alunos estudassem El Cid. Mas eles não gostavam. Pediam para ler García Lorca. Por isso, decidi: em casa, estudariam El Cid, e, durante as aulas, abordaria os autores de que aqueles jovens mais gostavam. Claro que eles queriam ler obras literárias contemporâneas; porém, à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra seu próprio caminho[2]. Por exemplo, eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos chorando por nós mesmos: nosso vazio, nossas falhas, nossa solidão. Naturalmente, não estou pedindo para fazerem as mesmas leituras que eu fiz. Cada um encontrará os livros que falarão à sua própria vida e que se tornarão verdadeiros companheiros de viagem. Não há nada mais contraproducente do que ler por obrigação, fazendo um esforço considerável só porque alguém disse que é essencial. Não, devemos selecionar nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, orientação, mas também com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da vida.
Além disso, para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável. Com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que "a literatura e as artes [...] procuram dar expressão à natureza do homem" e "dar a conhecer suas misérias e alegrias, necessidades e energias"[3]. Na verdade, a literatura inspira-se na quotidianeidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como "a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida"[4].
Perguntemo-nos: como será possível alcançar o núcleo das culturas antigas e novas se ignorarmos, descartarmos e/ou silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que se captaram e se quiseram mostrar e evocar seus feitos e ideais mais belos, tal como suas violências, medos e paixões mais profundas? Como falar ao coração dos homens se ignorarmos, relegarmos ou não valorizarmos "essas palavras" com que quiseram manifestar e, por que não, revelar o drama do seu viver e sentir através de romances e poemas?
A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescor e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou. É uma atitude que a libertou da tentação do solipsismo ensurdecedor e fundamentalista que consiste em acreditar que uma certa gramática histórico-cultural tem a capacidade de exprimir toda a riqueza e profundidade do Evangelho[5]. Muitas das profecias de desgraça que hoje tentam semear desespero radicam precisamente neste aspecto. O contato com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou reduzir quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais.
Não é por acaso que o cristianismo primitivo tenha percebido bem a necessidade de uma relação estreita com a cultura clássica da época. Um Padre da Igreja Oriental como, a título de exemplo, Basílio de Cesareia, no Discurso aos Jovens, que escreveu entre 370 e 375, e provavelmente dirigiu aos seus sobrinhos, exaltava a preciosidade da literatura clássica – produzida pelos éxothen (“os de fora”) como ele chamava aos autores pagãos – tanto para a argumentação, ou seja, para os lógoi (“discursos”) a utilizar na teologia e na exegese, como para o próprio testemunho de vida, ou seja, para os práxeis (“atos, comportamentos”) a ter em conta na ascética e na moral. E concluía exortando os jovens cristãos a considerarem os clássicos como um ephódion (“viático”) para a sua instrução e formação, obtendo deles "proveito para a alma" (IV, 8-9). É precisamente deste encontro, do acontecimento cristão com a cultura daquele tempo, que emerge uma original reelaboração do anúncio evangélico.
Graças ao discernimento evangélico da cultura, é possível reconhecer a presença do Espírito na variegada realidade humana, ou seja, é possível captar a semente da presença do Espírito já plantada nos acontecimentos, sensibilidades, desejos, tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais. Podemos reconhecer uma abordagem semelhante, por exemplo, nos Atos dos Apóstolos, onde é mencionada a presença de Paulo no Areópago (cf. At 17, 16-34). Falando de Deus, Paulo diz: "É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: 'Pois nós somos também da sua estirpe'" (At 17, 28). Neste versículo, temos duas citações: uma indireta, na primeira parte, onde se cita o poeta Epiménides (séc. VI a.C.), e uma direta, citando Fenômenos do poeta Arato de Silo (séc. III a.C.), que canta as constelações e os sinais do bom e do mau tempo. Aqui neste ponto, "Paulo revela-se um 'leitor' de poesia e deixa intuir o modo como se aproxima ao texto literário, o que não pode deixar de levar a refletir sobre um discernimento evangélico da cultura. Ele é definido pelos atenienses como spermologos, que significa 'papagaio, tagarela, charlatão', mas literalmente quer dizer 'colecionador de sementes'. Assim, paradoxalmente, o que era um insulto parece uma verdade profunda. Paulo recolhe as sementes da poesia pagã e, abandonando uma atitude anterior de profunda indignação (cf. At 17, 16), chega a reconhecer os atenienses como 'os mais religiosos dos homens' e, naquelas páginas da literatura clássica deles, vê uma verdadeira preparatio evangelica"[6].
O que Paulo fez? Entendeu que a "literatura descobre os abismos que habitam o homem, enquanto a revelação, e depois a teologia, os retoma para mostrar como Cristo vem atravessá-los e iluminá-los"[7]. Em direção a esses abismos, a literatura é um "caminho de acesso"[8], que ajuda o pastor a entrar num diálogo fecundo com a cultura do seu tempo.
Antes de abordar as razões concretas pelas quais é importante promover a atenção à literatura no percurso formativo dos futuros sacerdotes, quero lembrar um pensamento sobre o atual contexto religioso: “O retorno ao sagrado e a busca espiritual que caracterizam a nossa época são fenômenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham que apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne” [9]. Portanto, a urgente tarefa de anunciar o Evangelho em nosso tempo exige dos fiéis e dos sacerdotes, em particular, o compromisso que permita a cada homem encontrar-se com um Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história. Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a “carne” de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor.
E, precisamente a este nível, o uso frequente da literatura pode tornar os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais ainda mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus, na qual se derrama toda a sua divindade, e anunciar o Evangelho de tal forma que todos, realmente todos, possam experimentar como é verdadeiro o que diz o Concílio Vaticano II: “na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” [10]. Não se trata do mistério de uma humanidade abstrata, mas do mistério daquele homem concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida.
Do ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda a adquirir um vocabulário mais amplo e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; ao mesmo tempo, permite que as pessoas aprendam a expressar suas narrativas de forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de déficit cognitivo e acalma o estresse e a ansiedade.
Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que conseguiram superar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.
Para tentar ainda mais encorajar a leitura, cito com prazer alguns textos de autores conhecidos, que nos ensinam tanto em poucas palavras:
Os romances desencadeiam “em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber” [11].
“Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de homens sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo. Como o céu noturno da poesia grega: vejo-o com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu a ver. Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim mesmo e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca” [12].
No entanto, não é minha intenção me deter exclusivamente neste nível de utilidade pessoal, mas refletir sobre as razões mais decisivas para reavivar o amor pela leitura.
Quando meu pensamento se volta para a literatura, lembro-me do que o grande escritor argentino Jorge Luis Borges [13] costumava dizer aos seus alunos: o mais importante é ler, entrar em contato direto com a literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos. E Borges explicava este pensamento aos seus alunos, dizendo-lhes que, talvez, no início compreendessem pouco do que estavam lendo, mas, em todo o caso, teriam escutado “a voz de alguém”. Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Caímos imediatamente no isolamento, entramos numa espécie de surdez “espiritual”, que também afeta negativamente nossa relação conosco mesmos e com Deus, por mais teologia ou psicologia que tenhamos conseguido estudar.
Neste caminho, que nos torna sensíveis ao mistério dos outros, a literatura faz-nos aprender a tocar os corações. Como não recordar aqui a palavra corajosa que, a 7 de maio de 1964, São Paulo VI dirigiu aos artistas e, portanto, também aos grandes escritores? Dizia: “Precisamos de vós. O nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o Nosso ministério é o de pregar e tornar acessível e compreensível, melhor, comovente, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E vós sois mestres nesta operação, que transforma o mundo invisível em fórmulas acessíveis, inteligíveis” [14]. Eis o ponto: a tarefa dos fiéis, e dos sacerdotes em particular, é precisamente a de “tocar” o coração do homem contemporâneo para que se comova e se abra diante do anúncio do Senhor Jesus. Neste esforço, a contribuição que a literatura e a poesia podem oferecer é de um valor inigualável.
T.S. Eliot, o poeta a quem o espírito cristão deve obras literárias que marcaram a contemporaneidade, descreveu corretamente a crise religiosa moderna como uma generalizada “incapacidade emocional” [15]. À luz desta leitura da realidade, o problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos. Por conseguinte, abre-se aqui a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade. Por isso, no regresso da minha Viagem Apostólica ao Japão, quando me perguntaram o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente, respondi: “creio que falte ao Ocidente um pouco de poesia” [16].
O que o sacerdote ganha com esse contato com a literatura? Por que é necessário considerar e promover a leitura dos grandes romances como uma parte relevante da formação sacerdotal? Por que razão, na formação dos candidatos ao sacerdócio, é importante recuperar e implementar a intuição, esboçada pelo teólogo Karl Rahner, de uma profunda afinidade espiritual entre o sacerdote e o poeta? [17]
Tentemos responder a essas questões ouvindo as considerações do teólogo alemão [18]. As palavras do poeta, escreve Rahner, estão “cheias de saudade”, são “portas que se abrem para o infinito, portas que se escancaram à imensidão. Evocam o inefável, tendem para o inefável”. A palavra poética “olha para o infinito, mas não pode dar-nos este infinito, nem pode trazer ou esconder em si Aquele que é o Infinito”. Efetivamente, isto é próprio da Palavra de Deus, e – continua Rahner – “a palavra poética invoca, portanto, a Palavra de Deus” [19]. Para o cristão, a Palavra é Deus, e todas as palavras humanas mostram traços de uma intrínseca saudade de Deus, tendendo para essa Palavra. Pode-se dizer que a palavra verdadeiramente poética participa analogicamente da Palavra de Deus, tal como a Carta aos Hebreus a apresenta de forma inovadora (cf. Heb 4, 12-13).
E é assim que Karl Rahner pode estabelecer um belo paralelo entre o sacerdote e o poeta: "só a palavra é intimamente capaz de libertar tudo o que mantém encarceradas as realidades não expressas: a mudez da sua orientação para Deus” [20].
Na literatura entram em jogo questões de forma de expressão e de sentido. Ela representa, portanto, uma espécie de ginásio de discernimento, que aguça as capacidades sapienciais de escrutínio interior e exterior do futuro sacerdote. O lugar onde se abre essa via de acesso à própria verdade é a interioridade do leitor, diretamente envolvido no processo de leitura. Aqui se descortina o cenário do discernimento espiritual pessoal, onde não faltarão angústias e até crises. Com efeito, são numerosas as páginas literárias que podem responder à definição inaciana de “desolação”.
“Chamo desolação a […] obscuridade da alma, perturbação, inclinação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam à falta de fé, de esperança e de amor; achando-se [a alma] toda preguiçosa, tíbia, triste, e como que separada de seu Criador e Senhor” [21].
A dor ou o tédio que se sentem ao ler certos textos não são necessariamente sensações más ou inúteis. O próprio Inácio de Loyola teve momentos de desolação em sua vida espiritual e na sua formação pessoal. Ao se deparar com dificuldades e provações, a literatura pode oferecer uma perspectiva enriquecedora e uma oportunidade para enfrentar e entender essas experiências. Assim, a literatura não é apenas uma fonte de prazer ou uma ferramenta de desenvolvimento intelectual, mas também um meio profundo de explorar e compreender as complexidades da vida e da experiência humana.
Assim se entende que o leitor não é o destinatário de uma mensagem edificante, mas uma pessoa que é ativamente solicitada a se encaminhar para um terreno instável, onde as fronteiras entre salvação e perdição não estão a priori definidas e separadas. O ato de ler é, portanto, como um ato de “discernimento”, graças ao qual o leitor é implicado na primeira pessoa como “sujeito” da leitura e, ao mesmo tempo, como “objeto” do que lê. Ao ler um romance ou uma obra poética, o leitor experimenta efetivamente “ser lido” pelas palavras que vai lendo. Deste modo, o leitor é semelhante a um jogador em campo: faz o jogo acontecer, ao mesmo tempo em que o jogo acontece através dele, na medida em que está totalmente envolvido naquilo que faz.
No que diz respeito ao conteúdo, é necessário reconhecer que a literatura – segundo a célebre imagem cunhada por Proust – é como “um telescópio” apontado para os seres e as coisas, indispensável para medir “a enorme distância” que o cotidiano abre entre a nossa percepção e o conjunto da experiência humana. “A literatura é como um laboratório fotográfico, no qual as imagens da vida podem ser processadas de modo a revelarem seus contornos e nuances. Eis a ‘utilidade’ da literatura: ‘desenvolver’ as imagens da vida”, levar-nos a interrogar sobre seu significado. Serve, em suma, para fazer eficazmente a experiência da vida.
Na verdade, nossa visão ordinária do mundo é como que “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos de nosso agir exercem sobre nós. O próprio serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se um imperativo que orienta nossas forças e nossa atenção apenas para os objetivos a alcançar. Mas, como nos recorda Jesus, na parábola do semeador, a semente precisa cair em terra profunda para amadurecer frutuosamente ao longo do tempo, sem ser sufocada pela superficialidade ou pelos espinhos (cf. Mt 13, 18-23). Assim, o risco é cair na busca de uma eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade. Por isso, é necessário e urgente contrabalançar essa inevitável aceleração e simplificação de nossa vida cotidiana, aprendendo a nos distanciar do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro.
É necessário recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento com a realidade, não diretamente orientadas para um resultado; formas nas quais seja possível deixar emergir o infinito excesso do ser. Distância, lentidão e liberdade são características de uma abordagem da realidade que encontra precisamente na literatura uma forma de expressão, não exclusiva, mas privilegiada. A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente pode se manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim.
Uma outra bela imagem para descrever o papel da literatura vem da fisiologia do corpo humano e, em particular, do ato da digestão. Neste caso, o modelo é a ruminatio bovina, como afirmavam o monge Guillaume de Saint-Thierry, do século XI, e o jesuíta Jean-Joseph Surin, do século XVII. Este último falava do “estômago da alma” e o jesuíta Michel De Certeau apontava para uma verdadeira “fisiologia da leitura digestiva”. Ou seja, a literatura nos ajuda a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo seus significados e tensões fundamentais.
No que diz respeito à forma do discurso, acontece o seguinte: ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de “ver com os olhos dos outros”, adquirindo uma amplitude de perspectiva que alarga nossa humanidade. Isso ativa em nós o poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente sozinha.
A maravilhosa diversidade do ser humano e a pluralidade diacrônica e sincrônica das culturas e dos saberes configuram-se, na literatura, numa linguagem capaz de respeitar e expressar sua variedade e, ao mesmo tempo, traduzem-se numa gramática simbólica de sentido que as torna inteligíveis para nós, porque partilhadas, não estranhas. A originalidade da palavra literária consiste no fato de expressar e transmitir a riqueza da experiência, sem a objetivar na representação descritiva do conhecimento analítico ou no exame normativo do juízo crítico, mas enquanto conteúdo de um esforço expressivo e interpretativo para dar sentido à experiência em questão.
Quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, à sua maneira, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta seguir em frente apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta. À medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias, tornamo-nos mais sensíveis às experiências dos outros, saímos de nós mesmos para entrar nas suas profundezas, conseguimos compreender um pouco mais suas lutas e desejos, vemos a realidade com seus olhos e acabamos por nos tornar companheiros de viagem. Assim, mergulhamos na existência concreta e interior do vendedor de frutas, da prostituta, da criança que cresce sem pais, da mulher do pedreiro, da idosa que ainda acredita que vai encontrar seu príncipe. E podemos fazê-lo com empatia e, por vezes, com tolerância e compreensão.
Jean Cocteau escreveu a Jacques Maritain: “A literatura é impossível, temos de sair dela, e é inútil tentar sair dela com a própria literatura, porque só o amor e a fé nos permitem sair de nós mesmos”. Será que saímos realmente de nós mesmos se os sofrimentos e as alegrias dos outros não ardem em nosso coração? Prefiro lembrar-me que, como cristão, nada do que é humano me é indiferente.
Além disso, a literatura não é relativista porque não nos despoja de critérios de valor. A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: “Porque reparas no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?” (Mt 7, 3).
Na violência, na limitação ou na fragilidade dos outros, temos a possibilidade de refletir melhor sobre a nossa. Ao dar ao leitor uma visão ampliada da riqueza e da miséria da experiência humana, a literatura educa seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade e a condição humana através do julgamento. Este é certamente necessário, mas nunca se deve esquecer seu alcance limitado: com efeito, jamais deve traduzir-se na sentença de morte, no cancelamento, na supressão da humanidade em prol de uma árida totalização da lei.
O olhar da literatura forma o leitor para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinômica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.
Com essas breves reflexões, espero ter evidenciado o papel que a literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes.
Neste sentido, a literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que às vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra. A palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, enfim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de espera d’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5).
A força espiritual da literatura recorda, por fim, a primeira tarefa confiada por Deus ao homem: a tarefa de “dar nome” aos seres e às coisas (cf. Gn 2, 19-20). A missão de guardião da criação, atribuída por Deus a Adão, passa primeiramente pelo reconhecimento da sua própria realidade e do sentido da existência dos outros seres. Também o sacerdote está investido dessa tarefa original de “dar nome”, dar sentido, fazer-se instrumento de comunhão entre a criação e a Palavra feita carne e seu poder de iluminar todos os aspectos da condição humana.
A afinidade entre o sacerdote e o poeta manifesta-se assim nesta misteriosa e indissolúvel união sacramental entre a Palavra divina e a palavra humana, dando vida a um ministério que se torna serviço cheio de escuta e compaixão, a um carisma que se traduz em responsabilidade, e a uma visão do verdadeiro e do bem que se abre como beleza. Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: “Quem realmente aprende a ver, aproxima-se do invisível”.
Dado em Roma, em São João de Latrão, no dia 17 de julho do ano 2024, décimo segundo do meu Pontificado.
Papa Francisco
[1] Latourelle, “Letteratura”, in R. Latourelle - R. Fisichella, Dizionario di Teologia Fondamentale (Assisi 1990), 631.
[2] A. Spadaro, “J. M. Bergoglio, il “maestrillo” creativo. Intervista all’alunno Jorge Milia”, in La Civiltà Cattolica 2014 I, 523-534.
[3] Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 62.
[4] Rahner, “Il futuro del libro religioso”, in Nuovi Saggi II (Roma 1968), 647.
[5] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 117.
[6] Spadaro, Svolta di respiro. Spiritualità della vita contemporanea (Milano), 101.
[7] Latourelle, “Letteratura”, 633.
[8] São João Paulo II, Carta aos Artistas (4 de abril de 1999),
[9] Francisco, ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 89.
[10] Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.
[11] Proust, À la recherche du temps perdu – Du côté de chez Swann (Paris 1914), 104-105.
[12] S. Lewis, Lettori e letture. Un esperimento di critica (Milano 1997), 165.
[13] J.L. Borges, Oral (Buenos Aires 1979), 22.
[14] São Paulo VI, Homilia durante a Santa Missa com os Artistas (Capela Sistina, 7 de maio de 1964).
[15] S. Eliot, The Idea of a Christian Society (London 1946), 30.
[16] Conferência de imprensa durante o voo de regresso da Viagem Apostólica de Sua Santidade Francisco à Tailândia e ao Japão, 26 de novembro de 2019.
[17] A. Spadaro, La grazia della parola. Karl Rahner e la poesia (Milano 2006).
[18] Rahner, “Sacerdote e poeta”, in La fede in mezzo al mondo (Alba 1963), 131-173.
[19] Ibid., 171
[20] Ibid.,
[21] Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais.
[22] Ibid., 335.
[23] Ibid.
[24] K. Rahner, “Sacerdote e poeta”, op. cit., 141.
[25] A. Spadaro, La pagina che illumina. Scrittura creativa come esercizio spirituale (Milano 2023), 46-47.
[26] Proust, À la recherche du temps perdu. Le temps retrouvé (Paris 1954), Vol. III, 1041.
[27] Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 14.
[28] De Certeau, Il parlare angelico. Figure per una poetica della lingua (Secoli XVI e XVII) (Firenze 1989), 139 s.
[29] A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 16.
[30] S. Lewis, Lettori e letture, op. cit., 165.
[31] Cocteau - J. Maritain, Dialogo sulla fede (Firenze 1988), 56. Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 11-12.
[32] Celan, Microliti (Milano 2020), 101.
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Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na educação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU