31 Julho 2024
Há cinquenta anos, suas linhas simbolizaram o novo, uma revolução arquitetônica no coração de Paris, com seus respiradouros gigantes, tubos de aço e paredes de vidro que evocavam uma refinaria. Projetado pelos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers, o Centro Pompidou, ou melhor, Beaubourg, sem o artigo, em homenagem ao bairro em que foi construído, era para ser um local de vanguardas e experimentações, um espaço "polivalente e multidisciplinar", como se dizia na época, dedicado a todas as artes, pintura, música, cinema e design. Com um museu, um laboratório de idiomas inovador e uma biblioteca que teria permitido, finalmente, o acesso direto às prateleiras, sem fichas para preencher, sem barreiras e sem longas esperas.
A entrevista é de Piero Pisarra, publicada pela revista italiana Jesus, junho de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Agora, esse símbolo da modernidade envelheceu. Ele precisará de um longo trabalho de restauração: cinco anos ou talvez mais. Antes de fechar, no terraço com vista para a Ville lumière - a Torre Eiffel claramente visível a oeste, o Sacré-Coeur ao norte - encontro Michel de Certeau, que adorava o Centro Pompidou e foi encarregado, em 1983, de elaborar um relatório redesenhando suas tarefas e missão.
Nas outras mesas do café, estudantes e turistas aproveitam o clima primaveril para fazer uma pausa ao ar livre.
Historiador, filósofo, membro da Escola Freudiana de Paris, da corrente lacaniana de psicanálise, antropólogo, semiólogo, teólogo... Michel de Certeau é o "jesuíta padrão", escreveu um jornalista do Le Monde."É verdade que na Companhia somos polivalentes como o Centro Pompidou [ri]. Mas não acho que eu represente um 'padrão'".
Piero Pisarra é jornalista e sociólogo, lecionou no Instituto Católico de Paris na Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, e na Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais - ESSEC. É autor, entre outros livros, de La mosca nel quadro. L’arte svelata (2021), Europa una mappa interiore (Roma 2019); Il giardino delle delizie. Sensi e spiritualità (Roma 2009). Ele colabora com o jornal La Croix e com o semanário italiano Famiglia Cristiana e com a revista mensal Jesus.
*A entrevista faz parte de uma série intitulada "Entrevistas Impossíveis", em que as perguntas são respondidas pelo próprio jornalista.
Sei que, para o senhor, as definições são muito restritas. "Inapreensível" lhe assentaria melhor, para o senhor que fez do inapreensível uma figura teológica.
O outro é o inapreensível que desmonta os nossos planos, os nossos hábitos, o estrangeiro, o desmancha-prazeres que nos força a um deslocamento, a uma mudança de lugar e de olhar, uma vez que nunca está onde se espera encontrá-lo. É isso que os místicos fazem na Igreja, incômodos, importunos, mas indispensáveis, porque nos remetem ao Outro, que avança incógnito, desconhecido e não reconhecido, aquele de quem o evangelista João (1,11) diz: ‘Veio para o que era seu, e os seus não o receberam’.
Falando de místicos, o senhor também, como o jesuíta do século XVII Jean-Joséph Surin, a quem dedicou suas primeiras pesquisas, é um "peregrino das fronteiras".
O místico está sempre na fronteira, no limite entre o sagrado e o profano, o espiritual e o material. E uma escolha arriscada, sabendo, no entanto, que o sentido brilha no fundo do risco. Pierre Favre, da Savoia como eu, que estava entre os primeiros companheiros de Inácio, foi outro desses peregrinos das fronteiras, nunca farto de aventuras e nunca parado. Não sou um místico, as fronteiras que cruzo são aquelas entre as disciplinas humanísticas.
O senhor nasceu em 1925 em Chambéry, entrou para a Companhia de Jesus em 1950 e foi ordenado sacerdote em 1956. Estudou teologia no famoso centro de Fourvière, em Lyon, de onde saíram os principais homens da chamada théologie nouvelle que prepararia o Concílio Vaticano II. E depois se orientou para a história.
Se não fosse uma metáfora cruenta, eu diria que o historiador é um caçador furtivo que caça em terras alheias, com os instrumentos de outros. Esses instrumentos para mim foram a linguística, a antropologia, a sociologia e a psicanálise, que estudei sem, no entanto, praticá-la.
O Instituto Católico de Paris, no entanto, negou-lhe o doutorado em teologia, apesar de seus inúmeros escritos sobre o assunto.
E como não os entender? [ri]. Do seu ponto, eu era um dinamitador, alguém que estourava as regras de dentro e questionava o próprio objeto da disciplina. A contribuição das ciências humanas ainda era vista com desconfiança. Mas essa negação não me impediu de lecionar a história das mentalidades e a antropologia religiosa em Genebra e depois em San Diego, na Universidade da Califórnia. Finalmente, em Paris.
O atual Papa o considera um de seus pensadores de referência, juntamente com Henri de Lubac, outro jesuíta, de quem o senhor foi aluno. Ele disse isso no início de seu pontificado, na primeira entrevista ao padre Spadaro, da Civiltà Cattolica. Ficou surpreso?
Temos a mesma admiração por Pierre Favre, de quem lhe falei.... São Pierre Favre, canonizado por Francisco em 2013. Para mim, ele é o modelo do ‘padre reformado’, para quem a vida interior e a ação no mundo são uma coisa só. Francisco insiste na ‘Igreja em saída’: quando eu falava sobre isso, parecia que eu queria atentar à unidade da estrutura, favorecendo a dispersão no mundo; agora é uma necessidade vital.
E a proximidade com o Padre de Lubac, mais tarde Cardeal? O senhor sabe que outro jesuíta, o chileno Carlos Alvarez, dedicou um livro muito bem documentado aos seus desacordos?
Desacordos teológicos entre dois amigos animados por uma idêntica paixão pela audácia da fé. Por um estranho jogo da Providência, coube a mim, quando faleceu, lembrar Henri de Lubac nas páginas do Le Monde. Em 1985, o jornal havia me pedido um retrato do cardeal para ser publicado quando necessário. E foi aquele texto que foi publicado em 5 de setembro de 1991. O Padre de Lubac se considerava, antes de tudo, um homem de Igreja e, em segundo lugar, um teólogo: sua adesão era total, sem concessões, ‘a uma Igreja que deixa abertas todas as portas pelas quais mentes diferentes podem chegar à mesma verdade’. Isso não o impediu de dizer que ‘a ortodoxia é a coisa mais necessária do mundo e a menos suficiente’. Sua erudição e inteligência produziram aquela obra-prima que é Histoire et Esprit, com a pesquisa sobre os quatro sentidos das Escrituras, desde os Pais da Igreja até os teólogos medievais.
No entanto, o cardeal não lhe poupava críticas.
Ele me inseriu, em seu livro sobre A posteridade espiritual de Joaquim de Fiore, entre os joaquimitas contemporâneos [sorri]. Mas eu estava em boa companhia, ao lado dos teólogos da libertação, do francês Maurice Bellet, do teólogo protestante alemão Jürgen Moltmann e muitos outros. O cardeal contestava a minha ideia de uma ‘ruptura instauradora’ em relação à proclamação cristã. Com aquela fórmula, eu estava enfatizando a novidade radical do cristianismo em relação ao Antigo Testamento. E essa ênfase foi interpretada como uma forma de considerar caduco aquilo que, ao contrário, é parte do depósito da fé, tendo bem em mente o que é dito no Evangelho de Mateus (5,17): ‘Não vim destruir a lei ou os profetas; não vim para destruir, mas para cumprir’".
Mas então por que "joaquimita"?
"Henri de Lubac estava se referindo à teologia da história e à ideia das três idades formuladas pelo "abade Joaquim, de espírito profético dotado ", que Dante colocou no Paraíso (XII, 140-141): a idade do Pai, a idade do Filho e a idade do Espírito, sendo esta última a dos monges, místicos e profetas. E assim, devido à minha paixão pela linguagem dos místicos e pelos sinais do Espírito espalhados pela história, encontrei-me na companhia de perigosos ‘irmãozinhos’ medievais da moda, como os irmãos Berrigan e outros jovens dos campi estadunidenses que se manifestavam contra a guerra no Vietnã e os estudantes europeus de 1968. Quase duzentos anos após a tomada da Bastilha, era emocionante testemunhar a ‘tomada da palavra’: uma nova geração estava se expressando com uma liberdade sem precedentes, até mesmo na Igreja. Aquela confusão assustou muita gente.
Não o Cardeal Marty, o Arcebispo de Paris, que correu para se encontrar com os estudantes nas barricadas em 1968.
Outros se enrijeceram. Eles viam a 'tomada da palavra' na Igreja como um trauma, como um ataque ao Magistério. Mas a crítica, no fim das contas benévola, do Padre de Lubac foi motivada por outra coisa. O teólogo jesuíta havia passado sua vida investigando o cerne da mensagem cristã, eu estava explorando as margens; ele adotava as ferramentas e os métodos clássicos da exegese e da pesquisa teológica, eu estava experimentando a utilidade da linguística, da psicanálise e da antropologia estrutural.
Hoje, os dois caminhos não estão mais em contraste.
Não mais, ainda que às vezes retornam os velhos reflexos, os enrijecimentos e os formalismos que mortificam o Espírito.
Qual é o seu sonho para a Igreja de amanhã?
Sonho com uma Igreja menos autorreferencial, menos preocupada consigo mesma, com seu próprio funcionamento, e mais atenta às margens, uma Igreja que no outro, no estrangeiro, no sem-teto, no migrante, veja o rosto do Salvador. Uma Igreja em movimento, nas periferias da história, onde o que nós consideramos fundamental é posto à prova no banal, no comum, nas feridas e nos dramas da existência. Uma Igreja que se assemelhe ao hospital de campanha de que fala Francisco.
O que o senhor acha do atual sínodo?
É um processo necessário. Como muitas outras instituições, a Igreja tende a se transformar em uma administração, em uma burocracia do sagrado, com seus próprios funcionários, guardiões da autoridade, da disciplina, das regras. Refletir sobre as estruturas e as reformas indispensáveis a ajuda a não se reduzir a administração, a entender que ela não existe para si mesma e que sua razão de ser é o outro, com maiúscula e minúscula.
"Nunca sem o outro", o senhor escreveu em seu ensaio e repetiu também nesta nossa conversa. O outro é o leitmotiv de toda a sua pesquisa teológica.
Sei que estou insistindo e talvez me repetindo. Mas a experiência do outro é formidável e tremenda, análoga à do Deus da Bíblia, que não podemos encontrar sem morrer. Ela não é um fato sentimental ou ideológico, como naqueles falsos ‘diálogos’ que, no final, negam o outro porque pretendem seduzi-lo, neutralizá-lo ou evitá-lo. O outro em questão não é um selvagem a ser colonizado, uma criança a ser educada, um louco a ser normalizado ou um passado a ser integrado. A alteridade é a forma pela qual retorna o ‘ladrão’ noturno do Evangelho. É sempre um encontro com o absoluto, um cara a cara obscuro e arriscado, a oportunidade permanente de um despertar e de uma conversão ao estrangeiro que irrompe quando menos se espera em cada nossa casa ou recinto. A experiência cristã nos diz que, nesse encontro, uma parte de nós mesmos é chamada a morrer, para se abrir para a vida oferecida pelo desconhecido. É a graça de participar de uma vida que vai além, que não está destinada a ser trancada, colocada a dar fruto em segurança, no cofre de um banco eterno, mas que, ao contrário, deve ser ‘arriscada’, doada... perdida e, assim, ganha, de acordo com a lógica do Evangelho.
Mas se quiser ser audível, o anúncio cristão - diz o senhor - deve acertar as contas com a linguagem, aliás, as linguagens, da modernidade.
A experiência cristã só existe se for incorporada em algumas práticas e em uma linguagem. Hoje, estamos assistindo ao descrédito da linguagem em toda parte. Os significados se desenvolvem mecanicamente, saturando a atmosfera. Não expressam mais convicções, porque o próprio meio de produção, o medium - que pode ser uma das redes sociais, o Tiktok ou outros - é ele mesmo mensagem, como já foi dito por estudiosos respeitados. A multiplicação dessas formas padronizadas de comunicação amplifica o ruído de fundo, com o efeito paradoxal de tornar impossível toda palavra que não seja feita de... silêncio. Mas a Igreja, que conhece o valor do silêncio, não pode se contentar com ele. O desafio gigantesco é tornar sua própria linguagem audível e compreensível nas formas da modernidade.
Em seu funeral, pediu que a música Je ne regrette rien, de Édith Piaf, fosse tocada. O senhor não se arrepende de nada?
Não. Como cristão e jesuíta, tentei ser fiel à máxima inaciana: ‘Buscar Deus em todas as coisas’. E eu também espero ser lembrado como um peregrino das fronteiras".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Michel De Certeau. O jesuíta peregrino das fronteiras. Entrevista com Michel De Certeau por Piero Pisarra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU