08 Julho 2022
O jornal Avvenire, 07-06-2022, publicou amplos trechos de um texto inédito do então cardeal Joseph Ratzinger, escrito em 1996 por ocasião do centenário do nascimento do teólogo francês Henri de Lubac: “Começar a crer significa sair do isolamento e entrar no ‘nós’ dos filhos de Deus”.
O texto na íntegra está contido agora no livro do filósofo Antonio Russo, intitulado “Antiche e moderne vie della solidarietà. Da Maurice Blondel a Papa Francesco” [Antigas e modernas vias da solidariedade. De Maurice Blondel ao Papa Francisco] (Ed. Unicopli, 228 páginas).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Falar de De Lubac a 100 anos do seu nascimento é uma tarefa bastante árdua. Impulsionado por um impressionante fervor e por uma incansável pesquisa, ele nos deixou uma produção imensa. Ele nos deu contribuições de história da teologia de grande relevo; impulsionou-nos decisivamente a renovar os estudos patrísticos com a grandiosa coletânea “Sources chrétiennes”; publicou obras fundamentais e inovadores como “Catholicisme” (1938), “Surnaturel” (1946) ou “Corpus Mysticum” (1944); finalmente, a sua produção marcou de maneira duradoura a teologia católica contemporânea, fazendo-o quase se elevar como figura emblemática do labor que levou ao Vaticano II [...].
Gostaria de me deter sobretudo em dois âmbitos temáticos que deveriam ser suficientes para atestar a presença direta ou indireta, mas nada rapsódica, da reflexão de Lubac na minha obra. Em 1936, tomando posição contra as tendências individualistas e, portanto, egoístas do seu tempo, De Lubac chegava à afirmação de que “le catholicisme est essentiellement social. Social, non pas seulement par ses applications dans le domaine des institutions naturelles, mais d’abord en lui-même, dans l’essence de sa dogmatique. Social, à tel point que l’expression ‘Catholicisme’ social aurait toujours dû paraître un pur pléonasme” [o catolicismo é essencialmente social. Social, não apenas pelas suas aplicações no âmbito das instituições naturais, mas acima de tudo em si mesmo, na essência da sua dogmática. Social a tal ponto de que a expressão ‘Catolicismo’ social deveria sempre parecer um puro pleonasmo].
Depois, ele continuava o seu discurso, sempre em chave anti-individualista, afirmando que a unidade do corpo místico de Cristo, “unité surnaturelle, suppose une première unité naturelle, l’unité du genre humaine” [unidade sobrenatural, supõe uma primeira unidade natural, a unidade do gênero humano].
Desse ponto de vista, toda infidelidade “à l’Image divine que l’homme porte en lui, toute rupture avec Dieu, est de même coup un déchirement de l’unité humain” [à imagem divina que o ser humano traz consigo, toda ruptura com Deus é ao mesmo tempo uma ruptura da unidade humana] [...].
Como pude assinalar em várias das minhas obras, por exemplo na “Introdução ao cristianismo”, mas também em um texto mais recente, aqui ele salientava fortemente, e com plena consciência, “uma lei fundamental que remonta às raízes mais profundas do cristianismo, uma lei que se manifesta de maneiras sempre novas (...) nos vários níveis de realização cristã (...) o ‘nós’ com as suas estruturas consequentes pertence por princípio à religião cristã. O crente como tal nunca está sozinho: começar a crer significa sair do isolamento e entrar no ‘nós’ dos filhos de Deus; o ato de adesão a Deus revelado no Cristo é também sempre união com aqueles que já foram chamados. O ato teológico é, como tal, sempre também um ato eclesial, que tem uma estrutura social própria”.
Um pouco mais adiante, ao tirar algumas consequências do mesmo e idêntico discurso, eu afirmava que “a base mais profunda desse ‘nós’ cristão é que Deus mesmo é um ‘nós’. O Deus professado pelo credo cristão não é um solitário autopensamento de pensamento, não é um Eu absoluto e impartícipe, fechado em si mesmo, mas é unidade na relação trinitária do eu-tu-nós, assim como o ser-nós, como estrutura divina do ser, antecipa hoje o nós no mundo, e uma semelhança com Deus se encontra, em princípio, sempre referida a esse ‘nós’ divino” [...].
Estes últimos textos me dão a oportunidade de fazer referência a outro âmbito temático, longamente abordado e retomado por De Lubac. Em particular, ao considerar, nos escritos de 1936, com rigorosa consequencialidade lógica, os aspectos sociais do dogma, ele chega, e não pode deixar de chegar, a rejeitar toda doutrina individualista de evasão, de fuga do mundo e da sociedade.
Por isso, ele diz que o cristianismo “affirme à la fois, indissolublement, pour l’homme une destinée transcendante, et pour l’humanité une destinée commune. De cette destinée toute l’histoire du monde est la préparation” [afirma, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, para o ser humano, um destino transcendente e, para a humanidade, um destino comum. Toda a história do mundo é a preparação desse destino].
Consequentemente, em estreita ligação com o aspecto social da realidade cristã, há também e não menos importante outra característica que é a histórico. O tempo, então, não é mais um devir dessubstancializado, e os fatos históricos não são mais fenômenos puros e simples, mas sim acontecimentos, porque a vontade divina é operante neles para conduzir a humanidade à meta final. Deus mesmo, portanto, age na história e se revela por meio dela. E, por isso, “les réalités historiques ont donc une profondeur, elles sont à comprendre spirituellement, et en revanche, les réalités spirituelles sont en devenir, elles sont à comprendre historiquement. L’histoire tout entière devient, entre Dieu et chacun de nous, le truchement obligé” [as realidades históricas, portanto, têm uma profundidade, devem ser compreendidas espiritualmente e, por sua vez, as realidades espirituais estão em devir, devem ser compreendidas historicamente. A história inteira se torna, entre Deus e cada um de nós, a porta-voz obrigatória].
E esse princípio, como o próprio De Lubac adverte, “commande toute l’exégèse des Pères de l’Église” [comanda toda a exegese dos Padres da Igreja], porque eles admitem que há uma “force spirituelle de l’histoire” [força espiritual da história]. E a realidade de que se fala tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, precisamente por ter se encarnado, é tanto espiritual quanto histórica; ela não é apenas eterna, mas também histórica.
Aqui, trata-se mais precisamente do sentido espiritual da Escritura. A ele, De Lubac dedicou esforços consideráveis, até mesmo vários tomos pesados, e tinha em mente continuar a obra; porém, hoje parece ser o mais caduco entre aqueles por ele aprofundados. Mas, olhando bem, as coisas não são bem assim. E acho que enfatizei isso adequadamente em um recente ensaio meu sobre “A interpretação bíblica em conflito: problemas do fundamento e da orientação da exegese contemporânea”. Nele, e precisamente ao tirar as conclusões do discurso, eu afirmava textualmente: “Nos últimos 100 anos a exegese realizou grandes coisas, mas também cometeu grandes erros; e esses erros quase se tornaram dogmas acadêmicos. Atacá-los é considerado por muitos estudiosos até um sacrilégio”. E, consequentemente, convidava a uma nova reflexão de fundo sobre o método exegético e sobre os seus pressupostos filosóficos.
Ao fazer isso, formulava desiderata bem específicos. Em particular, escrevia que não podemos nos limitar ao domínio da pura e bruta facticidade, isto é, ao princípio da evidência científica da metodologia das ciências naturais, que, entre outras coisas, absolutamente não se fundamenta necessariamente na estrutura da realidade, mas, pelo contrário, se for assumido na filosofia e na teologia, deriva daí algo insosso e um contrassenso.
Em vez disso, é preciso não considerar “a exegese de modo unilateral, sincrônico, como se faz para as descobertas das ciências naturais (...) A exegese deve reconhecer que é uma disciplina histórica. A sua história faz parte daquilo que ela é, ela deve sempre integrar as posições que alcançou de forma crítica na totalidade da sua história; assim, conseguirá, por um lado, reconhecer o caráter relativo dos seus próprios julgamentos; e, por outro lado, poderá penetrar melhor em uma compreensão real, embora sempre incompleta, da palavra bíblica”. E eu concluía o discurso afirmando que essa autocrítica deve levar também a “um exame das alternativas filosóficas essenciais do pensamento humano. A esse respeito, parece insuficiente considerar apenas os últimos 150 anos. Mais uma vez, é preciso introduzir na discussão as grandes propostas do pensamento patrístico e medieval”.
De fato, eu assinalava que “o primeiro pressuposto de toda exegese é aceitar a Bíblia como um único livro”, para ver a sua íntima coesão interna “que não resulta de uma abordagem unicamente literária”. Caso contrário, a Bíblia continua sendo um livro selado. É necessário, então, “compreender (...) de modo novo que a fé é verdadeiramente aquele espírito no qual nasceu a Escritura e que, portanto, é também a única porta para penetrar no seu interior” [...].
De Lubac acentuou as propostas do pensamento patrístico e medieval no terreno da exegese, e isso desde os seus primeiríssimos escritos, sobretudo por influência de Blondel [...]. Entre outras coisas, foi o próprio De Lubac quem repropôs amplamente e com força o sentido espiritual da Escritura [...]. Para ele, a convicção do alcance objetivo e metafísico, no fundo, do método científico é um erro que deve ser combatido. As ciências, diz ele, são vistas como que fundamentadas na estrutura da realidade como tal, mas se trata de uma doença, de um “culte d’idole” [culto de ídolos]. Elas se limitam apenas a argumentos extrínsecos, a estabelecer um vínculo totalmente extrínseco entre as coisas, com base no acaso ou na necessidade, “sans faire acunement pénétrer à intérieur de son objet” [sem penetrar de forma alguma no interior do seu objeto]. Servindo-se delas, pretendeu-se construir um “système de la foi naturelle” [sistema da fé natural] ou “foi scientifique” [fé científica], e, consequentemente, também uma teologia e uma exegese científicas incontestáveis, mas o resultado, dizia ele, é uma “manque de sens historique... philosophie rudimentarire” [falta de sentido histórico... filosofia rudimentar], que deu origem apenas a uma “théologie mesquine” [teologia mesquinha].
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Henri de Lubac e a Igreja do “nós”. Artigo de Joseph Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU