15 Setembro 2021
"De Lubac traz de volta a uma mentalidade fundamentalmente alegórica os textos que os estudiosos de sua época, como Beryl Smalley, procuravam valorizar como sinais de uma atitude 'moderna', historicista, científica, muitas vezes arriscando-se a deturpar a alteridade específica daquele milênio. Nesse sentido, são exemplares as correções de rota que o jesuíta francês impõe aos lugares-comuns do suposto 'laicismo' do humanismo", escreve Francisco Stella, em artigo publicado por Il Manifesto, 12-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existem empreendimentos editoras realizados sem muitas preocupações de conveniência comercial imediata ou remota, simplesmente porque são necessários no plano cultural ou para salvar um património em perigo de extinção, que, no entanto, depois descobrem que tem mercado, que interceptam uma necessidade e se tornam um sucesso não buscado nem previsível e até mesmo repetido. Entre estes, inesperadamente, o projeto, iniciado nos anos 1970 pela editora Paoline e depois retomado nos anos 1990 pela Jaca Book organizado por Elio Guerriero e ao mesmo tempo pelas Editions du Cerf em Paris, da "Opera omnia" em mais trinta volumes de Henri de Lubac, gigante da teologia católica do século XX, que inclui obras já indisponíveis logo após a primeira publicação. Hoje alguns desses títulos estão novamente esgotados e a Jaca está produzindo mais uma edição, com o apoio da Faculdade de Teologia de Lugano: há pouco foram publicados o terceiro (pp. XX-761, tradução de Paolo Stàcul) e o quarto tomo (pp. XX -638, tradução de Ezio Brambilla) da "Exegese Medieval. Os quatro sentidos da escritura", ou seja, daquilo que pode ser considerado a sua obra-prima, por sua vez, partes da seção quinta das Opera denominadas com um pouco de exagero de Escritura e Eucaristia (na realidade dedicada quase inteiramente à interpretação da Bíblia).
Azzolino Chiappini na introdução e Ezio Brambilla no posfácio destacam os aspectos mais espirituais e técnicos do percurso intelectual que com "Catholicisme: les aspectos sociaux du dogme" e com Supernaturel colocaram o jesuíta francês sob a severa observação da lente pontifícia como expoente daquela nouvelle théologie confundida com "modernismo", a forma de teologia que, abrindo-se às conquistas da cultura contemporânea, era considerada contraposta ao tomismo canonizado da instituição e que como tal fora condenado desde Pio X como um perigo para os coerência da fé e da unidade da Igreja.
Na realidade, De Lubac não defendia nenhuma forma de modernismo, mas era o principal porta-voz e o mais profundo conhecedor de um dos principais instrumentos- chave daquele movimento: a historicização da teologia (e, portanto, potencialmente, sua relativização) por meio da análise de fontes patrísticas e medievais. Por isso, nos anos 1950, assim que se recuperou dos riscos da Resistência cristã ao antissemitismo (que será o título de seu trigésimo volume), teve que cumprir a suspensão do ensino em Lyon e a retirada de suas obras. Mas foram anos de irresistíveis mudanças até mesmo dentro da Igreja, e com João XXIII e seus sucessores De Lubac foi primeiro readmitido como professor, depois declarado um "especialista" do Concílio Vaticano II e, por fim, nomeado cardeal.
Os que tratam da cultura medieval, muitas vezes sem desconfiar desse perfil polêmico e exigente e sem necessariamente nutrir interesses confessionais ou profissionais pelos eventos eclesiásticos, o conhecem justamente pelos quatro volumes da Exegese Medieval, que guiam o leitor no labirinto hermenêutico das Escrituras bíblicas como eram entendidas na Idade Média, isto é, como fonte de uma compreensão fortemente criativa baseada em relações de derivação lógica e analógica e em um mecanismo, tanto sublime quanto monstruoso, de concatenação semiótica das realidades históricas e materiais com os vários graus daquelas espirituais, do tipológico ao moral, do sacramental ao anagógico, com todas as suas infinitas supra e subespécies.
Nascida de uma catalogação massiva e meticulosa, possibilitada justamente pela proibição de atividades públicas, dos comentários bíblicos dos Padres da Igreja gregos e latinos e de centenas de autores medievais, essa exploração, que De Lubac conduziu com leituras diretas e integrais em uma época ainda desprovido de instrumentos eletrônicos, levou-o à convicção de que a variedade infinita e a natureza sistemática relativa da hermenêutica medieval derivam sua força motriz do arranjo intelectual de Orígenes de Alexandria (185-232), o maior teorizador da interpretação alegórica das Escrituras. A alegoria (também chamada de interpretação psíquica, mística ou espiritual ao longo do tempo), usada no mundo pós-clássico para a interpretação filosófica dos poemas homéricos, havia se tornado o instrumento estrategicamente necessário para ligar o Antigo Testamento recebido da cultura judaica ao Evangelho e a todo o Novo Testamento, que devia se demonstrar cumprimento, realização, "efetivação" do Antigo. O Adão do Éden era "figura" ou melhor, "antítipo" do "tipo" que o completava, isto é, Cristo, assim como a Arca o era da Igreja e o dilúvio o era do batismo e assim por diante.
O expediente da "tipologia", já evidente nas autorreferências de Jesus relatadas pelos Evangelhos e em sua interpretação paulina, torna-se o decodificador que conecta o Cristianismo e o Judaísmo nos pontos de possível atrito e, junto com as técnicas que todos conhecemos pelo menos no Convívio de Dante, como a tropologia (interpretação moral), a anagogia (realidades últimas) e outras ainda, ele desenvolve uma série de equivalências figurais às vezes baseadas em elementos linguísticos, como as etimologias dos nomes, às vezes em semelhanças comportamentais (como para os Bestiários) ou na recursão textual, às vezes em derivações ousadas de detalhes secundários: cores, formas, sons, até mesmo concatenados (árvore do conhecimento> árvore da Arca de Noé> árvore de Salomão> árvore da cruz e até da Fênix).
Cria-se assim uma rede de conexões diretas e indiretas, estruturais ou acessórias, que, emergindo da Bíblia, se torna o alfabeto comum de significação filosófica, artística e literária: aquela que Umberto Eco definiu pansemiose, o processo pelo qual cada coisa significa outra, e esta outra ainda e nada nunca é limitado à sua superfície aparente. Daí a onipresença do simbólico que permeia a mentalidade medieval e que levou primeiro aos vitrais góticos e ao alegorismo grandioso do Roman de la Rose ou da Comédia ou de Pers the Plowman, então, por vias nem tão transversas, ao simbolismo de poesia europeia contemporânea e à raiz antidogmática do desconstrucionismo, como uma infinidade de estudos têm mostrado.
Essa proliferação criativa de analogias, que suscita um debate inesgotável sobre a busca do sentido legítimo, fundamento de todos os outros, cresceu sobre si mesma, comentário após comentário, com a ruminação que reavalia o texto, valorizando-o cada vez de maneira diferente, a ponto de "espremer demais seu úbere": assim, a exploração da exegese bíblica conduzida por de Lubac torna-se uma exploração do pensamento medieval e de sua variabilidade e originalidade avassaladoras e subestimadas.
A exegese medieval continua sendo o único instrumento que conecta Gregório o Grande a Berno de Reichenau, Rupert de Deutz a Pedro de La Celle, Pascásio Radberto a Hugo de São Vítor, Alano de Lille a João de Salisbury e assim por diante em uma lista tão densa que até mesmo os índices dos dois volumes não conseguem completá-la sem perder alguma coisa.
Gemas solitárias inesperadas também ficam retidas na rede de De Lubac, como uma pequena história dos debates públicos realizados ao longo da Idade Média entre teólogos judeus e cristãos, que sozinha acaba com muitos clichês, e uma lista de vestígios de conhecimento do grego (e da imagem cultural da greicidade na Idade Média latina) que mesmo a grande reconstrução de Walter Berschin havia negligenciado, bem como a história da tentativa heroica de Ricardo de São Vítor de explicar as medidas irracionais do templo descritas na visão de Ezequiel com uma interpretação "literal" técnico-matemática que havia despertado o entusiasmo dos racionalistas: mas aqui também De Lubac traz de volta a uma mentalidade fundamentalmente alegórica os textos que os estudiosos de sua época, como Beryl Smalley, procuravam valorizar como sinais de uma atitude "moderna", historicista, científica, muitas vezes arriscando-se a deturpar a alteridade específica daquele milênio.
Nesse sentido, são exemplares as correções de rota que o jesuíta francês impõe aos lugares-comuns do suposto "laicismo" do humanismo e, em particular, sobre Erasmo de Rotterdam. E também não falta uma análise diacrônica dos métodos de crítica e autocrítica textual e dialética desenvolvidos na Idade Média justamente pelos exegéticos bíblicos: encontramos, através da cascata de citações que constituem a parte "medieval" do método De Lubac. (passagens que pacientemente os valorosos editores traduzem muito bem uma a uma: e são milhares), uma representação das diferentes atitudes psicológicas do intelectual bíblico, que não poupa nem mesmo a caricatura. A parte "filológica" do método é representada, por sua vez, pela recontextualização de cada citação no texto de onde provém, refutando as absolutizações de segmentos que haviam levado outros estudiosos a tirar conclusões errôneas de citações isoladas.
Hoje, o peso teológico e eclesial dessas discussões evaporou quase completamente, mas a atenção aos efeitos culturais e artísticos das leituras medievais da Bíblia cresceu enormemente, como chave indispensável para compreender tanto a comunicação simbólica da época, desde os vitrais de Saint-Denis às pinturas de Bosch, quanto seus efeitos de longo prazo na cultura ocidental; e nada melhor do que as milhares de páginas da Exegese medieval pode nos orientar no emaranhado de suas raízes, ou melhor, nos ajudar a nos perder em sua irredutibilidade a qualquer sistema.
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De Lubac, a floresta dos símbolos e os sentidos das Escrituras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU