03 Julho 2021
Foi assinalado, logo depois do dia 15 de março, que o Responsum da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o tema da “bênção das pessoas do mesmo sexo” utilizava argumentos bastante frágeis e não conseguia captar a complexidade e a articulação das questões em jogo.
Riccardo Saccenti, que é um dos maiores especialistas no tema da “lei natural”, comenta alguns aspectos da “resposta”, comparando-os com a reflexão decenal que Henri De Lubac dedicou à relação entre natureza e sobrenatureza, natureza e graça.
Trata-se de uma contribuição alta e importante para o desenvolvimento de um debate que encontra no responsum mais um estímulo do que uma palavra definitiva.
O artigo foi publicado em Come Se Non, 02-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Notas sobre De Lubac (à luz do responsum sobre a bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo)
por Riccardo Saccenti
O recente responsum da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo levanta o tema da relação que vincula, por um lado, a ordem natural – julgada como expressão de uma realidade objetiva e positivamente ordenada a receber a graça – e, por outro, a prática moral e o agir da Igreja.
O cerne teológico da argumentação utilizada pela Congregação repousa na ideia de que subsiste uma relação não só harmoniosa, mas consequente entre o agir da graça e a natureza, em razão dos “desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados em Cristo Senhor”. Na raiz dessa visão, há uma questão que está enraizada no nível da metafísica e tem reflexos profundos sobre a antropologia teológica.
Trata-se do ponto nodal do nexo entre natureza e sobrenatureza, objeto de intensa discussão teológica nas décadas centrais do século XX, em particular em torno do esforço de historicização feito por Henri de Lubac. Essa discussão, relida hoje à luz das dúvidas levantadas pelo responsum, é rica em oportunidades de reflexão teológica e filosófica e em perspectivas de pesquisa, que nos obrigam a nos defrontar com uma inteligência da traditio que, em um círculo hermenêutico com o presente e as suas reivindicações, revela a sua pluralidade estrutural e lança luz sobre opções possíveis, bem como sobre linhas de continuidade inesperadas.
O livro “Supernaturel. Un étude historique” [Sobrenatural. Um estudo histórico] foi publicado em 1946 e representa uma análise histórico-crítica definida do nascimento e da evolução da noção de “natureza pura”, conduzida com os instrumentos da crítica histórica.
É um texto que é seguido pelo ensaio “Le mystére du Surnaturel” [O mistério do Sobrenatural] (1949) e, após uma década de duras polêmicas e censuras eclesiásticas, pelo volume homônimo de 1964 e pela monografia dedicada ao agostinianismo na era moderna (1965).
Essa ampla produção que Lubac dedica à questão da relação entre natureza e sobrenatural, pode ser considerada como uma tentativa única, desdobrada ao longo de quase 20 anos e que visa a repensar a relação entre natureza e sobrenatural, reconsiderando a “natureza pura” dentro de uma história mais ampla das tradições teológicas do cristianismo.
O cerne dessa reflexão era a exigência de voltar a se confrontar com o modo como os grandes teólogos dos séculos XII-XIV haviam abordado a relação entre “natura” e “supernaturalis”, com particular atenção à posição de Tomás de Aquino, cujo “sistema” Lubac tinha contraposto explicitamente ao da “natureza pura” como uma alternativa conceitualmente mais simples e sólida.
Ao mesmo tempo, foi dedicada uma grande atenção aos autores dos séculos XV-XVI, em cujos escritos o padre jesuíta havia reconhecido a presença in nuce do sistema da “natureza pura”, rastreado depois nos seus eixos de sustentação na crista entre os séculos XVI e XVII, no meio das polêmicas teológicas suscitadas pelas obras de Baio e Jansen.
Fundamentado na interpretação dos escritos do Aquinate, o sistema da “natureza pura” tinha em sua base uma antropologia caracterizada pela presença de uma dupla finalidade. Segundo a manualística teológica, Tomás de Aquino teria defendido a existência de uma dupla finalidade para o ser humano: por um lado, um fim natural, ligado à natureza pura, que consistiria em conquistar uma condição de felicidade totalmente mundana; por outro, um fim sobrenatural, que consistia na visão beatífica, que é fruto da intervenção da graça de Deus que o torna possível.
Entre as duas finalidades, não haveria nenhuma relação de necessidade recíproca: a primeira seria compatível com a natureza do ser humano, enquanto a segunda seria inalcançável pelo ser humano com as suas próprias forças e tornada efetiva e possível apenas em razão do agir do Criador.
No que diz respeito ao conceito de “natureza pura”, De Lubac sublinha que este se transformou com base em um sistema de pensamento em resposta às crises produzidas pelas controvérsias baianistas e jansenistas entre os séculos XVI e XVII.
Segundo o padre jesuíta, a problemática da “natureza pura” se joga totalmente dentro do agostinianismo moderno, como passagem problemática de interpretação da herança de Agostinho, a cujas doutrinas tanto Baio quanto Jansen recorrem com uma certa fidelidade.
Tal atitude em relação ao Hiponate, observa De Lubac, tornou as posições dos dois autores solidárias entre si, quase como as duas partes de um único bloco doutrinal heterodoxo que considerava o estado primitivo de Adão como um estado natural, depois corrompido pelo pecado e necessitado da intervenção da graça.
A consequência dessa abordagem era a impossibilidade de uma “gratuidade” e “liberdade” na obra da graça divina, que, em certo sentido, era necessitada pelo estado corrupto do ser humano pós-lapsário.
A elaboração de uma doutrina da “natureza pura” se insere nesse quadro histórico, como parte de um processo cultural bem datado cronologicamente, que certamente tem as suas fontes na tradição patrística e nos escritos de Tomás de Aquino, mas que não remonta, na sua gênese conceitual, nem à época de Agostinho nem à escolástica medieval.
A ideia de “natureza pura” encontraria espaço pela primeira vez na obra do cardeal Caetano, para depois ser assumida e desenvolvida nas décadas seguintes até se tornar um verdadeiro sistema de relações entre natureza e sobrenatural com os maiores autores da segunda escolástica.
A reflexão teológica anterior ao século XVI, ao contrário, havia abordado a questão da relação entre as duas ordens de uma maneira diferente, como Lubac tenta esclarecer na segunda parte do seu ensaio. Por meio de uma longa e analítica visão geral dos textos, o estudioso jesuíta tenta traçar o quadro do modo como o problema era discutido pelos autores cristãos a partir da era patrística e depois ao longo de todo o período da escolástica medieval.
O traço caracterizador da posição dos Padres, no juízo de Lubac, é a consciência de que a natureza humana criada por Deus é imperfeita e, portanto, ordenada à realização de uma perfeição que tem o seu modelo no próprio Deus. Trata-se de uma abordagem de fundo que Lubac encontra nos textos de Anselmo de Aosta e de Bernardo de Claraval, assim como nas “Sentenças” de Pietro Lombardo e, em geral, em todos os maiores autores do século XII.
Em relação à tradição patrística, Lubac nota um momento de virada com a passagem para o século XIII, isto é, para o momento em que a reflexão teológica cristã se encontra tendo que enfrentar a delicada passagem da introdução do aristotelismo no discurso teológico, causa daquela que o estudioso define em termos de uma “tentação” que se coteja significativamente na questão da possível assimilação das inteligências separadas de Aristóteles com as hierarquias angelicais descritas por Dionísio, o Areopagita.
O problema específico do status das substâncias angelicais, observa Lubac, levantava, de modo mais geral, a questão da possibilidade de pecar. Se concebidas em termos das inteligências separadas aristotélicas, de fato, essas criaturas não poderiam ter pecado, por serem necessitadas no seu agir. O estudo do status das substâncias angelicais, portanto, levantava a questão mais geral da relação entre liberdade e impecabilidade.
O panorama dos debates teológicos que animam o século XIII é traçado por Lubac como o pano de fundo problemático sobre o qual se deve ler a formação da posição de Tomás de Aquino. O teólogo jesuíta evidencia uma evolução na posição do dominicano, analisando os seus escritos segundo uma ordem cronológica que, do comentário às Sentenças, passando pelas Quaestiones disputatae de Veritate, a Summa contra Gentiles e o Compendium theologiae, chega às formulações mais maduras das Quaestiones disputatae de Malo e da Summa Theologiae.
A partir da reconstrução histórica oferecida nas páginas centrais de “Surnaturel” emerge uma visão da relação entre natureza e sobrenatural marcada pela ideia de que a criação inteira está naturalmente exposta ao risco do pecado e da culpa, e que isso justifica a conversio in Deum, a conversio in id quod est supra naturam, como necessária à salvação da criatura.
O quadro da relação entre as duas ordens que Lubac identifica nos escritos do Aquinate é aquele no qual são sistematizados os frutos de uma pesquisa que, já a partir de Anselmo de Aosta, havia distinguido entre atos naturais necessitados e atos não naturais e não necessitados, entre um appetitus naturalis e um appetitus liber da vontade.
Como observa Lubac, Tomás, nisso, é herdeiro e continuador da tradição de pensamento que o precede e da qual assume plenamente a linguagem e os conceitos fundamentais. Ao mesmo tempo, porém, o Aquinate mostra uma plena originalidade, na medida em que, no seu discurso, os termos supra naturam e supernaturalis adquirem uma posição de destaque em relação a seus predecessores e contemporâneos.
A distinção que isso acarreta entre natureza e sobrenatural, nas obras do teólogo dominicano, não envolve, de modo algum, observa o jesuíta, a ideia de uma suficiência da natureza e, portanto, uma distinção entre o Deus da ordem natural e o Deus da ordem sobrenatural, isto é, entre o Deus criador e o Deus que opera mediante a graça.
Tal distinção é antes fruto de uma específica contingência histórico-doutrinal que remonta ao fim do século XVI, na qual a distinção entre natureza e sobrenatural é fixada claramente para dar conta da gratuidade da intervenção da graça.
A partir dos escritos de Tomás, em vez disso, emerge a clara e evidente convicção de que toda criatura espiritual, isto é, dotada de razão, é em si mesma livre e sujeita ao risco de pecar.
O quadro que é assim fixado é o de uma distinção entre natureza e sobrenatural, que se desenrola em termos de uma continuidade entre os dois planos. Os termos naturalis e sobrenaturalis, nota-se, não estão em contradição, como emerge da constatação, própria do Aquinate, de que a natureza humana é caracterizada por um natural desiderium de ver Deus. Isso cria uma continuidade entre os dois planos, que se fundamenta em uma visão antropológica na qual, nota Lubac, é central a ligação entre aristotelismo e patrística, a natureza concebida como expressão de propriedade e fonte de atividade, e a teologia da Imago Dei dos Padres.
A fusão desses dois elementos percorre toda a obra de Tomás e é a moldura de uma visão da natureza humana orientada à visio beatífica como seu fim próprio. E tal tensão do ser humano, da criatura racional, ao seu próprio fim natural é livre e autônomo, não necessitado. Não há, portanto, para o ser humano uma dupla finalidade, natural e sobrenatural, mas um único fim ao qual ele tende em virtude de uma inclinatio naturalis, de um desejo natural de ver Deus.
O estudioso jesuíta começa a especificar que, dentro da tradição patrística, assim como nos textos dos autores medievais e de Tomás de Aquino, não há aquela distinção e oposição entre ordem “abstrata” e ordem “histórica” que, em vez disso, é estabelecida na modernidade e que se traduz na formulação da noção de “natureza pura”. Pelo contrário, a existência de uma distinção entre natureza e sobrenatural é aquela entre duas esferas contíguas em razão da única finalidade dos seres racionais: a visão beatífica que é finalidade sobrenatural.
O exame dos textos e dos documentos, segundo o horizonte histórico reconstruído por Lubac, indica no século XVI o momento em que a doutrina da “natureza pura” é formulada e, portanto, desenvolvida, em resposta a uma crise contingente que a teologia católica atravessa.
Por si só, porém, a doutrina da “natureza pura” não parece ser necessária para explicar as modalidades da relação entre criatura e Criador, na medida em que o espírito criado dotado de razão é naturalmente capax Dei, como sugere o pensamento do Aquinate na reconstrução de Lubac. A relação entre natureza e sobrenatural é então conjugada pelo teólogo jesuíta utilizando a categoria do “mistério” que dá conta de uma tensão irredutível entre os dois termos constitutiva do ser humano.
A pesquisa de Lubac, assim, enfatiza a necessidade, para o saber teológico, de orientar a sua interrogação sobre o ser humano a partir da Escritura. E é isso que, no início dos anos 1970, o teólogo francês desenvolve a partir do conteúdo da Oratio de hominis dignitate, de Pico della Mirandola, em que o caráter racional do ser humano se desenvolve a ponto de explicar que o fato de ser imagem de Deus faz da natureza humana uma realidade indeterminada em si mesma, que se define com base no agir da faculdade intelectiva e da sua acolhida ou não da obra da graça.
O livro “Pic de la Mirandole” (1974) marca uma retomada e, em certo sentido, um desenvolvimento posterior da questão da relação entre natureza e sobrenatural do ponto de vista da história do pensamento teológico.
Lubac traça nele o perímetro de um Pico profundamente enraizado na inteligência da grande tradição teológica escolástica, incluindo o Aquinate, a ponto de enxertar na noção de ser humano criado à imagem e semelhança de Deus uma verdadeira releitura da antropologia e dos seus fundamentos metafísicos.
A imago Dei, nó crucial também para Tomás, é lida aqui como a chave de leitura da natureza humana, que emerge assim desvinculada da noção de natureza pura e da ideia de uma ordem físico-biológica que a qualifica completamente. Em vez disso, o ser humano, que se caracteriza em razão da sua racionalidade e, portanto, também por uma vida moral que é o resultado de uma determinação racional, é irredutível ao dado físico, isto é, unicamente às características que são próprias da esfera corpórea.
Pelo contrário, o corpo torna-se parte essencial de uma integralidade da pessoa na qual a liberdade – uma liberdade que o é por ser determinada pelo intelecto prático – faz da natureza algo de aberto ao mistério do sobrenatural. A natureza humana, portanto, é algo que, em si mesma, não é completa, mas, pelo contrário, pode se determinar em razão da opção pela transcendência.
O estudo sobre Pico de 1974, portanto, completa o longo itinerário de pesquisa sobre o sobrenatural por parte de Lubac, abrindo o horizonte a uma visão da relação entre divino e humano na qual a liberdade do segundo assume um valor essencial para o agir do primeiro. É o fato de a natureza humana determinar a si mesma mediante o uso da racionalidade, portanto fora de esquemas predeterminados, que a torna capax Dei e, portanto, um “lugar teológico”, no qual é possível o agir da graça. Um agir que tem um duplo valor: certamente é princípio de humanização daquilo que, na criação, se dispõe a acolher o amor de Deus, mas é também espaço no qual é possível ler e compreender a fé crida à luz daqueles sinais dos tempos que florescem na vida humana.
E talvez seja esse o motivo da grande atenção de muitos, principalmente jovens, à esfera da afetividade e do amor relacional que anima o debate destas primeiras décadas do século XXI.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Secondo natura” e “contro natura”: De Lubac e o responsum. Artigo de Riccardo Saccenti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU