01 Junho 2021
"Hoje os sodomitas não são mais queimados, mas na Igreja ainda se continua a considerar que as relações homossexuais 'são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência triste de uma rejeição de Deus e que 'os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. Eles são contrários à lei natural'", escreve Alberto Maggi, sacerdote e teólogo, biblista, frei da Ordem dos Servos de Maria, em artigo publicado por Il Libraio, 28-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alberto Maggi, frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou na Pontifícia Faculdade de Teologia Marianum e Gregoriana de Roma e na École Biblique et Archéologique française de Jerusalém.
Antes que o húngaro Karl-Maria Kertbeny cunhasse o termo homossexualidade em 1869, na Igreja não se falava de homossexuais, mas de sodomitas, com referência ao lendário episódio narrado no livro do Gênesis. Sodoma, a principal cidade da pentápolis cananeia, florescia "como o jardim do Senhor" (Gn 13,10) e por isso foi escolhida por Ló quando se separou de Abraão (Gn 13,12). Mas "os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores contra o Senhor" (Gn 13,13).
O profeta Ezequiel, para quem os pecados de Sodoma eram "soberba, fartura de pão e abundância de ociosidade ", acusa os habitantes da cidade de não estenderem a mão aos pobres e desamparados, de terem se tornado soberbos e de cometerem o que é abominável ao Senhor"(Ez 16,49-50); no Livro da Sabedoria é precisamente a falta ao sagrado dever da hospitalidade o motivo do castigo divino: "Não quiseram acolher hospedes desconhecidos... haverá algo a mais que um castigo qualquer para aqueles que acolheram mal os estrangeiros" (Sb 19,14.15) Por não encontrar nem mesmo dez justos naquela cidade (Gn 18:31), o Senhor decidiu cancelá-los da face da terra.
A gota d’água que desencadeou a ira do Deus de Israel foi quando Ló hospedou dois anjos uma noite. Os homens da cidade, sabendo disso, "cercaram a casa, desde o moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros” e pediram a Ló que deixasse seus hóspedes saírem para que pudessem abusar deles (Gn 19,4-5) . Ló não quis consentir, nem tanto por uma questão de moralidade, mas porque o hóspede é sagrado e o dono da casa é o responsável pela sua segurança até a custo de sua própria vida (Sl 23,5). Ló está disposto a ceder aos desejos dos habitantes de Sodoma as “duas filhas que ainda não conheceram homens; fora vo-las trarei, e fareis delas como bom for aos vossos olhos; somente nada façais a estes homens, porque por isso vieram à sombra do meu telhado” (Gn 19, 8).
Mas a multidão tentou arrombar a porta. Felizmente, os anjos intervieram e levaram Ló e todos os seus parentes, abrindo o caminho a Deus para desencadear sua ira mortal, de fato “"O Senhor fez então cair sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e de fogo, vinda do Senhor, do céu. E destruiu essas cidades e toda a planície, assim como todos os habitantes das cidades e a vegetação do solo" (Gn, 19,24-25). Um episódio semelhante pode ser lido no Livro dos Juízes e diz respeito à cidade de Gibeá, perto de Belém. (Jz 19,11-30).
Um levita, viajando com sua concubina e uma de suas servas, sem encontrar acomodação, aceitou a hospitalidade de um velho generoso. Também aqui, como em Sodoma, alguns homens da cidade, sabendo disso, cercaram a casa e pediram ao dono: "Tira para fora o homem que entrou em tua casa, para que o conheçamos”. O velho, apelando ao sagrado dever da hospitalidade, recusou, mas disse que se dispunha a conceder a eles tanto a filha, que era virgem, como a concubina, afirmando: "humilhai-as a elas e fazei delas o que parecer bem aos vossos olhos, porém a este homem não façais essa loucura"(Jz 19,24). A situação foi resolvida pelo levita, que pegou sua concubina e a deu aos homens que assediavam a casa, que "abusaram ela toda a noite até pela manhã", até que ela acabou morrendo (Jz 19,25).
Também neste episódio a transgressão não diz respeito à sexualidade, mas ao dever sagrado da hospitalidade. A truculenta conclusão do episódio é que o levita depois esquartejou o corpo da mulher em doze pedaços com uma faca e os enviou como um aviso a todo o território de Israel ... É surpreendente que no episódio de Gibeá, ao contrário daquele de Sodoma, não há punição divina para os estupradores, mas apenas a vingança dos israelitas, que evidentemente haviam bem aprendido do Senhor e agora agiam por sua conta, com um terrível massacre que deixou vinte e cinco mil cem mortos no campo (Jz 20,35.46).
A partir desses episódios, que pertencem à lenda e não à história, a Igreja Católica elaborou uma teologia que chegou a qualificar a sodomia como o pior dos pecados, merecedora como a cidade de Sodoma, de ser punida com o fogo. Não podendo se basear para esse juízo sobre o ensinamento de Jesus, que nada diz sobre ele, os únicos frágeis alicerces da Sagrada Escritura sobre os quais a Igreja construiu sua doutrina contra os sodomitas foram alguns versículos do livro de Levítico, onde lemos: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é” (Lv 18,22); “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles"(Lv 20,13).
É eloquente a ausência de uma condenação semelhante contra as mulheres: as proibições não dizem respeito à sexualidade, mas à procriação, pois se contrapunha ao mandamento divino "Frutificai e multiplicai-vos" (Gn 1,28). Segundo a cultura da época, de fato, era o homem que gerava o filho, enquanto a mulher era apenas o recipiente que recebia o sémen para, depois, a seu tempo dar à luz, mas não colocava nada de seu (cf. Is 45,10). Também se tentou justificar a proibição de relações entre pessoas do mesmo sexo com base no que está escrito na Epístola aos Romanos, onde Paulo fala tanto contra as mulheres que "trocaram suas relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza", como contra os homens, que "abandonaram as relações naturais com as mulheres, e se inflamaram de paixão uns pelos outros, cometendo atos indecentes, homens com homens” (Rm 1,26-27).
Como não existia a noção de homossexualidade, ou seja, a normal atração que uma pessoa pode ter por outra do mesmo sexo, Paulo via esse comportamento como um desvio, baseando-se no que ele considerava fosse a "relação natural". Suas opiniões sobre o assunto têm o mesmo valor de quando afirma "Ou não vos ensina a mesma natureza que é desonra para o homem ter cabelo crescido?" (1 Cor 11,14), identificando o conceito de natureza com a cultura, que varia de acordo com as populações.
Sobre esses instáveis alicerces foi construída a doutrina repressiva da Igreja que, depois de períodos alternados de tolerância e repressão, com o pontificado do Papa Pio V (1568), assumiu formas desumanas contra os sodomitas, que eram presos, torturados, queimados, pelo que o próprio Pio V definiu um "horrível crime" a ser reprimido com o maior zelo possível. Muitas medidas repressivas diziam respeito "aos clérigos que são culpados deste crime hediondo e que não temem pela morte de suas almas", para eles o papa decide "que sejam entregues à severidade da autoridade secular, que aplica a lei civil. .... para serem submetidos ao suplício, nos termos da lei apropriada que pune os leigos afundados em tal abismo" (Pio V, Constituição Horrendum illud Scelus, de 30 de agosto de 1568, in Bullarium Romanum, t. IV, c . III, p. 33).
A obediente autoridade secular pôs em prática a vontade do Papa ao condenar e queimar pessoas culpadas apenas de terem amado, podendo contar com o apoio da fanática pregação do clero, que considerava o atroz castigo da fogueira como sendo quista pelo próprio Jesus quando, referindo-se à videira, disse que toda vara que não desse fruto devia ser cortada, lançada e queimada no fogo (Jo 15,6). Se para Bernardino de Siena (1380-1444), que tinha uma fixação por esse tema, não existia pecado mais grave no mundo "do que o da maldita sodomia" (Predica XXXIX), para Girolamo Savonarola (1452-1498) era preciso queimar na fogueira os sodomitas como sacrifício de doce cheiro a Deus.
Hoje os sodomitas não são mais queimados, mas na Igreja ainda se continua a considerar que as relações homossexuais "são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência triste de uma rejeição de Deus”(Declaração Persona humana da Congregação para a Doutrina da Fé, 29 de dezembro de 1975) e que“ os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. Eles são contrários à lei natural” (Catecismo, art. 2357).
Mais cedo ou mais tarde a Igreja, na medida em que se converter à boa nova de Deus para cada pessoa, deixará de atar "fardos pesados e difíceis de suportar sobre os ombros dos homens” (Mt 23,4; At 15,10 ) e compreenderá que aos olhos de Deus "nenhum homem deve ser considerado profano ou impuro" (Atos 10,28), pois existem apenas as suas criaturas a quem ele ama incondicionalmente e às quais ele não pedirá contas sobre quem elas amaram, mas apenas se amaram.
Nos dias 11 e 21 de junho de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o evento A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente os pressupostos teológicos, antropológicos e morais subjacentes à resposta negativa da Congregação para a Doutrina da Fé à bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo e suas implicações pastorais para as comunidades eclesiais.
A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate
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O horrível crime. Artigo de Alberto Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU