19 Março 2021
"No Novo Testamento há uma evidente reticência ao tratar de José de Nazaré, marido de Maria e pai de Jesus. Tanto nas cartas de Paulo quanto nos outros autores do Novo Testamento não há nenhuma menção a José, mas o que surpreende é o papel marginal que até mesmo os evangelistas parecem dar a ele", escreve Alberto Maggi, padre e teólogo, biblista, frei da Ordem dos Servos de Maria, em artigo publicado por Il Libraio, 18-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alberto Maggi, frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou na Pontifícia Faculdade de Teologia Marianum e Gregoriana de Roma e na École Biblique et Archéologique française de Jerusalém.
Biblista, é uma das vozes da Igreja mais ouvidas tanto por fiéis como por não crentes.
Fundador do Centro de Estudos Bíblicos “G. Vannucci” em Montefano (MC), atua na divulgação das sagradas escrituras, interpretando-as sempre a serviço da justiça, nunca do poder. Com a editora Garzanti publicou Chi non muore si rivede, Nostra signora degli eretici, L’ultima beatitudine – La morte come pienezza di vita, Di questi tempi, Due in condotta e La verità ci rende liberi.
O hebraico Yôsep (José), é um nome auspicioso para quem deseja uma família numerosa, de fato significa "o Senhor acrescenta" (ao filho nascido), muitos outros ainda. Nome popular na Bíblia, é carregado por personalidades ilustres da história de Israel, do filho de Jacó e Raquel, vendido como escravo por seus irmãos por ciúme, mas que depois se tornaria governador do Egito (Gn 37-42), ao marido de Maria; o que os assemelha é que ambos, em situações dramáticas, foram os salvadores de suas famílias.
No Novo Testamento, entretanto, há uma evidente reticência ao tratar de José de Nazaré, marido de Maria e pai de Jesus. Tanto nas cartas de Paulo quanto nos outros autores do Novo Testamento não há nenhuma menção a José, mas o que surpreende é o papel marginal que até mesmo os evangelistas parecem dar a ele.
No evangelho considerado mais antigo, o de Marcos, não há referência a ele, e Jesus é lembrado apenas como "o filho de Maria"; são citados os irmãos Tiago, José, Judas e Simão, assim como suas irmãs (Mc 6,3), mas não há menção ao pai. Também no Evangelho de João fala-se da mãe de Jesus (Jo 2,1; 19,25) e de seus irmãos (Jo 7,3-10), mas não há nenhum indício sobre José. É apenas nos Evangelhos de Lucas, e em particular de Mateus, que os evangelistas, de maneiras diferentes, tratam esta figura singular, da qual estranhamente não relatam nenhuma palavra, e cuja profissão é mencionada apenas em relação a Jesus, conhecido como "filho do carpinteiro" (Mt 13,55).
A escassez de informações sobre José nos Evangelhos fez com que a Igreja e a tradição tenha buscado abundantemente material nos textos apócrifos, em particular no Protoevangelho de Tiago, um pouco posterior aos Evangelhos. É nesse texto que José é apresentado já como um idoso ("Tenho filhos e sou idoso, enquanto ela é uma menina" (9,2), enquanto no apócrifo "História de José Carpinteiro” lemos que ele era viúvo com seis filhos (quatro meninos e duas meninas), quando se casou com Maria de Nazaré, então com 12 anos. E quando José morreu, com a idade de cento e onze anos (15,1), Jesus e Maria estavam presentes junto ao seu leito com todos os seus filhos e filhas. Essas informações levaram a tradição cristã a apresentar José como uma pessoa muito avançada na idade e, em especial a partir do século XV, a consolidação do culto a São José, levou a retratá-lo cada vez mais como um ancião que parecia mais o avô do que o pai de Jesus, talvez para tornar assim mais segura a virgindade de Nossa Senhora, e gerações de crianças aprenderam a doce canção de ninar dedicada a "San Giuseppe vecchierello…" (São José velhinho).
Na realidade, com toda a probabilidade, o marido de Maria era um jovem, visto que a tradição judaica fixava o casamento para o homem aos dezoito anos (“Dezoito anos é a idade certa para o casamento” Pirkè Avot, 5,23) e para a mulher aos doze.
A Igreja apresenta José como o pai "putativo" (do latim putativus, suposto) de Jesus, de acordo com o que Lucas escreve em seu Evangelho ("era filho, como se acreditava [lat. putabatur], de José", Lc 3,23). Se Lucas fala de José como pai de Jesus (Lc 4,22), Mateus, apesar de ser o evangelista que mais dá destaque à sua figura providencial para a sagrada família, o exclui radicalmente da concepção do filho. De fato, na genealogia com a qual Mateus abre sua narração, listando os ancestrais de Jesus, por trinta e nove vezes, começando com Abraão, apresenta um homem que gera um homem (“Abraão gerou Isaque, Isaque gerou Jacó, Jacó gerou Judas... ", Mt 1,1), uma sucessão de pai para filho que atravessa a história de Israel de Abraão a Davi e de Salomão até José. Mas tendo alcançado o trigésimo nono "gerou" ("Jacó gerou José", Mt 1,16), em vez de continuar como o ritmo e a coerência gostariam com "José gerou Jesus", a transmissão da vida iniciada com Abraão de pai para filho se interrompe bruscamente. De fato, Mateus escreve que "Jacó gerou José, o marido de Maria, da qual foi gerado Jesus, chamado Cristo" (Mt 1,16), retirando José da geração do filho. Na cultura judaica não existia o termo pais, mas apenas um pai e uma mãe, com tarefas distintas. Enquanto o pai é aquele que gera, a mãe se limita a dar à luz o filho (Is 45,10). Mateus, infringindo esta cultura e esta tradição, apresenta uma mulher da qual foi gerado o filho usando o mesmo verbo (gr. ghennaô) que ele usou para todas as gerações anteriores, fazendo assim vislumbrar uma ação particular de Deus. Cristo não é filho de José, mas "Filho de Deus" (Mt 27,54), gerado pelo Espírito, a mesma energia divina que no relato da criação pairava sobre as águas (Gn 1,1-2).
José é apresentado por Mateus como "justo", uma qualificação que indica não só a conduta moral do indivíduo, mas sua plena fidelidade à Lei de Moisés, como Isabel e Zacarias, os pais de João, que “eram justos perante Deus”, pois “observavam irrepreensíveis todas as leis e prescrições do Senhor”, Lc 1,6). Quando José descobre que Maria, antes de começarem a viver juntos, está grávida, sabe que como "justo" seu dever é denunciar a noiva infiel e fazer com que seja apedrejada, conforme manda a Lei divina (Dt 22, 20-21). Mas José não o faz. Entre a fidelidade à Lei e o amor à noiva, vence a misericórdia, e José procura uma saída que salve Maria ("decidiu deixá-la secretamente", Mt 1,19). No Protoevangelho de Tiago, a escolha dramática de José é bem representada por este seu dilacerante diálogo interior: "Se eu esconder o seu erro, me verei lutando contra a Lei do Senhor" (14,1).
José não observa a Lei, e essa quebra em relação à obediência ao mandamento divino é suficiente para que o Espírito não apenas se insira em sua vida e lhe assegure tomar Maria por esposa (Mt 1,20) e salvá-la da morte certa, mas o torna capaz de perceber na sua existência a presença do "Deus misericordioso" (Dt 4, 31). José é o justo, o homem que não fala mas faz, ao contrário dos escribas e fariseus que “dizem mas não fazem” (Mt 23,3). Para o evangelista, ele é o primeiro daqueles “misericordiosos” que Jesus proclamará bem-aventurados “porque encontrarão misericórdia” (Mt 5,7), e dos “puros de coração” proclamados bem-aventurados “porque verão a Deus” (Mt 5,7). 5,7.8), ou seja, terão uma experiência constante da presença do "Senhor misericordioso" (Sir 48,20) em sua vida. Foi o que permitiu a José ser sempre guiado pelo próprio Deus (o "Anjo do Senhor"), que por três vezes, cifra que no simbolismo numérico hebraico indica a totalidade, lhe mostrará o que fazer (Mt 1,20; 2,13,19).
Repetindo os feitos do primeiro José da Bíblia (Gn 45-46), o carpinteiro de Nazaré salva sua família das tramas assassinas do rei Herodes, levando-os para o Egito, para depois retornar à mais distante, mas segura, Galileia. Acolhendo o filho de Maria como seu, José o legitima aos olhos do povo, e a criança, a quem deu o nome de Jesus (hebraico Yehsȗà, "O Senhor salva"), experimenta, mesmo antes da proteção do Pai celestial, o pai terreno como seu salvador.
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São José esquecido: a reflexão do biblista Alberto Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU