11 Outubro 2016
Publicamos aqui, quase na íntegra, um artigo do livro L’arca dei santi. Ernesto Lamagna [A arca dos santos] (Roma, Il Cigno GG Edizioni, 2016, 83 páginas), com fotografias de Zeno Colantoni. A obra foi apresentada no dia 2 de outubro na Congregação Geral dos jesuítas.
A autoria é da historiadora da arte italiana Paola Di Giammaria, responsável pela Fototeca dos Museus Vaticano. O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 09-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ernesto Lamagna, o escultor dos anjos, desafiou-se com uma grande arca, realizada para a Igreja do Gesù em Roma para conservar as relíquias de santos jesuítas. Mais uma vez, Lamagna faz vibrar sob os seus dedos a matéria, sobre a qual trabalha nervosamente e com uma surpreendente rapidez; o traça decidido modela e freia o instante da inspiração, que permanece suspenso diante do olhar do observador, estimula a sua curiosidade, guia-o à reflexão, até fazê-lo chegar à contemplação pacata e regenerante.
Ao contrário das suas outras obras, nas quais o tormento criativo transparece na matéria ferida, a arca do Gesù aparece totalmente composta nas geometrias perfeitas em equilíbrio e medida.
Nos seus retratos, nos seus anjos, Lamagna tentou ler a essência, atravessando a fronteira imposta pela superfície, para escavar a carne das suas figuras, a fim de obter as suas peculiaridades mais recônditas, que, não raramente, se revelavam de forma inquietante e dramáticas. Nesta arca, ele se detém para olhar com sereno respeito as figuras nas quais ganha forma o espírito que anima a missão do jesuíta.
A arca retoma a forma clássica, com telhado de duas águas; é feita em bronze com cera perdida – técnica favorita do artista – e propõe, nos lados dos painéis, através do uso de um vibrante e rápido stiacciato, episódios fundamentais da experiência espiritual de Inácio de Loyola e representações emblemáticas das principais atividades da Companhia.
Eis, portanto, um jesuíta envolvido no ensino aos jovens, no cuidado das almas, dos doentes e no apostolado missionário. A arca se assenta sobre quatro figuras de animais em baixo-relevo: uma tartaruga, um sapo, uma salamandra e um ouriço, símbolos que remetem a alguns aspectos nos quais o mal toma forma. No telhado, pousa a pomba do Espírito Santo. Um enxame de abelhas que sugam o néctar do girassol posto no centro da cobertura e um evidente apelo ao emblema da Companhia remetem aos ministérios espirituais dos jesuítas, cujo objetivo é dar a cada um o mel da consolação.
A obra confirma a versatilidade de Ernesto Lamagna, igualmente eficaz no baixo-relevo quanto no stiacciato; é uma obra da plena maturidade, onde, abandonado o tormento dos outros trabalhos, o artista para com calma para contemplar a obra do espírito no santo fundador da Companhia e na Igreja.
Ele se põe com serena consciência no panorama da arte contemporânea a serviço da liturgia, no grande rastro dos mestres do século XX, como Manzù, Minguzzi, Greco, Fazzini e outros. Lamagna não recorre a uma linguagem hermética, mas, aceitando o desafio nada fácil de se fazer narrador, nesta obra destinada ao culto, usa a matéria com simplicidade espontânea e com uma linguagem imediata e perfeitamente compreensível.
Nota-se também aqui, como geralmente em toda a produção do artista, o culto apaixonado pela grande tradição plástico-figurativa italiana, em particular pelo barroco, mas sem se deixar enredar pelos fantasmas do passado ou capturar por um fácil convencionalismo. Não se percebem desconfortos ditados pelas necessidades da encomenda; a fantasia não ficou empastada, mas se liberta leve como no voo dos seus conhecidos anjos.
Aqui também, assim como nas suas outras obras, a meu ver, libertam-se força, vitalidade e energia com imediatismo: o ato criativo aparece fluido ou, melhor, rápido, sem dilacerações ou repensamentos, como encarnação de um desenho já todo presente na alma e já todo contemplado na sua perfeição. Nisso, é possível captar aquele movimento sem esforço que remete a certos artistas barrocos; aqui, porém, o tormento cessou, e a alma está em paz.
A obra, segundo Lamagna, que, nos trabalhos que bem conhecemos, sempre tem a intenção de provocar uma experiência emocional e espiritual intensa e muitas vezes inquietante e não raramente dramática, aqui, permite aferrar o constante fervor de uma presença misteriosa e viva em uma elaboração que emana uma paz laboriosa e promissora.
Apesar do enraizamento da secularização e da materialidade, não parece ser apaziguado o sentimento do espiritual que encontra forma na arte contemporânea através de exercitações concretas e tangíveis de meditação sobre o transcendente. Por isso, não é de se admirar que artistas contemporâneos voltem, ou ainda continuem, como no caso de Lamagna, decorando e embelezando igrejas e lugares de culto.
Lamagna foi várias vezes chamado para trabalhar para algumas basílicas: penso nas portas de bronze da Basílica de San Vito dei Normanni e na Porta do Apocalipse da Basílica de Nossa Senhora de Bonaria, em Cagliari, assim como no Anjo da Luz em Santa Maria degli Angeli, em Roma. Já nos relevos dessas portas, assim como nas cenas laterais da urna para a Igreja do Gesù, é tangível a interpretação do campo espacial através de esmagamentos das dobras, repentinos mas leves golpes de cinzel na matéria, um meio técnico adotado para aludir ao volume. Resulta daí uma luminosidade que é uma nota estilística na obra de Lamagna. Como se o espaço tivesse cedido a sua estrutura arquitetônica para se desintegrar em vários fragmentos, dando origem, em toques fugazes e evanescentes, a um jogo dramático de luz e sombra.
Isso também aparece nas suas figuras em baixo-relevo, nos anjos, nas crucificações, nos muitos retratos que ele realizou e também nas esculturas individuais dessa arca-relicário. Não só a figura gera a espacialidade, mas também o contrário. É uma espacialidade difusa, fusão de sombra e luz.
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A "arca dos jesuítas" na Igreja do Gesù - Instituto Humanitas Unisinos - IHU