04 Outubro 2016
A Congregação Geral jesuíta – órgão regulador da Companhia de Jesus no mundo – começou ontem em Roma a 36ª edição desde que a ordem foi fundada no século XVI. Que diferença faz ter hoje um papa com o DNA jesuíta? O sítio Crux entrevistou um dos jesuítas mais próximos a Francisco.
A entrevista é de Austen Ivereigh, publicada por Crux, 02-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Talvez o que mais chama a atenção na 36ª Congregação Geral da Companhia de Jesus, aberta neste fim de semana em Roma, é que ela é a primeira na história da ordem religiosa a acontecer sob um papa jesuíta.
Depois de escolher um novo Superior Geral para suceder o Pe. Adolfo Nicolás, a GC36, como é conhecida, dará continuidade aos trabalhos examinando a sua missão. Qual a influência que Francisco vai ter direta ou indiretamente em suas deliberações?
Eu recentemente estive com o editor da Civiltà Cattolica, o Pe. Antonio Spadaro SJ, em Bogotá, Colômbia, onde nos encontrávamos para palestrar em um congresso internacional de teologia acontecido na Pontifícia Universidade Católica Javeriana. Na ocasião, fiz-lhe exatamente essa pergunta.
Desde uma memorável entrevista do papa concedida em 2013, Spadaro – que está participando da Congregação Geral como delegado do Superior Geral – tem sido visto como o jesuíta que talvez melhor conheça e entenda o Papa Francisco. Ele conversou com o Crux na biblioteca da residência universitária javeriana.
Eis a entrevista.
A Congregação Geral é, provavelmente, o modelo mais radical e mais aberto de discernimento na Igreja. Na escolha do novo Superior Geral, vocês tinham mais de 200 pessoas que pouco conheciam uns aos outros. Entretanto, num final de semana ele é eleito com mais de 50% dos votos, em geral na primeira ou segunda rodada. Suponho que o senhor não tenha ainda participado de uma CG, mas já ouviu muito sobre isso, correto?
Sim, essa vai ser a minha primeira vez, então não passei por isso ainda. Mas os que já estiveram numa Congregação dizem que é uma experiência singular, de grande convergência e comunhão, o que é difícil de explicar a quem não esteve presente.
Um elemento particular desta CG é que ela acontece, pela primeira vez, sob um papa jesuíta que conhece profundamente a Companhia de Jesus. Ele já exerceu alguma influência sobre ela?
O Papa Francisco se dirigiu inúmeras vezes aos jesuítas. Na Civiltà Cattolica, publicamos recentemente uma espécie de resumo das coisas que o papa vem nos dizendo, uma espécie de – conforme estamos chamando – discorso previo [discurso prévio à CG].
Esta é a primeira vez que uma CG acontece sob um papa jesuíta, e precisamos compreender como ele tem agido em relação à Companhia: em suma, a sua atitude vem sendo a de um envolvimento profundo. O papa reconhece os jesuítas, ele se refere a “nós”, e durante as viagens ao exterior, a lugares onde a Companhia se faz presente, quase sempre se reúne com membros da ordem, seja nas comunidades, seja na nunciatura. O papa está bastante envolvido conosco porque jamais se esqueceu de suas raízes.
Ao mesmo tempo, no entanto, Francisco tem um profundo respeito pela dinâmica interna da Companhia. Está claro em nossas Constituições que o verdadeiro Superior Geral é o próprio papa, quem pode mandar membros da ordem para onde quer que ele considere importante. Francisco, porém, respeita e muito a liberdade dos jesuítas, portanto não vai haver nenhuma influência externa direta à CG.
Mas e o discurso dele aos jesuítas na Polônia, publicado por vocês…
Sim, foi a primeira vez que publicamos por inteiro um discurso dele destinado aos jesuítas. Na verdade, eu havia publicado parte daquele discurso na Coreia.
Nessa fala que fez aos jesuítas poloneses, ele falou muito distintamente sobre algo que achava que os jesuítas deveriam fazer, a saber: ensinar o discernimento nos seminários. Como pode não haver uma influência desta fala no próprio discernimento dos jesuítas sobre sua missão na CG36?
Quando o papa se dirigiu aos jesuítas poloneses, eu percebi que se tratava de algo que muito o preocupava. Gravei o encontro, como sempre faço – tenho estas gravações comigo, para uma história futura do trajeto do papa e da Companhia –, mas dessa vez senti que havia algo extra aí, e perguntei-lhe se poderia publicar.
O papa pediu para ver a transcrição, leu e acabou aprovando, e então eu a publiquei, pois me veio a ideia de que ia além de um pedido à Companhia: ele falava de uma necessidade, em geral, da Igreja. Mais de uma vez, Francisco disse que a Igreja necessita aprender a arte do discernimento e, evidentemente, os jesuítas são chamados a se envolverem nisso, pois eles têm no discernimento um elemento essencial de seu carisma.
O papa deseja que os sacerdotes aprendam o discernimento, e os jesuítas são os maiores especialistas nisso, então é lógico que ele peça um envolvimento de vocês no ensino dessa prática. Mas o que quero apontar é como isso pode não ter influência nas deliberações da CG36?
O papel do papa é confiar a missão à Companhia. O Papa Francisco, nesse sentido, é como todos os outros papas. E, nesse caso, esta é uma missão à qual a Companhia deve responder. Porém não há uma influência na Companhia no nível da GC, da mesma forma como não há no nível de sua missão.
Mas a missão da Companhia não é exatamente o que se discute e se determina numa Congregação Geral?
Sim, mas a Companhia tem uma vida própria que existe para além de uma CG, a qual uma CG, de modo geral, guia, orienta. Claro, algo assim também poderia ser discutido na CG. Sem dúvida, o apelo do papa vai ter um efeito na própria compreensão da Companhia de Jesus a respeito de sua missão, discutindo-se ou não este tema na CG.
O que a CG decide discutir é determinado pelos postulados que são submetidos previamente pelas congregações provinciais ao Coetus Praevius [comitê de planejamento], o qual determina a pauta da parte Ad Negotia [assuntos ordinários] da Congregação. E isto pode ou não ser um postulado.
É óbvio que muitas das prioridades de missão deste papado, como os refugiados e a ecologia, são também prioridades da Companhia. É como se os jesuítas, que vêm estando nas fronteiras por tanto tempo sob João Paulo II e Bento XVI, agora descobrissem que a fronteira se mudou para Roma.
Sim, mas a Companhia de Jesus faz parte da Igreja e, como o restante da Igreja, ela recebe desafios por parte do papa. É verdade que o papa é jesuíta, mas, antes de tudo, o papa é o papa; é o pastor universal. Portanto os jesuítas, como qualquer outra ordem, têm esse impulso a partir do papa.
É verdade que o papa fala das fronteiras – essa é uma das três prioridades sobre as quais ele nos falou na entrevista de 2013 à Civiltà Cattolica, isto é: o discernimento, o diálogo e a fronteira – especificando que somos chamados a andar na fronteira, não para decorá-la, mas porque somos chamados a viver aí.
Esses elementos fazem parte do DNA da Companhia. Nesse sentido, o Papa Francisco mostra-se um jesuíta porque tem a fronteira em seu coração. Mas foi o Beato Paulo VI quem disse mui claramente que, sempre quando houver encruzilhadas de tensões no pensamento contemporâneo, os jesuítas são chamados a se fazerem presentes.
Francisco é bem parecido com Paulo VI, no sentido de respeitar o chamado dos jesuítas à fronteira; ele, porém, o assimilou e o fez parte do pontificado.
Compreendo que ele tenha também expressado a sua opinião sobre a questão controversa dos graus. Antes de se tornar papa ele foi consultado, acredito que pela Secretaria de Estado, a respeito da questão de abolir a distinção entre aqueles que assumem o quarto voto de lealdade ao papa, e deixou claro que não era a favor da ideia, crendo se tratar de uma receita para a mediocridade.
Sim, uma visão compartilhada por outros papas, inclusive Paulo VI, quem não se sentia em consciência feliz em modificar a estrutura da Companhia.
O Pe. Nicolás disse também que a Companhia havia retornado a uma espécie de normalidade agora, depois de uma série de CG pós-Vaticano II preocupadas, sobretudo, com a questão da identidade. Tenho a impressão de que ele pensa que essas questões estão, a essa altura, em grande parte resolvidas, e que o foco hoje possa ser colocado sobre o discernimento da missão. Acha que vai haver uma dinâmica diferente desta vez?
Creio que esta reflexão esteja correta, que a questão da identidade não vai ocupar um lugar central. Acho que ficou expresso bem claramente na CG anterior [em 2008] o que significa ser um jesuíta. Certamente a questão agora é a missão, e discernir qual deve ser a missão central da Companhia hoje.
Nesse sentido, o papa vem falando dos desafios que, neste momento, a Companhia de Jesus e a Igreja enfrentam. E claro está que a questão da missão é importante. Penso que aqui nós entramos na grande questão da relação entre a Igreja e o mundo, que foi abordada na CG35, e que exige um maior desenvolvimento.
Acha que esta vai ser uma questão central na CG36?
Sim, para nos aprofundarmos no tema. A espiritualidade inaciana é uma espiritualidade da Encarnação. O jesuíta é enviado a lugares onde às vezes é preciso um verdadeiro esforço para encontrarmos a presença de Deus, e é chamado a acompanhar esse processo. Eis uma das nossas competências específicas: fazer uma leitura da realidade.
Embora o pontífice não tenha que comparecer, estamos supondo que Francisco vai aparecer no final da CG e discursará aos delegados. Mas não necessariamente o seu discurso será fácil de ouvir. Em 1974, o então Pe. Jorge Mario Bergoglio participou da CG32, quando Paulo VI proferiu o seu famoso discurso advertindo a Companhia de que ela estava perdendo o contato consigo mesma, e Bergoglio, segundo relatos, gostou muito do que ouviu. Acha que podemos esperar o mesmo tipo de coisa – ou pelo menos uma alocução que seja profundamente desafiadora?
Uma das características dos jesuítas é que cada pessoa pensa por si própria, portanto a Companhia já é um desafio para si mesma! Creio que podemos ter certeza de que não vai ser uma fala com meras formalidades; o papa, em geral, é franco e direto – e aqui é ainda mais provável que ele se encontre nestas circunstâncias.
Com certeza o papa vai dar a sua visão e desafiará a Companhia em sua missão. O que vai dizer depende, em parte, do que acontecer durante a CG. Pode haver algumas surpresas. Mas, definitivamente, não vai ser uma fala rica em forma e carente de conteúdo.
Imagino que será difícil para o senhor, na qualidade de comunicador, não poder comentar…
Eu já passei por essa frustração no Sínodo. Mas me convenci de que é isso bem importante. Concordo totalmente com o que Francisco nos disse durante o Sínodo, de não nos comunicarmos com o mundo exterior, e não repassar resumos das apresentações individuais – isso é bastante sensato.
Por quê? Porque o Sínodo, assim com a CG, não é um parlamento; é um espaço onde realizamos o discernimento. Dessa forma, uma pessoa pode – como aconteceu comigo – mudar de discurso no último instante, depois de ouvir os demais. A CG não é um lugar para belos discursos e bonitas intervenções, mas um espaço onde todos fazem parte de um processo que deve ser respeitado em sua privacidade.
Precisamente para conservar a liberdade do Espírito Santo?
Exato. Um ambiente no qual todos podem verdadeiramente se expressar em total liberdade, sabendo que o que dizem vai permanecer confidencial dentro da CG e que se pode chegar a um resultado em paz. Desse modo, por um lado, existe o desejo de comunicar algo pública e imediatamente; e, por outro, tem-se presente que é extremamente sensato não proceder assim.
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“Francisco é um jesuíta porque tem a fronteira em seu coração”. Entrevista com Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU