31 Julho 2024
“As ideologias – como nos lembra o papa – seduzem, mas levam você a se afogar.” A ignorância e a falta de formação parecem tocar a flauta que atrai os católicos de todos os países, levando pastores e leigos para o carro do vencedor, seja de direita ou de esquerda, na convicção de que a conquista do poder é essencial para a sobrevivência econômica e cultural da Igreja Católica.
O comentário é de Rocco D’Ambrosio, padre italiano e professor titular de Filosofia Política da Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Formiche, 16-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A análise de Riccardo Cristiano sobre a saída de cena de Biden e o fim do catolicismo conciliar [disponível em português aqui] deixou-me um pouco perplexo.
Embora rica e bem argumentada, sua análise deveria ser inserida em um quadro histórico mais amplo e mais geral. Nos Estados Unidos, assim como em diversos países com uma presença católica significativa (incluindo a Itália), encontramos um catolicismo conciliar – sério, maduro, acolhedor e solidário com os últimos, engajado cívica e politicamente, não fanático e respeitoso da laicidade do Estado e de suas instituições –, mas também um (pseudo) catolicismo reacionário, preconceituoso, fanático, ideológico, interessado no poder, muitas vezes subserviente a lógicas utilitaristas, racistas, homofóbicas e fechadas.
O confronto, muitas vezes conflitante, entre essas duas visões gera, nos Estados Unidos e em outros países, um desconforto eclesial, cultural e político constante, sobre o qual os pastores têm o dever de intervir para ensinar e formar, porque a ignorância e a má-fé estão na origem de males piores.
Vou tentar fazer uma síntese. Seguindo Eric Voegelin, pode-se dizer que os vários populistas em cena (Trump, Putin, Netanyahu, Orbán, Le Pen, Salvini, Meloni e vários outros), apesar da diversidade de suas histórias, formação, sensibilidade e posição política, estão unidos por um uso instrumental da religião (que prescinde do fato de serem crentes ou não, um elemento que pertence à esfera íntima da consciência e nunca pode ser objeto de análise e de julgamento).
Não é a intimidade que deve ser julgada, mas sim algumas características que se repetem em espaços e tempos diversos. Esses líderes professam:
1. a insatisfação com o status quo e com toda a história que os precedeu, sem nunca se distanciarem claramente daquela história horrivelmente antidemocrática e totalitária (seja fascista, nazista ou comunista soviética).
2. A convicção de que as dificuldades atuais devem ser atribuídas à estrutura intrinsecamente deficiente deste mundo, pela qual apenas os outros têm responsabilidade, mas não eles.
3. A convicção de que é possível se salvar do mal deste mundo, desde que nos confiemos totalmente ao novo líder, primeiro-ministro ou presidente, seja o que for.
4. A emergência, no processo histórico, de um mundo bom a partir de um mundo mau, a ser realizado com base em promessas vazias e nenhuma visão estratégica.
5. A referência constante a um “povo” geralmente tomado, mas nunca identificado, em suas formas institucionais de representação;
6. O dever do político de procurar soluções para provocar tal mudança, geralmente sem respeito pelas regras constitucionais e pelas práticas políticas e institucionais vigentes.
7. A religião reduzida a uma ideologia funcional ao projeto político, com pouco respeito pela Revelação, pela sua transcendência e pela sua capacidade de iluminar as mentes e os corações de todos. Pelo contrário, esses populistas têm a pretensão de ser os únicos intérpretes da vontade divina, que praticamente coincide com a deles: pensemos no “Deus” que vai à guerra do “nosso lado”, que nos “salva” do mal que ameaça o mundo, que “decreta” a inferioridade dos estrangeiros, de etnias específicas, das mulheres, dos pobres, das pessoas LGBT e assim por diante).
Esses elementos sintéticos são os principais ingredientes do gnosticismo político, uma tentação, e às vezes a realidade, que nunca desapareceu na história católica. As formas de gnosticismo político, ideológico e fundamentalista presentes nas outras religiões também deveriam ser aprofundadas.
Se é difícil compreender o que é hoje o gnosticismo político, é ainda mais difícil compreender a reação católica, especialmente de padres, bispos, cardeais e fiéis leigos engajados.
Acima de tudo, demandam uma reflexão aqueles católicos que, agitando terços ou posições contra o aborto e a eutanásia, autoinscrevem-se em tradições culturais e religiosas das quais estão a milhas de distância. Há também os católicos, pastores e leigos, que corrompem e se deixam corromper, que amaldiçoam os migrantes, negligenciam a justiça e a paz, andam de mãos dadas com os potentados econômicos, especialmente aqueles que são generosos com grandes doações para dioceses, paróquias e grupos diversos.
Deveríamos simplesmente dizer que eles não são católicos, mas sim filhos e netos dos “ateus devotos” (descritos por Beniamino Andreatta) e que tratam a fé como uma ideologia. Mas as ideologias, recordou o papa, “são sedutoras. Alguém as comparava com aquele que tocava a flauta em Hamelin; seduzem, mas levam você a se afogar”. A ignorância e a falta de formação parecem tocar muito a flauta que atrai os católicos de todos os países.
Além disso, não é de se surpreender que a falta de uma cultura sólida e de uma formação constante leve muitos pastores e fiéis leigos a subirem no carro do vencedor, seja de direita ou de esquerda, porque se acredita que a conquista do poder é indispensável para a sobrevivência econômica e social da Igreja Católica.
O risco é sempre o mesmo: aquele descrito por Hilário de Poitiers no século IV. “Nós não temos mais um imperador anticristão que nos persegue, mas devemos lutar contra um perseguidor ainda mais insidioso, um inimigo que lisonjeia; não flagela as nossas costas, mas acaricia a nossa barriga; não confisca os nossos bens (dando-nos, assim, a vida), mas nos enriquece para nos dar a morte; não nos empurra para a liberdade, colocando-nos na prisão, mas para a escravidão, convidando-nos e honrando-nos no palácio; não atinge o nosso corpo, mas toma posse do coração; não corta a nossa cabeça com a espada, mas mata a nossa alma com o dinheiro, o poder, o sucesso, os primeiros lugares na nossa sociedade”.
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O desafio do catolicismo político entre gnosticismo e populismo. Artigo de Rocco D’Ambrosio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU