30 Julho 2024
Atual proposta retira os venenos agrícolas do Imposto Seletivo e ainda prevê desconto de 60% na sua importação. Ignorando pareceres dos conselhos de Saúde e Segurança Alimentar, Ministério da Fazenda favoreceu indústria química e do agro, aponta relatório.
A reportagem é de Flávia Schiochet, publicada pelo O Joio e o Trigo, 29-07-2024.
A regulamentação da nova reforma tributária ainda está em curso, aguardando avaliação pelas comissões do Senado, mas já se percebe que tanto Executivo quanto Legislativo têm desviado o olhar dos agrotóxicos quando se fala em taxação.
A proposta de regulamentação até agora prevê que os agrotóxicos, que gozam de descontos e isenções fiscais em cinco impostos no atual sistema tributário, terão 60% de desconto no Imposto de Valor Agregado - IVA. O IVA, introduzido pela reforma, unifica impostos municipais e federais em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços - CBS e o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS.
Para morder 60% dos tributos, os agrotóxicos estão categorizados como “insumos agropecuários”, considerados essenciais para a atividade agrícola. A categoria também lista bioinsumos, sementes, mudas de plantas, vacinas, soros e medicamentos veterinários – que, de fato, são fundamentais para a produção no campo.
A nova lei também trouxe uma terceira categoria de alíquota, o Imposto Seletivo - IS, para incidir sobre produtos danosos ao meio ambiente e à saúde. A serem taxadas pelo IS, até agora, estão produtos como bebidas açucaradas, carros à combustão e bebidas alcoólicas. Na prática, é um imposto extra, que tem como objetivo desestimular o consumo desses itens.
A inclusão dos agrotóxicos na taxação pelo IS foi defendida e encaminhada como recomendação para o governo pelo Conselho Nacional de Saúde - CNS, que também reforçou que os produtos não deveriam ter desconto fiscal; pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea e pela Comissão de Direitos Humanos. A coalizão Reforma Tributária 3S – Saudável, Solidária e Sustentável –, formada por mais de 140 organizações da sociedade civil, também defendeu a inclusão das substâncias no Imposto Seletivo. Segundo pesquisa da ACT Promoção da Saúde, 94% da população brasileira apoia o tributo.
Mesmo assim, a proposta de regulamentação entregue em abril pelo Ministério da Fazenda não incluiu os agrotóxicos, e a Câmara dos Deputados também não o fez durante a votação do projeto de lei complementar.
“O governo ignorou essas recomendações, manteve a desoneração para agrotóxicos, não incluiu nenhum no Imposto Seletivo e também não apresentou uma justificativa da real mensuração dessas desonerações”, critica Leonardo Pillon, advogado do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec.
O Ministério da Fazenda foi procurado para explicar o porquê da manutenção de benefícios fiscais e de não ter sobretaxado os agrotóxicos. Por assessoria, o ministério informou que Bernard Appy, secretário responsável pela reforma tributária, estava de férias e não havia outro porta-voz para responder.
Na votação na Câmara dos Deputados, onde o projeto tramitou em regime de urgência no dia 10 de julho, a emenda apresentada pelo deputado Padre João (PT-MG) – que excluiria os agrotóxicos à base de bromometano, acefato e glifosato da categoria insumos agropecuários – foi ignorada.
O relator no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), declarou que vai alterar o texto substancialmente. Em nota publicada após o encaminhamento da pauta ao Senado, a coalizão Reforma Tributária 3S reforça que “a discussão sobre a inclusão dos agrotóxicos no imposto seletivo deve ser aprofundada, garantindo que a essência do imposto seletivo seja de fato respeitada”. A reavaliação das tarifas tributárias será feita a cada cinco anos a partir de 2026, quando finaliza o período de transição da lei. O projeto volta à Câmara antes da sanção presidencial, que pode alterar a matéria mais uma vez.
“Tem margem para insistirmos e expor a contradição diante da opinião pública. Mesmo tirando a questão humanitária e ética, isentar um produto que causa efeitos tão danosos à saúde pública é gastar duas vezes, porque depois se gasta no SUS para tratar as pessoas intoxicadas por agrotóxicos”, aponta Paulo Petersen, representante da Articulação Nacional da Agroecologia - ANA na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Cnapo.
Segundo uma projeção feita pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, em 2022 o governo deixou de arrecadar R$ 15 bilhões graças à renúncia fiscal sobre os agrotóxicos. Num momento em que a Fazenda busca equilibrar as contas públicas – e há pressão do mercado para cortes em políticas essenciais, como saúde e previdência –, fica a dúvida: quanto dessa decisão em não taxar os venenos na reforma tributária é medo e quanto é devoção à bancada ruralista?
Uma resposta pode estar nos dados do relatório do projeto Lobby na Comida, produzido pela Fiquem Sabendo - FS em parceria com O Joio e O Trigo, que será lançado no dia 12 de agosto.
Por meio da ferramenta Agenda Transparente, desenvolvida pela FS, foi feito um levantamento das associações, empresas e lobistas que estiveram na Esplanada dos Ministérios entre 2018 e 2024.
Dez indústrias de agrotóxicos visitaram ministros dezenas de vezes nesse período: Bayer, Basf, Syngenta, Corteva, Sumitomo, Dow Brasil, Rhodia, Ourofino, Adama e Iharabras. Juntas, elas somam ao menos 205 reuniões, e a maior parte dos registros de participação tem mais de uma empresa junto da Associação Brasileira da Indústria Química - Abiquim e o Ministério da Fazenda. As pautas, em sua maioria, foram descritas como “apresentação institucional”, “reunião com representantes da empresa”, sem detalhar o assunto tratado.
As visitas de associações de produtores e indústrias químicas foram ainda mais frequentes que as das empresas: só a Abiquim teve 122 compromissos junto ao Executivo. A CropLife, associação que reúne empresas de biotecnologia, agrotóxicos e bioinsumos, esteve em 37 ocasiões com autoridades do governo federal.
Considerando apenas o período de governo Lula, a partir de janeiro de 2023, a Fazenda recebeu representantes da indústria química e do agronegócio pelo menos 40 vezes. Em nove delas, as reuniões foram somente com a Abiquim.
A cronologia desses encontros se intercala com manifestações públicas da sociedade civil pedindo por uma revisão dos tributos sobre os agrotóxicos e mostra que a consideração do governo não foi a mesma com entidades de terceiro setor que combatem o uso dos agrotóxicos. O Greenpeace foi recebido 17 vezes, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, oito vezes, e a Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, apenas quatro.
Arte: O Joio e o Trigo
Manfredo Rübens, CEO da Basf no Brasil, foi sete vezes à Esplanada. Em janeiro de 2023, enquanto a reforma tributária ainda era estudada pela Fazenda, Rübens esteve em uma reunião organizada pela Abiquim com o ministro da pasta, Fernando Haddad, junto de diretores de empresas e associações do setor químico e industrial para apresentar a agenda do setor. Estiveram presentes na reunião representantes da Rhodia, Unipar Carbocloro, Nitroquimica e Dow Brasil.
Em 4 de agosto de 2023, outro compromisso da Abiquim com Haddad, desta vez uma audiência com empresas e associações do setor químico e agronegócio, incluindo Rhodia Brasil, Indorama/Oxiteno, Dow Brasil, Unipar Carbocloro e Basf.
Na semana seguinte, no dia 10 de agosto, representantes do Ministério Público, gestores e ativistas defenderam, em audiência na Comissão de Direitos Humanos - CDH, que os agrotóxicos fossem mais tributados no projeto da reforma tributária.
Eduardo Leão, CEO da CropLife, esteve em 22 encontros, alguns exclusivos entre a entidade e o governo. Em 13 de dezembro de 2023, uma semana antes da reforma tributária ser sancionada, Leão esteve em reunião com Marcelo Pogliese, secretário-adjunto da Casa Civil, e membros da Frente Parlamentar da Agropecuária. Na descrição da pauta, apenas a informação “reunião governamental”, mesmo que a CropLife seja uma associação sem fins lucrativos que representa empresas privadas do setor químico e do agronegócio.
João Martins da Silva Júnior, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA desde 2017, se encontrou com representantes da Fazenda e deputados nos dias 29 de novembro e em 12 de dezembro, período em que o projeto de reforma tributária tramitava na Câmara.
Em 28 de dezembro, a Bayer se reuniu com a Fazenda, uma semana após a sanção da reforma tributária e um dia após a sanção da nova lei de agrotóxicos. A pauta encontra-se em branco.
No mês seguinte à entrega da proposta de regulamentação ao Congresso, em 16 de maio de 2024, a Fazenda se reuniu com associações do agronegócio para discutir a regulamentação da reforma tributária. Em 11 de junho de 2024, o presidente da CNA se reuniu com a Fazenda para tratar de “questões tributárias”.
Desde 2011, o Brasil está no topo do ranking de países que mais usam pesticidas. Os dados, compilados anualmente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO/ONU, mostram que, em 2022, o Brasil usou mais agrotóxicos que os Estados Unidos e a China. As 800 mil toneladas de agrotóxicos usadas em solo brasileiro ultrapassaram largamente as 467 mil toneladas dos EUA. A China, com uma população sete vezes maior que a nossa, aplicou 224 mil toneladas naquele ano.
O agronegócio argumenta que, sem os descontos fiscais, a produção de alimentos diminuiria, aumentando o preço de itens essenciais. Mas o Brasil destina 84% dessas substâncias para o cultivo de seis commodities para exportação, especialmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão.
A comida vem de outros campos. Segundo o Censo Agropecuário 2017, é em 420 mil pequenas propriedades de agricultura familiar que se produz 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca, 46% do milho, 38% do café e 21% do trigo. Para estes agricultores, os agrotóxicos representam apenas 1,6% dos gastos totais que têm na produção.
Ou seja, há um malabarismo retórico do agro para defender os descontos em impostos quando mencionam a alimentação do brasileiro. E pior: não há como conferir o valor total da renúncia fiscal em compra, venda, importação e exportação de agrotóxicos porque falta transparência aos órgãos da Fazenda. O que se sabe são valores obtidos a partir de requisições pontuais, como a estimativa feita pela Abrasco apresentada acima.
“Não há interesse estratégico por parte do governo [de apresentar mensuração da renúncia fiscal]. Esse modelo do agro é uma armadilha fiscal e política. Ele gera superávit e, mesmo com os subsídios e isenções fiscais, continua gerando recurso pro país e governo. Isso cria uma dependência política, como nos votos no Congresso e coalizões político-partidárias e, além disso, o governo se torna dependente desse modelo para propor mudanças que alterem o cenário fiscal”, diz Marcelo Firpo, pesquisador da Fiocruz e membro do grupo de trabalho Saúde e Ambiente da Abrasco.
Firpo é um dos autores do estudo da Abrasco de 2020 que fez projeções sobre a renúncia fiscal dos agrotóxicos, junto de Wagner Soares e Lucas Cunha. Naquele ano, os pesquisadores conseguiram fazer uma projeção a partir de dados de 2017 do Censo Agropecuário, Secretaria de Comércio Exterior e Receita Federal e chegaram a um valor de R$ 10 bilhões.
O relatório foi produzido para apresentar ao Supremo Tribunal Federal durante julgamento da ADI 5.553, que questiona a constitucionalidade dos benefícios fiscais dados às substâncias. O processo foi retomado em 2023 e, em junho de 2024, os ministros solicitaram aos órgãos responsáveis pela arrecadação de impostos nos níveis federal, estadual e municipal dados sobre essa renúncia. Ao final do ano, quando termina o prazo dado pelo Supremo, será possível saber (ou pelo menos ter uma ideia mais concreta) do valor real das isenções.
O incentivo ao uso de agrotóxicos no Brasil tem quase 60 anos: em 1965, o Sistema Nacional de Crédito Rural condicionava a concessão de crédito aos agricultores se eles destinassem 15% do valor à compra de insumos agrícolas, onde se encaixam inseticidas, herbicidas e fungicidas. O resultado: em 1976, 85% do total de agrotóxicos vendidos no Brasil haviam sido comprados via crédito rural.
Faz tempo, portanto, que o governo abre mão da arrecadação. Mesmo após os primeiros estudos científicos indicando os malefícios à saúde e ao meio ambiente causados pelas substâncias, publicados nos anos 1970, o Brasil não fez esforço para a redução de seu uso. Pelo contrário: incentivos fiscais permaneceram firmes e fortes. Em 1997, os agrotóxicos passaram a ter desconto de 60% no Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços - ICMS, e não precisam pagar o Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI desde 2011.
Data dos anos 1970 as primeiras regulações de agrotóxicos no mundo. Foi nessa década que surgiram as evidências científicas que relacionam o uso de organoclorados ao câncer nos Estados Unidos. É também nesse período que o lobby das indústrias químicas e do agronegócio começa a aparecer com mais força. Por lá, o Departamento de Agricultura desempenhava também a função de regular os agrotóxicos. Isso mudou em 1972, quando o governo americano criou a Environmental Protection Agency (EPA), que assumiu as competências regulatórias.
No Brasil, a primeira regulação dos agrotóxicos veio em 1989 e, agora, foi substituída pela nova lei de agrotóxicos – que ficou conhecida como Pacote do Veneno. A aprovação, inclusive, foi sancionada uma semana depois da reforma tributária, em dezembro de 2023. É (mais) uma canja dada aos agrotóxicos, um aperto de mão duplo dado pelo governo a ruralistas e às indústrias químicas.
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Os agrotóxicos favorecidos na Reforma Tributária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU