25 Abril 2024
Fábricas de veneno têm o Brasil como um dos principais mercados e sistema de saúde é quem sente o peso do modelo agrícola, apesar da subnotificação.
A reportagem é de Elstor Hanzen, publicada por ExtraClasse, 22-04-2024.
O Brasil aplica mais de 720 toneladas de agrotóxicos na produção agrícola e metade dos produtos é considerada altamente perigosa à saúde. Tal modo de cultivo causa doenças e traz elevado custo para os sistemas de saúde público e privado. Além disso, a subnotificação das intoxicações esconde a realidade e dificulta o correto enfrentamento do problema.
O uso de agrotóxico está banalizado e até a enxada já perdeu seu lugar para o veneno. Ronda Alta, cidade com pouco mais de 10 mil moradores no extremo Norte gaúcho, comercializou 144.870,078 litros (ou 53.626,426 quilos) de ingrediente ativo de diferentes tipos de agrotóxicos em 34 mil hectares de soja, milho, trigo e aveia, o equivalente a 13,62 litros de veneno por habitante em 2018. “Enxada ninguém mais tem. Ninguém mais quer. Ninguém mais usa”, relata uma agricultora do município, ao participar de uma pesquisa científica sobre agrotóxicos agrícolas e notificação de intoxicações exógenas.
O estudo produzido pela nutricionista da secretaria da Saúde de Ronda Alta e mestra em Ensino na Saúde pela Ufrgs Carla Agostini ouviu 144 agricultores e usuários da saúde em 2023, considerada população exposta a essa realidade. Carla atua há 20 anos na Atenção Básica de Saúde em Ronda Alta e destaca que foi a primeira vez que o tema dos agrotóxicos foi abordado sob o olhar da saúde e não da agricultura.
“O mais grave foi ver o quanto “esta cultura” dos agrotóxicos está impregnada em nossa cidade, a ponto dos agricultores, que são o grupo que sofre os maiores impactos visto que habitualmente lidam com esses produtos, ignoraram completamente os riscos que os agrotóxicos oferecem à saúde”. Segundo ela, eles desconsideram cuidados mais básicos de proteção, como uso de máscaras e luvas, porque “acham que estão mexendo com água”.
A profissional de saúde lembra que cada morador tem seu relato sobre o impacto das substâncias à base de herbicidas, inseticidas ou fungicidas. Um, por exemplo, derrubou o boné dentro do pulverizador com o veneno já diluído. Sem qualquer temor, coloco-o de volta na cabeça e continuou o serviço com o boné encharcado. Passou muito mal, mas não foi ao médico.
Outro se intoxicou ao trabalhar com semente de milho à base de agrotóxicos, ficou ruim e agora não pode nem sentir o cheiro desse produto químico que passa mal. Além disso, muitos passam veneno nas lavouras, o vento o traz para cima das casas, depois se coleta água da chuva e se usa para molhar alfaces, a planta morre ou enruga. “São casos cotidianos na realidade local, comuns”, observa Carla.
O que se evidencia em Ronda Alta se estende Brasil afora, em regiões com mais intensidade, outras com menos. Em 2023, mais de 100 milhões de abelhas foram mortas no Mato Grosso devido à aplicação incorreta do fipronil. O uso do inseticida é autorizado no país, mas por ser um produto tóxico, não é permitido a pulverização por aeronaves. Em São Paulo, milhares de abelhas foram extintas por causa do tiametoxam, produto proibido em países europeus, no entanto, vendido ao Brasil por uma das multinacionais do segmento, a Syngenta.
Outro caso emblemático ocorreu em 2013. Durante o recreio, um avião agrícola despejou agrotóxicos sobre uma escola em Rio Verde, interior de Goiás, afetando 122 pessoas com o veneno Engeo, entre crianças de quatro anos e adolescentes de 16, além de professores e funcionários. Um levantamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), divulgado em 2021, mostra que o Brasil aplicou 719,5 mil toneladas de venenos em lavouras nacionais para controlar pestes naquele ano, mais do que os Estados Unidos (457 mil toneladas) e a China (244 mil toneladas) juntos no mesmo período.
Para o professor da Ufrgs e conselheiro da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental Darci Campani, é necessário rever o modelo de desenvolvimento agrícola no país, porque é baseado em produção cara, agrotóxicos importados e venda in natura com baixo valor agregado. “Não deu certo”, afirma, argumentando que produzimos “alimentos para o mundo para as pessoas não morrerem de fome, mas as matamos por câncer e outras doenças pelo consumo de comida envenenada”.
Segundo o especialista, essa lógica de produção também contamina o solo e água. “Estamos em uma espiral de contaminação dos meios em que vivemos”, conclui.
Entre 2010 e 2021, o Brasil dobrou o consumo de agrotóxicos e cerca de 70% do veneno vem de quatro grandes grupos do Norte Global, de acordo o Atlas dos Agrotóxicos de 2023. A fatia do mercado de agrotóxicos se divide assim: Syngenta 9,9 bilhões de euros; Bayer 9,8 bilhões de euros; Corteva 5,7 bilhões de euros; Basf 5,5 bilhões de euros. Em 1994, a participação dessas empresas era de 29% neste tipo de mercado; já em 2018, saltou para 70%, segundo dados do levantamento.
Em paralelo, enquanto cada dólar aplicado à compra de veneno para a produção agrícola, em média, outros 1,28 são gerados em gastos no sistema de saúde, dependendo do tipo de tratamento aplicado para intoxicação. Apesar dos danos à saúde e ao meio ambiente, o agronegócio tem incentivos fiscais no Brasil e Lei do Agrotóxico (14.785) veio para facilitar o acesso em 2023.
A sanitarista do Centro Estadual de Vigilância em Saúde do RS Vanda Garibotti destaca que o setor tem muitos incentivos fiscais, mesmo sendo uma das principais potências econômicas, especialmente por causa do discurso que produz alimentos. “A sociedade fica com a doença e impacto ambiental, e praticamente não se recolhe imposto para fazer frente ao custo do prejuízo social que esse modelo de produção provoca”, enfatiza.
Além da contaminação por exposição direta aos agrotóxicos, o envenenamento vem na comida. Conforme o Atlas dos Agrotóxicos, entre os alimentos mais contaminados estão itens muito presentes no cotidiano do brasileiro, como o arroz, alho e a laranja. Também entram no ranking a uva, a beterraba, a manga, o abacaxi, o chuchu e a batata doce. Quem lidera a lista como alimento mais contaminado é o pimentão, seguido da goiaba, da cenoura, do tomate e da alface. A publicação do Atlas dos Agrotóxicos ainda registra que 385 milhões de pessoas adoecem todos os anos por envenenamento causados por agrotóxicos no mundo.
“Embora o registro dos casos seja obrigatório, temos muitos municípios chamados de silenciosos, que não realizam essas notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Apesar de essa grande subnotificação, em 2023 tivemos o registro de 923 casos”. Com essas observações concessivas, a reportagem recebe os registros de intoxicação do RS, fornecidos pela secretaria de Saúde. Isso por quê, para cada caso notificado de intoxicação, existem outros 50 não computados, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019. Sendo assim, houve mais de 46 mil pessoas intoxicadas no Estado, no ano passado.
Em Ronda Alta, mesmo com toneladas de agrotóxicos comercializados e cada morador possuindo uma história de intoxicação, os dados do Sinan estão quase zerados. Em 2019 e 2020 houve um registro em cada ano, em 2021 nenhum e em 2022 e 2023 dois em cada ano. Ou seja, seis notificações em cinco anos.
Aumento das intoxicações no sistema de saúde de 2016 a 2023 (Reprodução: Ministério da Saúde | Sinan)
“Esse cenário contraditório de altos quantitativos de comercialização de agrotóxicos, em contradição aos números insignificantes nos registros do principal agravo à saúde humana, é o grande desafio da saúde pública em nossa cidade”, ressalta Carla, complementando que combater a subnotificação de registros é uma necessidade epidemiológica para que as ações de saúde possam ser planejadas e efetivas.
A sanitarista Vanda salienta que “não se conhece a real incidência, porque normalmente só se notifica os casos agudos e graves, os leves nem são registrados. Segundo a profissional do Centro Estadual de Vigilância em Saúde, se desconhece as informações de intoxicações crônicas, em longo prazo, e a exposição aos poucos e em doses baixas. Dessa forma, “a gente não sabe como isso causa problemas respiratórios, mal de Parkinson, cânceres, neuropatias. Ou seja, desconhece muitos fatores que estão associados aos agrotóxicos”.
Campani lembra que subnotificações no sistema de saúde são comuns em diversos registros, não só em relação à quantidade, mas também, à qualidade. Para ilustrar, cita moradores em regiões distantes dos grandes centros, que muitas vazes acumulam doenças por uso de venenos, não havendo acesso e registros, ficam definhando até morrerem sem saberem o porquê sequer. Hoje o Brasil tem mais de três mil agrotóxicos registrados para uso – sendo que 49% deste total são considerados altamente perigosos à saúde -, até proibidos em países da Europa, contudo, livremente comercializados para o território nacional.
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Sistema de saúde brasileiro paga caro pelo abuso de agrotóxicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU