03 Julho 2024
“Nas últimas décadas, a digitalização não libertou o nosso tempo. Pelo contrário, agora que estamos sempre conectados, o trabalho invadiu ainda mais a esfera privada. Neste sentido, o fato de recuperar um tempo que não se preocupa com os lucros ou as perdas, com a produtividade ou a eficiência, não é apenas um ato subversivo mas também uma necessidade”. A reflexão é de Marie-Monique Franssen, em artigo publicado por El Salto, 01-07-2024. A tradução é do Cepat.
Marie-Monique Franssen é antropóloga e coautora de Dare to Care: Ecofeminism as a source of inspiration.
“Meu filho de quatro anos quer aprender a ver as horas. Uma lástima…”, conta-me uma jovem mãe de dois filhos. “É claro que vou ensiná-lo a fazer isso, mas percebi que o relógio está se tornando um motivo de estresse para ele”, prossegue pensativa. Assim como acontece com todos nós no Ocidente, esta mãe sofre de uma falta crônica de tempo e é muito dominada pela sensação constante de nunca fazer o suficiente, pelas infinitas necessidades pessoais e profissionais que não consegue satisfazer. Eu me sinto contemplada por ela. Assim como esta jovem mãe, também estou cada vez mais preocupada com a forma como o relógio invade implacavelmente as nossas vidas pessoais. Ambas questionamos as suas repercussões no tecido social e ecológico.
Minhas reflexões sobre o conceito de tempo foram crescendo aos poucos. No início eram como gotas de chuva caindo sobre terra árida. Depois se tornaram uma torrente gigantesca, impossível de parar e onisciente. À medida que o assunto transbordava os meus pensamentos, não pude deixar de notar como ele permeava nossos corpos coletivos, como se fossem esponjas. Atingiu o seu auge quando vários dos meus colegas e familiares começaram a sofrer de esgotamento, ansiedade e ataques de pânico, o que os levou a faltar ao trabalho: duas semanas em casa, sete meses de licença médica, anos de afastamento do mercado de trabalho. As pessoas faziam exames de sangue para descartar doenças incuráveis quando tudo o que precisavam era descansar.
Na minha Bélgica natal, o número de pessoas que precisam se afastar do trabalho durante mais de um ano devido ao esgotamento ou à depressão aumentou 46% nos últimos cinco anos. Segundo um estudo recente realizado em seis países da União Europeia, 38% dos trabalhadores correm grande risco de sofrer uma deterioração da sua saúde mental. Porém, como sociedade, glorificamos aqueles que são exemplo de hiperprodutividade e hiperatividade. Nós os levamos ao palco e os colocamos nas capas de jornais e revistas, colocando a barra em uma altura impossível de ser alcançada por outras pessoas. Mas por quê? Quais são as vantagens e desvantagens? O que continua nos escapando? E por último, mas não menos importante, a quem tudo isso serve?
O primeiro relógio mecânico foi inventado na China no ano 725. No século XIV já era comumente usado em toda a Europa como uma ferramenta útil para estruturar sociedades e organizar a nossa vida. Porém, sabemos desde Einstein que o tempo medido em números absolutos, em que uma unidade sucede à anterior, não é real. O tempo é elástico, passa mais rápido nas montanhas do que no litoral. Também é relativo: alguns minutos parecem durar horas, enquanto às vezes as horas passam como se fossem minutos. Desde a invenção do relógio e a implementação do meridiano de Greenwich e dos fusos horários, desligamo-nos dos nossos ritmos pessoais, locais e naturais. A medição do tempo perdeu a sua função original e a produtividade econômica apropriou-se dele para servir as suas próprias necessidades. Esta compreensão econômica do tempo como um número limitado de horas que pode ser usado tão eficientemente quanto possível permeou todos os cantos da nossa organização coletiva durante os últimos dois séculos. O fato de o ritmo do relógio ser cada vez mais acelerado tem consequências terríveis na nossa vida social e ecológica, uma vez que corrói as bases do cuidado e da comunidade, bem como os recursos e ecossistemas da Terra.
Não é nenhuma surpresa que a perspectiva ocidental sobre o tempo tenha muito a ver com o controle. “Uma sociedade baseada em noções de controle constrói sistemas nos quais o tempo não flui dentro da pessoa, mas é compartimentado e coisificado como algo exterior a nós mesmos”, escreve a geógrafa Nicole Gombay. O relógio tornou-se o símbolo da distribuição vital, permitindo a perpetuação da hegemonia do homem sobre a natureza. A filósofa holandesa Joke J. Hermsen leva esta crítica ainda mais longe, comparando o capitalismo a “um tirano que procura expandir o seu poder mantendo as pessoas sempre ocupadas, isto é, sem descanso e sem tempo para pensar”. Além disso, acrescenta que no Ocidente “o tempo tornou-se uma construção política e econômica a serviço de uma ideologia capitalista”.
Esta mentalidade produtivista invadiu os ambientes de trabalho e permeou todos os aspectos da nossa vida pessoal. O capitalismo deve todo o seu sucesso a ela. Não apenas o mantém vivo, mas permite que cresça infinitamente porque internalizamos profunda e intimamente as normas que ele nos impôs como verdades absolutas. Isto torna o capitalismo inevitável e, portanto, muito poderoso. Como afirma o filósofo Byung-Chul Han, “o impulso para maximizar a produção mora no inconsciente coletivo”.
Desde a época de Aristóteles, o descanso e a ociosidade têm sido considerados condições propícias para o florescimento da cultura e da democracia, pois permitem a calma e a contemplação. Esta crença contrasta fortemente com a atividade frenética à qual sucumbimos. Hermsen pergunta se seria possível garantir a natureza democrática de uma sociedade quando a medição econômica do tempo suplanta o resto das experiências temporais, o que provoca a alienação da população de si mesma e do seu ambiente. Como pretendemos mudar qualquer sistema se não conseguimos sequer nos libertar do jugo de medir o tempo ou de continuar a correr cada vez mais rápido? A busca da resposta a esta questão leva-nos inevitavelmente a esta outra: no local de trabalho, quem é o dono do tempo de cada um? E como é que isso afeta a estrutura das relações de poder nas nossas sociedades?
Nas últimas décadas, a digitalização não libertou o nosso tempo. Pelo contrário, agora que estamos sempre conectados, o trabalho invadiu ainda mais a esfera privada. Neste sentido, o fato de recuperar um tempo que não se preocupa com os lucros ou as perdas, com a produtividade ou a eficiência, não é apenas um ato subversivo mas também uma necessidade. A poetisa e ativista Tricia Hersey escreve: “O descanso não é um pequeno artigo de luxo que você se dá como recompensa depois de ter trabalhado como uma máquina e se desgastado. O descanso é o nosso caminho para a libertação. Um portal de cura. Um direito”.
De maneira similar, a artista Jenny Odell enfatiza em seu livro Reconquista tu tiempo! Vivimos con el reloj equivocado y nos está destruyendo, como o ócio se converte em uma via de fuga no quadro de uma cultura que não tolera a ausência de objetivos. Assim, o ócio torna-se “uma pausa essencial durante a qual a trabalhadora se pergunta por que trabalha tanto, onde se processa a dor coletiva e onde começam as fronteiras do novo a ser vislumbrado”. Compreender o tempo como algo político é precisamente o que nos permite olhar para fora, imaginar uma “distribuição estrutural de poder” diferente. Sinceramente, estou com vontade de dar bater no relógio. E depois de novo.
“Nascemos e aprendemos a ser filhos do tempo, assim como os caracóis aprendem a ser da costa”, diz o músico porto-riquenho Residente. Nossas crenças sobre o tempo definem profundamente a nossa realidade e como agimos de acordo no mundo. Assim como acontece com o dinheiro, a forma como vivenciamos o tempo só existe pelo sentido que lhe atribuímos, a nossa percepção do tempo é condicionada culturalmente. Ou seja, é uma construção social e, como tal, pode ser destruída. Chegou a hora de desenvolver uma compreensão do tempo que esteja conectada ao planeta em que vivemos. Recuperar o tempo significa voltar à nossa humanidade, à nossa humanidade interdependente, profundamente enraizada nos exuberantes ecossistemas que nos sustentam.
Muitas culturas indígenas percebem o tempo como cíclico e flexível. Adapta-se às estações e às necessidades das pessoas e da Terra. Existem muitos exemplos de culturas que vivem de acordo com outras temporalidades, como, por exemplo, o povo inuit, o maori ou o navajo, para citar apenas alguns. Eles entendem o tempo como abundante e não escasso. Em A maravilhosa trama das coisas: sabedoria indígena, conhecimento científico e os ensinamentos das plantas (Intrínseca, 2023), a botânica potawatomi Robin Wall Kimmerer escreve: “A forma mais difundida de pensar concebe a história como uma 'linha' temporal, como se o tempo marchasse, de modo marcial, numa única direção. Há quem diga que o tempo é um rio no qual não podemos tomar banho mais de uma vez, pois flui e foge constantemente em direção ao mar. Mas o povo de Nanabozho sabe que o tempo é um círculo. Que não é um rio que corre inexoravelmente, mas é o próprio mar: as marés que aparecem e desaparecem, a neblina que vem fazer da chuva outro rio diferente. E que tudo o que foi será novamente”.
O povo de Nanabozho não é o único que concebe o tempo desta forma. Por exemplo, nas culturas aborígenes e nas ilhas do Estreito de Torres, o tempo também é cíclico, em vez de sequencial. Em seu livro Escrito en la arena, o pesquisador aborígene Tyson Yunkaporta nos conta que, na língua de sua bisavó, não se usa palavras diferentes para designar o espaço e o tempo. Nas Ilhas Tivi, na costa australiana, o tempo é lido na carnosidade da manga e na cor mutante da carambola: “Aqui o tempo nunca é apertado e nunca se perde. É um tempo que sempre volta. Um tempo que bate nessas frutas”, escreve o pesquisador Alexander Van Vooren.
Existem abordagens mais ecológicas do tempo, como a não linear ou relacional, que entrelaçam os seus fios nas costuras do território, das estações, do vento, da chuva e da terra. Elas seguem os padrões migratórios do movimento fluido dos animais. Estão “incorporadas nos ritmos dos ecossistemas e das estações, nos nossos corpos e nas redes (humanas e não humanas) de comportamentos e relações sociais”. Em suma, foram moldados por fatores ambientais e sociais. Em vez de a nossa experiência temporal ser determinada pela quantidade de tempo que dispomos, tornando-se o meio que justifica o nosso fim, há uma abordagem mais qualitativa do tempo que se baseia no perpétuo devir.
Jenny Odell examina a perspectiva capitalista em relação às mudanças climáticas no seu livro, chamando-a de “o absurdo de correr contra o relógio no fim dos tempos”. Uma vez que, como disse a filósofa e ativista Audre Lorde, “as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande”, a precisão temporal do Ocidente nunca será a ferramenta certa para construir novos mundos. Se quisermos mudanças, precisamos adotar parâmetros temporais diferentes. E se considerássemos o tempo como algo abundante em vez de escasso? Como seria então o ato de recuperar o tempo em nossas sociedades?
A verdade é que a resposta sempre será complexa e cheia de nuances. Propostas políticas concretas, como a redução da jornada de trabalho, o estabelecimento de um salário para o trabalho doméstico ou a renda básica universal são passos na direção certa. Contudo, no longo prazo, a adaptação cultural envolve muito mais do que encontrar soluções pragmáticas e milagrosas. A mudança tem de ocorrer num nível muito mais profundo e central. “Nenhum sistema de opressão pode mudar sem primeiro fazer um trabalho interior profundo e pensar sobre como sanar a nossa relação com a natureza”, escreveu o ativista Nathan Thanki no X. É a única forma de nos libertarmos da doutrinação. Uma mudança de paradigma acontece sempre a nível coletivo e pessoal simultaneamente, como uma troca interativa em constante movimento. As culturas devem adaptar-se a contextos em mudança e “permanecer suficientemente fluidas para permitir o surgimento de novos elementos. Nada é imortal”, declara Yunkaporta. Nem mesmo o tempo do relógio.
Da mesma forma que a água do mar molda a costa dia após dia, precisamos de mais histórias de mudança, histórias que transformem a nossa relação com o tempo em conexão com o nosso ambiente de vida, onde possamos desenvolver uma linguagem, um pensamento e práticas que se adaptem à complexidade do século XXI. Em última análise, estas novas narrativas têm de emergir coletivamente. A comunidade deve se organizar. Devemos construir espaços onde outro conceito de tempo seja a regra, os espaços que acolham o suave balanço das ondas, o vai e vem das marés, a batida rítmica dos nossos corações.
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É hora de recuperar o tempo. Artigo de Marie-Monique Franssen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU