17 Outubro 2023
Em seu ensaio, o filósofo coreano radicado na Alemanha propõe uma crítica à forma como olhamos o mundo e a nós mesmos, vinculada ao capitalismo. “Contar histórias é vendê-las”, diz o prolífico autor de A sociedade do cansaço (Vozes, 2015). Nesse sentido, ele destaca, está na moda o storytelling, “a arte de contar histórias como estratégia para transmitir mensagens emocionalmente”.
A reportagem é de María Daniela Yaccar, publicada por Página/12, 15-10-2023. A tradução é do Cepat.
Byung-Chul Han vem narrando as crises desta época. Recentemente revelou em entrevista ao El País que escreve três frases por dia. E que o resto do tempo se dedica a tocar piano e a cultivar o seu jardim. Isso explica, em parte, o resultado, a forma de seus livros: um compêndio de frases angulosas, que seduz mais pela veia poética do que pelo rigor argumentativo – motivo pelo qual é frequentemente criticado, mas que não é válido para desmerecer seu trabalho. A crise em que o coreano entra no seu último livro publicado na Argentina tem a ver com a forma como olhamos para o mundo e para nós mesmos, vinculados – como todo o resto, talvez – ao capitalismo. La crisis de la narración é o título do ensaio editado pela Herder.
É breve, como todos os seus livros; pouco mais de 100 páginas que podem ser lidas de uma maneira que Han provavelmente não gostaria: de uma só vez. “Hoje todo mundo fala em narrativas. O paradoxal é que o uso inflacionário das narrativas revela uma crise da própria narração”, diz nas primeiras linhas, nas quais já estabelece uma oposição que estará presente ao longo do livro: narrativas versus narração.
Vivemos em uma era pós-narrativa. Está na moda o storytelling, “a arte de contar histórias como estratégia para transmitir mensagens emocionalmente”, conceito utilizado no jornalismo, no marketing e na publicidade, e que Han também aplica às redes sociais e à política. É a forma que o capitalismo encontrou para se apropriar da narração (“contar histórias é vendê-las”) e é, numa definição extrema, “um sintoma patológico”.
Em outros tempos, as narrações “nos acomodavam no ser”: davam sentido, suporte e orientação à vida. Eram “capazes de transformar o mundo” e até de “descobrir nele novas dimensões”; expressavam “o modo de sentir de uma época. (...) Com sua verdade intrínseca, são o oposto das narrativas aligeiradas, intercambiáveis e tornadas contingentes, isto é, das micronarrativas do presente, que carecem de toda gravitação e de todas a pretensão de verdade”, contrasta o filósofo.
Fiel ao seu estilo, não é informativo nem ilustrativo. Exemplos e categorizações são refletidos de forma caótica ao longo do texto. Para se ter uma ideia: exemplos de grandes narrações são, para Han, a religião, velhas teses filosóficas como a apresentada por Marx no Manifesto do Partido Comunista ou a psicanálise de Freud. Agora, dá a entender, não há nada que explique, ordene, una. Não há relato, porque não há passado. Não há comunidade. Não há história, portanto não há esperança de futuro.
Ele questiona a filosofia atual (está em “decadência”). Talvez pudesse dizer mais sobre a religião: ela ainda tem o seu peso. Fala das narrativas de populismos, nacionalismos, extremas direitas e das conspirações como “ofertas de sentido e identidade” que não desenvolvem uma “força vigorosa de coesão”.
A nostalgia é mal vista. Felizmente, Han não teme isso: “A fogueira foi apagada há muito tempo. Ela foi substituída pela tela digital, que isola as pessoas, transformando-as em consumidores (...). Nem mesmo as stories ou histórias publicadas nas plataformas sociais podem preencher o vazio narrativo. Nada mais são do que autorretratos pornográficos ou autoexibições, uma forma de fazerem publicidade de si mesmos. Postar, clicar em ‘curtir’ e compartilhar são práticas consumistas que agravam a crise narrativa”.
O primeiro sintoma da crise da narração – analisa, citando Benjamin, seu grande aliado neste livro – é o “florescimento do gênero romance”, no início da Modernidade. A narração cria comunidade; o romance surge da solidão e do isolamento. O romance faz “análise psicológica”; a narração é descritiva, não explica. Mas o seu fim definitivo responde à proliferação de informações típica do capitalismo, tema que já havia abordado no imperdível Infocracia (Vozes, 2022).
Através do storytelling, a informação “destroça” o tempo, reduzindo-o a uma “mera sucessão de momentos presentes”, em oposição ao “continuum temporal” da narração. "O leitor de jornais só presta atenção ao imediato. Sua atenção se reduz à curiosidade", assinala Han. Ele salta de uma novidade à outra. Perdeu o olhar “prolongado” e “pousado”. Uma narração, que carrega a “auréola” do “prodigioso e enigmático”, perdura no tempo. Uma informação se esgota rapidamente.
Outro eixo interessante é a proposta da impossibilidade de nos narrarmos verdadeiramente a nós mesmos – problema que começou na Modernidade e que foi refletido por Proust e Heidegger –, embora nos restem os refúgios da psicoterapia e da psicanálise. Somos phono sapiens, seres consagrados “ao instante”, sem história.
As histórias que contamos no Instagram ou no Facebook não são narrações, mas informações visuais que desaparecem rapidamente. As redes funcionam de forma aditiva, não narrativamente. As selfies anunciam “o fim do homem que carrega um destino e uma história”. As tomadas em funerais são o paroxismo da ideia de ausência da morte.
O phono sapiens desconhece “o desdobramento de toda a existência”, que abrange o tempo da vida entre o nascimento e a morte. Ele pensa que está apenas brincando, mas na realidade está “sendo completamente explorado e manipulado”, extraem dele dados em um “panóptico digital”.
Han esmiúça também as narrativas do regime neoliberal. Por seu caráter privado, não geram comunidade e acabam com a solidariedade e a empatia. Por exemplo, a narrativa da performance, que “transforma cada pessoa em um empreendedor de si mesmo”. “Sem narração comunitária” não se gera “o político no sentido enfático”, a ação comum.
“Se você comparar meus pensamentos com uma fruta, a casca e a polpa são de alemão romântico. Mas o caroço é uma fruta exótica”, definiu-se Han na entrevista. O livro não fornece saídas. A origem oriental do pensador ressoa nestas palavras: “Com a atual hiperatividade, que busca espantar o tédio, nunca atingiremos um estado de profundo relaxamento espiritual”.
O “tsunami informativo” faz com que nossos órgãos sensoriais sejam permanentemente estimulados. Não há “demora contemplativa” que possibilite a narração ou a “escuta atenta”, dons que perdemos. A base do dom da escuta é, além disso, o esquecimento de si mesmo.
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Para Byung-Chul Han, vivemos em uma era “pós-narrativa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU