11 Junho 2024
Um ano após sua morte, um livro homenageia o bispo francês Jacques Gaillot. O jesuíta Felice Scalia recorda a figura extraordinária e profética do Bispo Gaillot a partir da obra de Lorenzo Tommaselli, Jacques Gaillot – Un vescovo per il Vangelo (Il pozzo di Giacobbe, Trapani 2024).
A reportagem é de Felice Scalia, publicada por Settimana News, 05-06-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
Uma história das reações clericais e leigas ao Concílio Vaticano II, e depois aos 50 anos de anticoncílio, tanto quanto sei, não foi escrita. Mas uma coisa é certa: entre 1962 e 1965, pessoas desconhecidas do grande público reuniram-se em Roma e imprimiram uma marca de criatividade evangélica à Igreja que repensava a si mesma e à sua relação com o mundo.
Posteriormente vimos na CEI e no mundo bispos “incômodos” que, pela sua excentricidade, não eram ouvidos, aliás, eram descartados com desdém. “Fala aquele erro do Espírito Santo, que vá em frente e fale, afinal quem pode levá-lo a sério?”.
Isso não acontecia por maldade ou má-fé, mas apenas porque - com o Concílio encerrado - as vozes da restauração no sentido institucional prevaleceram sobre aquela carismática e profética. Desses "erros do Espírito Santo” vou rememorar alguns nomes: Anastasio Ballestrero, Luigi Bettazzi, Tonino Bello, Raffaele Nogaro, Oscar Romero e Jacques Gaillot de quem estamos tratando. Sem falar na oposição surda e tenaz a dois “erros” de luxo: João XXIII e Francisco.
Na realidade não se tratava de “erros do Espírito”, mas da instituição-igreja que deixava escapar das suas malhas aquelas células malucas, gáudio das pessoas simples, sedentas e famintas de justiça, fumaça nos olhos e irritação da igreja em que prevalecia mais o aparato legalista-cultural, empresarial, diplomático, que o Evangelho.
O Reino para os descartados
Em 1982, Jacques Gaillot era ordenado bispo de Évreux (Normandia), padre ordinário, diríamos “clássico”, mas marcado por 28 meses de serviço militar na Argélia, suficientes para lhe dar a profunda convicção de que o homem não é feito para a violência mas para amar, e para que o Reino devia ser pregado sobretudo aos “descartados”, aos “derrotados”.
Será o bispo que está decididamente do lado dos pobres, que está em profunda comunhão com os amados de Deus, justamente os “pobres”, os desafortunados, os imigrantes, os desprezados muçulmanos, os sem-teto, os prisioneiros, os sans papiers. Uma questão de gosto – talvez tenham pensado alguns coirmãos no episcopado – deixemos ele fazer o que quer! Talvez não se tenha intuído o quanto a escolha de ser Pastor dos “descartados” modulava o seu serviço a toda a diocese, a sua catequese, a sua liturgia, o seu estilo de vida.
Como explica muito bem o subtítulo do livro que apresentamos: Gaillot era um “bispo do Evangelho”, na igreja, mas não “da igreja”, um bispo para servir os irmãos, como o seu Senhor, não para se destacar da massa. Mas a certa altura o potencial subversivo desta centralidade do evangelho como norma da Igreja explode aos olhos da opinião pública.
Monsenhor Gaillot está ao lado de um objetor de consciência ao serviço militar (Michel Fache), desaprova – e explica as razões – um documento da Conferência Episcopal Francesa (Gagner la paix) que apoia a legitimidade das armas nucleares. Mas talvez a gota d’água que faz transbordar o copo tenha siso a pretensão do bispo de estar evangelicamente presente no debate sobre a opressão governamental contra os imigrantes. Esse elo liga a indignação “santa” de muitos bispos franceses à preocupação política do Ministro do Interior francês, Charles Pasqua.
Destituído, não amordaçado
Em 1994, Gaillot realiza dois gestos “subversivos”: ocupa a histórica Basílica do Sagrado Coração de Montmartre com os “Sans Papiers” e publica um livro onde explica a sua posição como francês, cristão e bispo em relação a cada homem que lhe foi confiado: Grito contra a exclusão. O ano de todos os perigos.
Foi mais que suficiente para enfurecer o governo da época e para reacender as antigas relações Cesaropapistas com a Igreja Católica. Foi feito recurso à Santa Sé (era o Papa João Paulo II) que acalma a Conferência Episcopal Francesa e o governo da "nação primogênita da Igreja", com a destituição de Gaillot - em 1995 - de bispo de Évreux para bispo titular de Partenia, diocese inexistente há séculos.
As fantasias clericais são infinitas, como inventar “Pastores” sem rebanho... “O machado caiu” – comenta Gaillot. Mas se iludem aqueles que acreditam ter posto uma mordaça ao bispo que desde sempre tinha se sentido “feito sob medida para o Evangelho”.
Começa a terceira parte da vida do nosso bispo. O fato de ser batizado, católico e pastor o leva a assumir a responsabilidade pelos oprimidos de todo o mundo. Conforme as palavras do autor do livro (p. 29) e do primeiro prefácio dos defuntos, “A missa não acabou, mas expandiu-se, transformou-se”.
Monsenhor Jacques viaja pelo mundo, com a Greenpeace, visita prisioneiros de todo o mundo (também os procura em Messina durante uma de suas visitas, exigindo falar com seus "irmãos"), está do lado de cada sofredor, de cada vítima do sistema desumano que chamamos de civilização ocidental, independente de religião, cor de pele, cultura ou nacionalidade.
Apoiado pelo seu povo
Um famoso teólogo da época, Eugen Drewermann, para Gaillot é um pobre homem deixado sozinho no seu esforço pastoral, perseguido pela cegueira clerical. E fica ao seu lado, sustenta-o, fala com ele.
Gaillot não espera até a velhice para ser fiel ao seu Cristo. Escreve: “Tomo a liberdade de pensar, de me expressar, de debater, de criticar sem medo do machado” (p. 39), apoiado, sustentado, mantido em pé, não pelo aparato eclesiástico, mas pelo Evangelho que anuncia, e “pela sua gente” (p. 49).
A morte surpreende esta criatura generosa e profética em 23 de abril de 2023. Como morto – parece-nos – “grita” ainda a necessidade de voltar ao Evangelho, a todo o Evangelho. E somos gratos ao prof. Tommaselli por colocá-lo diante dos nossos olhos de confusos cristãos.
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Jacques Gaillot, pastor dos “descartados” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU