10 Junho 2024
Pensar o alimento é pensar um projeto de humanidade. Com esta consciência, a geógrafa e professora da USP Larissa Mies Bombardi tem dedicado anos de pesquisa ao estudo dos pesticidas. Autora do livro Agrotóxicos, um colonialismo químico, lançado na França pela editora Anacaona, ela descreve uma realidade alarmante, ao mostrar que Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, em sua maioria produzidos por multinacionais europeias, um quadro trágico e que tem piorado nos últimos anos.
A entrevista é de Maria Paula Carvalho, publicada por RFI, 06-06-2024.
Em que medida estamos sendo contaminados, para não dizer envenenados?
Estamos sendo contaminados em uma grande medida. O Brasil é um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos e o maior importador mundial de agrotóxicos. Dos dez agrotóxicos mais vendidos no Brasil, três são proibidos na União Europeia (UE) porque são cancerígenos, ou porque são teratogênicos, quer dizer, provocam malformação fetal, ou porque provocam infertilidade, ou desregulação hormonal, ou mal de Parkinson. Então, nós já vivemos esse quadro de contaminação porque está exposto a substâncias que na União Europeia a população não está. Um outro aspecto é a questão da quantidade. No Brasil, permitimos resíduos de agrotóxicos tanto nos alimentos quanto na água, que são muito superiores aos resíduos permitidos na União Europeia.
Poderia fazer uma comparação?
Dezenas de vezes, às vezes centenas e às vezes milhares de vezes. Vou dar dois exemplos: a malationa, que é um larvicida muito conhecido no Brasil e inclusive utilizado no fumacê contra a dengue. No Brasil, autorizamos resíduo 400 vezes superior ao resíduo autorizado no feijão na União Europeia. Esse é um exemplo. Vou dar um outro exemplo, do glifosato.
O glifosato é um herbicida, é o mais vendido no mundo e o mais vendido no Brasil. Se somarmos a quantidade dos dez agrotóxicos mais vendidos no Brasil, desse volume, metade é de glifosato, que é uma substância considerada potencialmente cancerígena para seres humanos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2015. E autorizamos um resíduo dessa substância na água potável 5000 vezes superior do que o resíduo permitido na UE.
Então, eu diria que a população como um todo está cronicamente exposta a essas substâncias. E um terceiro aspecto que eu acho que vale a pena ressaltar é que, no Brasil, é autorizada a pulverização aérea de agrotóxicos, uma prática proibida na União Europeia desde 2009. Esta é a principal forma de contaminação ambiental e humana, porque há algo que se chama deriva, ou seja, a quantidade de agrotóxico que não atingiu a plantação e que foi à deriva, saiu da área cultivada para atingir curso d'água, escolas, pessoas, etc.
Eu mesma já entrevistei diversos camponeses que disseram que tomaram uma chuva de agrotóxico. Então, é um quadro grave, catastrófico de exposição aos agrotóxicos no país.
Explique por que você escreve que “o colonialismo químico repete o colonialismo clássico”?
Se formos pensar na nossa história, o capitalismo que se apropriava das riquezas naturais de uma forma violenta, com a expulsão dos povos indígenas, muitas vezes com o aniquilamento, com o genocídio. Esse foi um mecanismo de enriquecimento da sociedade moderna, como conhecemos hoje.
Atualmente, a União Europeia, por meio de empresas, controla mais de 1/3 da venda mundial de agrotóxicos e vende substâncias não autorizadas no seu próprio território para países como o Brasil, em que a regulação não é tão restritiva.
Então é como se estivéssemos no século 17, ou no século 18, em que havia a escravidão. Obviamente, a escravidão não era uma relação de trabalho admitida na Europa, mas ela se beneficiava do comércio de pessoas escravizadas.
Guardando as devidas diferenças históricas e geográficas, continuamos numa relação absolutamente assimétrica. E esses países, por outro lado, se inserem na economia mundial de uma forma absolutamente subalterna, exportando grãos, algo sem nenhum valor agregado.
Nesse ensaio, você explora a gravidade do problema dos pesticidas para a saúde humana e o meio ambiente, questionando o modelo agroindustrial global. E você também rebate uma frase muito ouvida, de que o Brasil é o celeiro do mundo.
O Brasil não é celeiro nem de si mesmo, porque ano após ano, a área agrícola aumenta, as safras aumentam e ano após ano a fome aumenta também. Então, eu tenho insistido que a agricultura deixou de ser um sinônimo de produção de alimentos.
A palavra agricultura traz em si esse aspecto humano, essa beleza humana de fecundar a natureza. E ela trazia esse bem comum, essa potência de nutrição. Agora, a agricultura deixou de ser um sinônimo de alimentação humana.
No Brasil, ela virou produção de commodities, que são mercadorias vendidas na bolsa de valores, e produção de agroenergia. E a fome aumentou. E não só a fome aumentou no Brasil, como ela é inclusive mais grave no meio rural: no meio urbano, cerca de 8% da população passa fome, enquanto no meio rural, cerca de 12%.
Há uma relação comprovada entre as doenças e o uso de agrotóxicos? Em 2015, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) publicou um primeiro posicionamento sobre os agrotóxicos, ressaltando os impactos nocivos à saúde humana e ambiental decorrente da exposição a esse contaminante químico.
Há diversos estudos do mundo, mas no Brasil tem alguns bons estudos já mostrando a conexão entre as áreas em que mais se utilizam agrotóxicos e uma quantidade maior de pessoas que desenvolveram câncer. Guardadas as proporções, quer dizer, taxas maiores de câncer nos municípios em que mais se consomem agrotóxicos.
Apesar desse quadro que você descreve, o Brasil acabou de aprovar uma legislação que facilita ainda mais o uso de agrotóxicos (Projeto de Lei 1.459, de 2022)...
O que foi aprovado no Brasil é um projeto de lei que ganhou a alcunha de PL do Veneno. O presidente Lula fez alguns vetos importantes, que eu diria que ainda não seriam suficientes. Esses vetos foram derrubados na Câmara. Então, é algo muito ruim. Há um estudo feito que para cada dólar gasto com agrotóxicos no Brasil, o sistema de saúde gasta um dólar e 20 centavos. Então, do ponto de vista econômico, isso não se sustenta. Quem sustenta isso é a sociedade brasileira como um todo.
As suas pesquisas sobre a exposição dos cidadãos brasileiros aos agrotóxicos e a degradação do meio ambiente e das condições de vida no meio rural lhe obrigaram a deixar seu país. Você sofreu ameaças?
Enquanto eu estava publicando em português e me dirigindo ao público brasileiro, eu não sofri ameaças. Eu passei a sofrer depois que o meu atlas foi traduzido para o inglês e lançado na Europa. Foram ameaças à minha carreira, uma tentativa de desqualificar o meu trabalho científico, dizer que o que eu dizia não era verdade. Uma outra forma de ameaça mais direta foi um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de aviação agrícola, dizendo: “se a professora acha que vai continuar dizendo que pulverização aérea não é segura, eu quero convidar a professora para vir passear comigo”.
Como você lida com isso?
Eu busco cada vez mais trazer consciência à população. Esse é o nosso papel como cientista, como intelectual, de estar comprometido com o bem comum, com a justiça social, com a justiça ambiental. Eu lido fazendo mais e mais, trazendo a questão à tona, me manifestando, seguindo na minha pesquisa. Mas é algo grave. Eu busco influenciar políticas públicas, reconhecendo a importância que os movimentos sociais têm. Temos uma rede que cresce e se amplifica no Brasil trazendo esse tema à tona. O alimento tem o poder de nos fazer rediscutir grandes questões nacionais e mundiais.
Quando se fala dos acordos de livre comércio, muito se diz das políticas sanitárias que não são iguais no bloco europeu e no Brasil. E esse lobby que existe no Brasil, existe aqui também. Como você vê essa pressão dos agricultores franceses, muitas vezes junto com os produtores de agrotóxicos, para dificultar a implementação da política verde europeia?
Olha, tem um lado positivo da manifestação dos pequenos agricultores, de dizerem que não é justo que tenham que disputar no mercado com regras tão diferentes.
Agora, há um aspecto muito nefasto nessa movimentação dos agricultores, que justamente está associada a esse lobby das indústrias de agroquímicos, que é buscar a desregulação. A Europa gosta de falar do seu protagonismo na agenda de 2030 e seria muito importante que isso seguisse.
Mas, na verdade, a Europa está recuando. Então, os agricultores fizeram uma pressão enorme na França e na Europa para desregulamentar o Green Deal, o acordo verde. Isso é muito trágico para as pessoas.
E foram várias decisões muito ruins da União Europeia nos últimos meses, como a renovação da licença do glifosato. E isso estava havia sido consensualizado com a sociedade civil a dois anos atrás. Então, é uma tristeza, não só para a União Europeia como para o mundo.
Quais são as suas recomendações? E como o Brasil poderia dar exemplo?
Eu coordeno uma aliança internacional para padronização de agrotóxicos, que visa no futuro a eliminação programada dessas substâncias. Fizemos o lançamento dessa aliança em Nova York, no encontro da das Nações Unidas para a Água, em março de 2023, e entregamos nas mãos do secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, esperando que o Brasil possa ter esse protagonismo. O Brasil pode ser o país a levar esse tema para as Nações Unidas.
A situação mudou com a entrada do governo Lula no Brasil?
Algumas coisas mudaram, mas nada estrutural como nós gostaríamos que tivesse sido. Eu posso dizer que o Brasil retomou a política nacional de produção orgânica, a política de alimentação escolar, que é justamente possibilitar que as escolas públicas recebam alimentos produzidos de forma orgânica, de forma agroecológica.
Então, isso é uma honra e um avanço no mundo. O Brasil também relançou o programa de aquisição de alimentos, que promove que o governo compre diretamente dos camponeses, dos assentados, dos quilombolas, os alimentos que vão ser oferecidos desde escolas até outros centros, inclusive de saúde. Então, temos espaço para falar disso. É uma conquista muito importante, mas obviamente que ainda é preciso lidar com as questões estruturais.
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"O Brasil não é celeiro nem de si mesmo", diz Larissa Bombardi, autora de livro sobre agrotóxicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU