24 Mai 2024
O psiquiatra e psicanalista francês Guy Briole enxerga a loucura em uma perspectiva que transcende os limites convencionais, não se limitando a uma visão clínica ou sociológica, mas explorando as múltiplas facetas e expressões da loucura em vários contextos. Sua leitura é a de um psicanalista orientado pelos ensinamentos de Lacan.
Desse modo, delimita claramente que a essência da loucura transcende a mera categorização da doença mental e, apesar dos avanços científicos e do pensamento racional predominante nas culturas ocidentais, considera que ela preserva um âmbito que resiste a ser completamente assimilado por estes, com a persistência de um elemento inapreensível, uma liberdade inerente que não se submete à normativas sociais, nem científicas, manifestando-se em um discurso não regulado por outros. Este ponto de vista é o que adota no livro Monólogo compartido con la locura (Grama ediciones).
Em cada parte deste monólogo compartilhado com a loucura, Guy Briole oferece uma nova perspectiva, por meio de relatos de casos de sua prática e reflexões que ilustram a diversidade e singularidade de cada um deles, desafiando as ideias preconcebidas e abrindo caminhos para uma compreensão mais profunda e matizada do que genericamente é chamado de “loucura”.
“Procurando um título para o meu livro, quando encontrei esta fórmula pensei que era outra maneira de dizer os mal-entendidos das conversas de um com outro. Como se escutar mutuamente? Como adaptar os ouvidos para poder apreender o que o outro diz e, singularmente, aquele que chamamos de ‘louco’? Se o louco fala muitas vezes por si ou por seres imaginários, também que se dirige a um psicanalista”, destaca o especialista, que foi diretor do Hospital du Val-de-Grâce, em Paris, e é membro da Escola Lacaniana de Psicanálise (ELP).
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página|12, 23-05-2024. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você considera que a loucura não se opõe necessariamente à razão. É um pensamento que supera a forma como a Modernidade (Iluminismo) a entendia?
Considero que a loucura não tem como partenaire a doença mental, mas, sim, a razão. De fato, a loucura e a razão andam de mãos dadas, opondo-se uma à outra. Você menciona com razão o Iluminismo do século XVIII. Os pensadores e filósofos deste movimento se opunham sobretudo à fé religiosa como forma de entender o mundo e a autoridade transmitida na filiação dos reis. A razão era o conceito central de que o desenvolvimento científico justificaria e conduziria ao progresso da humanidade. Este era o humanismo do Iluminismo.
Em meu livro, destaco ao menos dois filósofos: Erasmo, que em seu Elogio da loucura ataca os homens da Igreja e a sua tal infalibilidade como a desumanidade da sociedade de sua época. É um elogio irônico da loucura que se contrapõe à razão. Descartes, em suas Meditações, exclui a possibilidade da loucura, promovendo a razão. A esta posição se opõe uma forma de cogito: existo, ainda que esteja louco.
Por que para você a loucura é uma expressão do trágico da condição humana?
É uma demonstração que Michel Foucault faz acerca da relação entre a loucura e a verdade. O louco seria o que mais se aproximaria da verdade. Por quê? Porque o louco não tem limite para dizer as coisas. Ele as afirma como pensa, sem filtro. Para a sua verdade não é possível opor a razão. Então, acaba encarnando o oráculo, aquele que diz a verdade do amanhã. Uma verdade obscura. Sendo assim, o louco é consultado e, ao mesmo tempo, é excluído da sociedade. É a dimensão trágica da sua condição humana.
Você destaca que algo da loucura escapa da conceitualização de doença mental. Considera que o pensamento científico tende a categorizar a loucura como uma doença mental?
Para responder à sua pergunta, é preciso voltar ao clima caritativo do início do século XIX, que permitiu libertar os loucos de suas correntes e de suas masmorras. A contrapartida foi que a sociedade encomendou aos psiquiatras a tarefa de classificar os diferentes aspectos da loucura e encontrar tratamentos adequados. Assim, o louco não está mais louco, está doente.
E, para completar este enfoque racional, é importante descobrir uma causa que seja, é claro, orgânica. Um modelo científico que possa dar conta do desvario das mentes humanas. É assim que se estabelece uma nosologia cada vez mais orientada para a biologia e a objetivação cerebral. O objetivo é livrar, de uma vez por todas, a loucura, a psicose, de sua dimensão subjetiva, psicológica e moral. De fato, liquidar o inconsciente!
A psiquiatria científica atual está cega com a ideia de que qualquer resposta aos transtornos mentais deve ser medicamentosa, neurocirúrgica e de privação de liberdade. De fato, é o retorno do confinamento denunciado no século passado. Seria necessário fazer algo diferente com palavras que nada pode silenciar. Por exemplo, ouvi-las!
A ideia é que não é necessário ser psicótico para ter loucura, mas que a loucura é uma condição que também pode aparecer na neurose?
É importante lembrar que loucura nem sempre significa psicose. Diz-se de algumas pessoas que possuem um toque de loucura para significar sua originalidade, de outras que, por vezes, em determinadas situações, são um pouco marginais, mas que, de certa forma, estão incluídas entre os “normais/neuróticos”.
A situação é muito diferente quando, como digo neste livro, a loucura se torna furiosa e violenta. Quando o louco se rebela totalmente inadaptado à vida coletiva. O limite aceitável para todos é quando cada pessoa pode pensar em seu próprio mundo, mas que se comporta como todas as outras pessoas no mundo compartilhado das normas sociais de seu grupo. A loucura é sempre relativa a um grupo, em uma determinada civilização.
Atualmente, você considera que essa estigmatização de estabelecer um juízo moral sobre a loucura, como costumavam fazer antigamente, como “tratamento moral”, foi superada?
É pertinente relembrar sua pergunta quando a questão moral retorna com força nas abordagens sociais e nos discursos políticos. Este retorno não se deve tanto à religião como no passado, mas, ao contrário, às relações hierárquicas, ao racismo e, em particular, ao questionamento das relações entre homens e mulheres.
O direito de cada pessoa se torna moral antes de ser uma posição de respeito mútuo, uma inclinação a levar em conta os outros pelos quais também se é responsável, como sustenta Emmanuel Lévinas. A loucura volta a ser uma falta e o “tratamento moral” aparece no horizonte.
Por que considera que “o paciente é o teórico de seu caso”?
Tanto Freud quanto Lacan estabeleceram uma teorização do inconsciente a partir do que aprenderam de seus pacientes. Freud, em particular, baseou suas teorias do inconsciente em sujeitos histéricos, enquanto Lacan, com o caso Aimée, retomou a questão da clínica a partir da psicose.
Para nós, psicanalistas, a clínica difere da que é estabelecida com base na observação em classificações psiquiátricas. Em outras palavras, nós, psicanalistas lacanianos, não aplicamos um modelo nosológico a um paciente para enquadrá-lo em uma categorização já estabelecida, mas, ao contrário, buscamos o que o torna único.
No caso dos pacientes psicóticos, ou dos loucos em geral, é o próprio paciente que nos ensina algo a respeito de seu funcionamento, o significado de suas vozes e seu comportamento atípico. Inclusive, chega a nos explicar a causalidade destes transtornos. Nesse sentido, ele é o teórico de seu próprio caso.
Além de reflexões teóricas, meu livro é, antes de tudo, uma tentativa de transmitir minha prática com esses sujeitos em análises. É aqui, nesta clínica e nesta prática, que podemos apreender melhor o sentido desta frase: “O paciente é o teórico de seu próprio caso”.
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“A loucura volta a ser uma falta e o ‘tratamento moral’ aparece no horizonte”. Entrevista com Guy Briole - Instituto Humanitas Unisinos - IHU