28 Agosto 2018
“O que é a loucura não é muito difícil dizer, o difícil é pensar como é que não estamos loucos”. Este argumento tão polêmico como certeiro pertence ao médico psiquiatra e psicanalista Emilio Vaschetto. Autor do livro Ser loco sin estar loco (Grama Edições), Vaschetto apresenta no início de seu trabalho um rigoroso estudo histórico sobre como a psiquiatria entendeu a loucura através do tempo para chegar a compartilhar a lição de Jacques Lacan de que é possível ser psicótico sem ser louco e a ampliar para formular a razão pela qual é possível ser louco sem estar louco.
“Em um primeiro momento, Lacan assume o tema da linguagem interior como parte do que chamará de endofasia. Sempre nos pensamos, nos falamos sob uma forma mais ou menos audível que na alucinação, inclusive também no delírio, toma outra forma”, conta Vaschetto em entrevista ao Página/12. Isso pode ser observado do ponto de vista da psicopatologia. “Depois, Lacan fará um giro transcendental em seu ensino, onde irá generalizar um pouco a ideia da loucura, retirando-lhe de cima todo esse edifício rígido muito ajustado dos psiquiatras clássicos com os quais se formou”, acrescenta.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 27-08-2018. A tradução é de Cepat.
Pode haver psicoses que não sejam patológicas?
O título provocativo de meu trabalho tem vários contornos. Por isso, a ilustração da capa é circular; ou seja, pode-se ler: “Estar louco sem ser”, “Ser louco sem estar”, etc. Sob essa forma relaxada e provocativa do título se introduzem várias questões. Por um lado, se alguém pode ser psicótico sem estar louco. É o caso do que chamaram ao longo da história loucuras lúcidas, psicoses com consciência, loucuras morais, sempre sob a forma da figura retórica do oximoro.
É sumamente interessante porque isso conta com outra visão da clínica. É uma clínica sem manifestações, sem sintomas ostensivos. É uma clínica cotidiana. Tem a ver com tudo aquilo que se desenvolveu nestes últimos anos, fundamentalmente na psicanálise de orientação lacaniana, pela mão de Jacques-Alain Miller, como psicose ordinária. Não é uma ideia que nunca tenha estado na clínica. Sempre houve personagens raros, estranhos, mas se via que não estavam completamente loucos, mas que eram formas de loucura sutil. Então, essa é uma primeira ideia.
Depois, também é possível estar louco sem ser psicótico. Há formas de loucura, formas chamativas, manifestações delirantes, alucinatórias, que não necessariamente são psicoses. A clínica percebeu isso: as loucuras histéricas, muitas formas de loucuras puerperais. Por exemplo, na Argentina, em um determinado período da história, quando se institucionalizou o ato de parir, muitas mulheres foram retiradas de suas casas. De parir no lar a parir em um âmbito institucional enlouqueciam no calor da febre. O hospital era um espaço anômico. Mas, nem todas eram psicóticas. Eram estados passageiros, oniroides, de fantasia, mas passavam e iam.
Em que consiste o núcleo psicótico da neurose?
Tiveram a ideia de um núcleo psicótico na neurose os pós-freudianos e algumas formulações de pessoas que receberam certa influência de Jacques Lacan, mas que não poderíamos mencionar como especificamente lacanianas. O que assumi de destaque do núcleo psicótico dentro da neurose foi para buscar encontrar algumas referências ao longo da história da clínica psicanalítica de colegas que se ocuparam de formas como a loucura sutil, a psicose sem loucura ou formas subclínicas da psicose. Não necessariamente quer dizer que eu seja adepto desse conceito, mas busquei ler de uma maneira sem preconceitos todas as referências que se deram sobre a questão. Tentei resumir isso em um trabalho sumário.
Nas primeiras páginas, onde desenvolve uma pequena história da psiquiatria, são mencionados os casos dos excêntricos, descarrilhados, maníacos e abúlicos, entre outros. Caso se leia de corrido todo o compêndio, parece que a psiquiatria funcionou no passado como uma espécie de polícia do pensamento. É muito exagero?
(Risos). Bom, a psiquiatria ao longo de sua história, em um aspecto, não em todos, teve uma vocação policial. Em nosso país, teve. Mas, não foi só isso. Lacan era psiquiatra, um grande clínico formado nas luzes da psiquiatria francesa, mas leu a loucura desde seus inícios como um problema de estilo. Ou seja, ele irá ler em sua tese de psiquiatria os escritos de uma louca – e digo isto sem nenhum estigma, porque para mim a loucura não é estigmatizante – do ponto de vista do estilo. É claro que ele é influenciado por toda a forma da psiquiatria que, como você disse, classifica, procura tipificar, ordenar em classes e, ao mesmo tempo, ter um preconceito sobre as pessoas, em um sentido. Mas, em outro, Lacan dá uma guinada em tudo isso. Acaba esvaziando semanticamente as categorias psiquiátricas para transformar – e isto é muito importante – a paranoia no próprio laço social. A paranoia é o laço social, é a configuração do eu. Quando vemos muito “eu” dando voltas, perguntamo-nos se esse sujeito não é um paranoico. Mas, ao mesmo tempo, todos nós nos constituímos de maneira paranoica com nosso eu.
Depois pensa que, por exemplo, a histeria pode ser um discurso; quer dizer, já retira dela esse aspecto de tipo clínico para a converter em um discurso, um discurso histérico. A forma da ironia esquizofrênica é o ideal da função do analista. O analista seria uma espécie de esquizofrênico irônico que intervém assim com seu paciente. Ou seja, Lacan começa a esvaziar semanticamente todas essas categorias. A parafrenia como uma enfermidade do semblante, por exemplo. Este é o ensino mais importante que Lacan deixa, de uma forma que eu chamo pós-psicopatológica; não desatendendo a psicopatologia, mas saindo desse molde rígido, superando-o para apostar nas formas de resposta singulares de cada sujeito e não nas grandes categorias.
Por que esclarece que não é um livro acerca da psicose e sua ontologia?
Tem a ver com esse círculo do título. Começo falando desse rastreamento histórico de como é a leitura destas formas de psicose sem loucura dentro da história clínica para terminar falando de como a própria psicose lê a psicanálise; ou seja, exonerar qualquer possibilidade de pensar que a psicose poderia ser alguma essência. Ao contrário, gosto da frase de Lacan de que a loucura seria uma sedução do ser. Essa frase me encanta porque me parece que escapa de qualquer visão essencialista para pensar a loucura de um ponto de vista muito mais corrente.
A personalidade “como se” é própria da esquizofrenia ou abarca um conjunto mais amplo?
Quando Heléne Deutsch aborda as personalidades “como se”, ela, psicanalista, a concebe como uma forma dentro de uma esquizofrenia. Para Lacan, as personalidades “como se” seriam como funciona uma tampa ou uma suplência para que alguém evite se precipitar na forma clínica da loucura. Essa forma “como se” que faria alguém se ajustar a modos de ser, a modos de identificação que lhe tornam possível uma existência, são muito mais formas de solução e não tanto sintomas ou sinais que poderiam nos fazer pensar de alguém que estaria clinicamente louco.
Tomando a filosofia das ficções muito em moda nessa época (Vaihinger fala disto), Heléne Deutsch utiliza esse conceito para tipificar modos de identificação dos esquizofrênicos. Jacques Lacan o localizaria – ou gostaríamos de o ler – a partir de outra dimensão, como formas de resposta, como alguém que encontra uma invenção, um aparato de suplência (para utilizar um termo de Ramos Mejía) que lhe ajuda a viver. Eu colocaria o espírito do que pesquisei em que são formas de loucura que, longe de tornar impossível a vida de alguém, ajudam a viver. Pode haver um modo de loucura que a alguém ajude a viver. Pensemos se não em cada um de nós.
No livro, destaca que Otto Kernberg definiu os “boderline” com aspectos psicológicos vinculados à falta de profundidade emocional. É bom chamar a atenção sobre este ponto, pois geralmente no imaginário coletivo se tende a pensar em um transbordamento emocional.
Sim, há uma visão da loucura que é popular: pensa-se que um louco está transbordado, excitado ou que produz uma alteração da ordem pública. Ao contrário, há muitas pessoas psicóticas que sofrem um vazio de ser, que lhes custa muito se ancorar na vida, que lhes custa muito encontrar um fundamento a partir do qual viver. Tomei a referência de Otto Kernberg, primeiro porque é um psiquiatra americano e é preciso ler os americanos porque isso tem alcance global, mas sabendo que também há certa ingenuidade nessas formas da clínica americana. As desordens fronteiriças que Otto Kernberg enxerga nos fazem pensar em um continuum, em uma forma onde se instalariam tanto a neurose como a psicose, que para a psicanálise são duas estruturas clínicas absolutamente diferentes. Nesse continuum, ele localizaria as desordens fronteiriças. Das leituras de Otto Kernberg, pude entender que muitos dos casos que ele cita, que muitas das descrições que ele faz dentro das desordens fronteiriças, são efetivamente de psicose sem loucura, que é ao que vamos com esta falta de profundidade, com esta sensação crônica de vazio, como se costuma utilizar, onde o que vemos muito mais é um vazio do ser, de alguém que não encontra qual é o fundamento de sua existência. Não encontra, por exemplo, as paixões, não encontra o amor, não encontra a partir de onde sentir o que outros sentem. E isso é uma dor de existir fenomenal.
Nessa vivência subjetiva de vazio, o indivíduo sente que não sente nada?
É assim. É um termo de um psiquiatra alemão que falava da melancolia e que poderia ser assumido para a psicose a partir de sua observação: do sentimento da falta de sentimento. Esta é talvez a maior dor de existir que possa haver. Alguém que talvez diz: “Eu sinto que não sinto o amor”, “sinto que não sinto as paixões”, “sinto que estou vazio, realmente vazio”.
Como atua razão na loucura moral?
Aí temos o oximoro que falávamos no início: louco-moral. É um oximoro ao passo que era inadmissível pensar que o louco podia ter moral em uma época. O que a clínica clássica descobre é que há pessoas que são afetadas em seus sentimentos, mas que a sua razão funciona perfeitamente, que há uma perversão de alguns instintos, mas não por isso deixam de circular em um ambiente compartilhado. Ou seja, que a razão em muitos deles não está afetada, funciona perfeitamente.
Existe o caso emblemático de Jean-Jacques Rousseau, autor de O Contrato Social: era um paranoico. Ou seja, as bases da sociedade moderna com a qual nos configuramos no Ocidente estão armadas em função de um paranoico. E isto é muito bem apreendido por Mariano Moreno, que disse: “Jean-Jacques Rousseau, o maravilhoso pensador genebrino...” etc., mas esclarece que ele precisou censurar a última parte que traduziu de O Contrato Social porque o homem delirou. Poderia ser dito que Mariano Moreno sustentou todo o delírio de Rousseau, menos a última parte que tinha a ver com a religião, porque Moreno evidentemente não queria se meter de cheio com o clero em nossos pampas, questão que não lhe foi muito bem, tampouco porque não durou muito a edição de O Contrato Social: essa tradução foi queimada poucos meses depois.
Contudo, aí temos um cabal exemplo do que acontece quando há um louco que arrazoa. Lacan disse: “Ao fim e ao cabo, a paranoia, como uma forma de loucura, longe de ser algo disparatado, algo fantástico, é um ensaio de rigor lógico”. Localiza uma forma de psicose ao lado do rigor lógico. Ou seja, tem uma visão muito livre de estigmas.
No polo normalidade-enfermidade como visão cultural, qual acredita ser a que prevalece no paradigma desta época?
Evidentemente, a visão da enfermidade, o classificatório. Nos manuais de classificação, como o DSM norte-americano, foram aumentando o número de páginas e de classificações. O DSM-1 era um folhetim e hoje em dia o DSM-5 tem numerosas páginas. Aumentaram muitíssimo as categorias. O que isto quer dizer? Que cada vez se tornou mais frouxa a semiologia, a observação minuciosa dos sintomas e, paradoxalmente, aumentaram as classificações. Isto ao menos na psicopatologia, enquanto que na medicina clínica se produziu um efeito inverso. Isto gera muito mais estigmatização, muito mais tipificação dos seres humanos a ponto tal que é impossível pensar que haja alguém no mundo que não esteja enfermo de algo: o bom humor é um tipo de mania, é um tipo de transtorno bipolar. O arrancar os pelos, comer as unhas também já são formas classificadas. Então, todos estaríamos enfermos.
Por que Lacan dizia que a psicanálise é “um autismo a dois”?
É uma provocação a mais de Jacques Lacan. Gosto porque me parece que dá esse tom distinto à categoria. Utiliza a categoria de autismo para pensar a figura do psicanalista. Pensar o que do psicanalista ou da psicanálise? O mal-entendido fundamental: entre analista e analisado não há acordo, não há uma língua compartilhada, não há compreensão possível. Não se pode analisar alguém, caso o compreenda. Essa é a tese de Jaques Lacan. Se eu compreendo o que me está dizendo, se me coloco em seus sapatos, não posso analisá-lo. Ao contrário, o que buscarei escutar é qual é a relação que a pessoa tem com isso mesmo que está falando. Ler esse discurso e ver como surge um dizer próprio, que não se parece com nenhum, que é incomparável. Isso me parece a astúcia de pensar esse “autismo a dois”.
Emilio Vaschetto, nascido em Córdoba, em 1972, é médico psiquiatra e psicanalista membro da Escola de Orientação Lacaniana, Associação Mundial de Psicanálise e Centro Descartes. É também docente adscrito ao Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina (UBA) e supervisor de residências em psicologia e psiquiatria no âmbito da província de Buenos Aires e a Cidade de Buenos Aires. Além disso, Vaschetto é membro fundador da Rede Ibero-Americana de História da psiquiatria e presidente honorário do Capítulo de Epistemologia e história da psiquiatria (APSA).
Este destacado psiquiatra e psicanalista publicou numerosos trabalhos em revistas e livros, tanto nacionais como internacionais, e como autor do livro Los descarriados. Clínica del extravío mental: entre la errancia y el yerro (Grama, 2010), recebeu um dos Prêmios Nacionais de Cultura no ano 2011. Além disso, foi organizador de: Depresiones y psicoanálisis. Insuficiencia, cobardía moral, fatiga, aburrimiento, dolor de existir (Grama, 2006), Psicosis actuales. Hacia un programa de investigación acerca de las psicosis ordinarias (Grama, 2008), Epistemología y psiquiatría, relaciones peligrosas (Polemos, 2012) e Lenguaje y psicopatología (Polemos, 2012).
Em seu livro Ser loco sin estar loco, Vaschetto se pergunta: “Por que não alucinamos se a linguagem está fermentando em nossa cabeça e como é que não deliramos se é que continuamente interpretamos o mundo com a torção de nosso desejo” [?]. E oferece um exemplo para ser gráfico: “Não estava muito errado Raymond Queneau quando supunha que o primeiro homem teria sido um macaco que se tornou louco. A linguagem faz tudo, desde nos enlouquecer até nos desfazer de nossos sofrimentos, desde sonhar até imaginar, fazer vibrar as palavras no amor até as congelar no ódio inveterado. A linguagem faz tudo, tudo menos algo: gozar”. A essência de sua pesquisa se resume em uma frase própria: “Só a psicanálise contempla a extraordinária alternativa de uma loucura sem loucura”.
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“Pode haver um modo de loucura que a alguém ajude a viver”. Entrevista com Emilio Vaschetto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU